Trump & Cia. suspensos do Twitter: entre ‘free speech’ e ‘free reach’

Trump & Cia. suspensos do Twitter: entre ‘free speech’ e ‘free reach’

14 Janeiro, 2021 /
Foto de Sean Ferigan/via Unsplash

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As principais plataformas digitais anunciaram a suspensão das contas de Trump e companhia, numa decisão tanto festejada como debatida. Exploramos aqui alguns dos principais argumentos.

A presença de Trump nas redes sociais, sobretudo no Twitter, já tinha dado lugar às discussões mais diversas. Donald Trump começou a presidência por rejeitar a conta que o Twitter lhe reservara e desde cedo mostrou que parte da sua estratégia de comunicação passaria pelas redes sociais. Sem filtro, o então Presidente norte-americano foi dizendo tudo o que queria e bem lhe apetecia sem que nada lhe acontecesse, e gerando debate sobre as políticas de moderação das redes sociais.

Depois de 4 anos de presidência sem filtros, foi no final de Maio de 2020 que as redes sociais mainstream – Facebook e Twitter – começaram a demonstrar alguma vontade de agir. O Twitter foi a primeira rede social a fazê-lo. Primeiro colocou junto dos tweets polémicos de Donald Trump um botão para que os internautas pudessem aferir através de fontes credíveis a veracidade da informação veiculada pelo Presidente e, pouco depois, começou a sinalizar os tweets como falsos impedindo que outros utilizadores interagissem com eles. O ponto de exclamação por baixo de um tweet seguido de uma frase como “This claim about election fraud is disputed”, tornou-se o novo normal na conta de Trump que apesar dos avisos insistia em manter e adensar a sua retórica, sugerindo fraude eleitoral, muito antes da própria eleição acontecer.

Captura de ecrã do Twitter de Donald Trump (por Shifter)

Com o passar do tempo e o desenrolar dos acontecimentos de forma desfavorável a Trump, a sua narrativa parecia distanciar-se cada vez mais dos factos e do bom senso, repetindo sucessivamente e sem qualquer prova para além de vídeos amadores não creditados, a acusação de que as eleições lhe estariam a ser roubadas. Trump construía assim o momentum que no dia 6 de Janeiro acabara por entrar de rompante no Capitólio, num dos mais assustadores mas também caricatos ataques ao centro nevrálgico da democracia de um país. Entre os milhares de pessoas que atacaram a casa da democracia norte-americana tornaram-se repetidamente visíveis símbolos de facções que, online, se tornaram reconhecidos e ajudam a contar a história até ao seu momento final. É também online que se procura desmantelar o movimento, levando à tomada de decisões estratégicas que estão a provocar um enorme debate sobre o futuro da internet. A pressão aumenta assim sobre os enablers da organização e, deputados, activistas e civis começaram a chamar à responsabilidade empresas e serviços que, de alguma forma, colaboraram na disseminação da retórica de incitação à violência de Trump e de grupos mais ou menos orgânicos em seu apoio – como QAnon, ProudBoys ou o movimento #StopTheSteal.

Na quarta-feira, dia da invasão ao Capitólio, Trump ignorou os avisos e publicou um vídeo que acabou por ser rapidamente apagado de Facebook, Twitter e Youtube, por “conter desinformação” e violar as políticas de “integridade” dos serviços. O Facebook anunciou via Guy Rosen, Vice-Presidente para a Integridade, que ia remover o vídeo e tomar medidas de emergência para conter a disseminação de incitações à violência. Horas depois, o Twitter emitiu o primeiro aviso sério de que não iria tolerar discursos que desrespeitassem os seus termos e condições, nomeadamente, incitando ou promovendo a violência. Suspenderam a conta de Trump por 12 horas e exigiram a remoção de 3 dos tweets que este tinha feito – entre eles lia-se coisas como “remember this day forever” (lembrem-se deste dia para sempre) num clara referência à invasão ao Capitólio.

Facebook (Instagram), Google (YouTube), Reddit, Twitch, Discord, Pinterest, Discord Snapchat, Shopify e Stripe anunciaram na quinta-feira a cessação dos serviços de Donald Trump ou de afiliados que pudessem colaborar na disseminação da retórica de incitação à violência. Para além da suspensão das contas de Trump das redes sociais como Facebook, Instagram, Twitter e Snapchat, o Pinterest anunciou a suspensão de coleções que pudessem estar associadas como “StopTheSteal”, o Reddit suspendeu o subreddit r/DonaldTrump, o Discord suspendeu o servidor associado ao site oficial de Donald Trump, o Shopify suspendeu lojas de merchandising associadas e o Stripe anunciou que deixaria de processar pagamentos em favor de Trump. Conjuntamente com Trump, as principais plataformas procuraram eliminar outras redes que orbitassem em torno de mensagens de incitação à violência ou desinformação. Assim, para além da suspensão de Trump foi visível em algumas plataformas como o Twitter, a suspensão em massa de contas abertamente ligadas a movimentos como o QAnon. Noutro âmbito, foram também visadas as plataformas que se tornaram populares como alternativa para os conservatives, como o Parler e o Gab, já repetente nestas andanças.  Google e Apple anunciaram também a suspensão do Parler das suas lojas de aplicações móveis, exigindo que esta rede social se comprometesse a uma aplicação mais rigorosa dos seus Termos e Serviços, e a Amazon seguiu os seus passos suspendendo o serviço de alojamento nos Amazon Web Services.

A lista de empresas que cancelaram qualquer associação a Trump ou aos seus movimentos de apoio aumenta todos os dias, numa história que se testemunha em páginas como a Sleeping Giants USA, página de um grupo de activistas que identifica associações entre serviços e associados à invasão, exigindo responsabilidades e respostas de todos os envolvidos no processo – desde empresas de alojamento, gestão de domínios, a anunciantes em sites de disseminação de informação. Uma das empresas visadas foi a Cloudflare, empresa que protege sites de ataques DDoS mantendo-os acessíveis, conhecida por uma política de proteção a todos os seus clientes.

Paralela a esta exigência alargou-se o debate sobre as implicações deste tipo de acção. Um exemplo paradigmático da intercepção destas abordagens foi o tweet, entretanto apagado, da página Sleeping Giants que apontava ao Telegram mas rapidamente foi refutado pelos seguidores que sugeriram a importância dessa aplicação de mensagens encriptadas noutros contextos — recorde-se que o Telegram é uma aplicação que tem sido notícia por servir de plataforma para comunicações privadas em regimes de maior vigilância ou autoritarismo.

Tal como seria de esperar perante um evento desta magnitude, as acções que lhe seguiram – neste caso sobretudo online – foram alvo de uma ampla discussão que se pode dividir em dois eixos, sobre os quais surgem posteriormente as diversas posições. A eficiência e a jurisprudência.

Por um lado há quem debata a eficiência das medidas tomadas só agora, ao fim de 4 anos de presidência em que a retórica de Trump foi diversas vezes errática e os benefícios da dúvida foram sendo concedidos, e qual a moral que algumas destas empresas têm para o fazer perante outras violações claras dos seus termos com que são coniventes. Por outro, há quem debata o impacto que uma decisão inédita como esta, de banir o Presidente dos EUA, no futuro da própria internet que já vinha sendo alvo dos legisladores nos últimos anos. Não raras vezes os debates cruzam-se e sobrepõem-se conduzindo a uma reflexão mais ampla sobre o posicionamento das redes sociais enquanto espaço público. Vamos por partes, utilizando como exemplo o Twitter, a rede social preferida de Donald Trump.

O Twitter SÓ tinha de bloquear Donald Trump

A posição de defesa da suspensão, por ter um resultado prático mais imediato, ao cessar a possibilidade de Trump continuar a fazer tweets potencialmente polémicos, afigura-se à primeira vista como uma decisão com consequências mais previsíveis. O desrespeito de Trump pelos Termos e Condições do Twitter ja não era novidade para ninguém, e portanto, os que concordam com a suspensão da conta mais polémica da rede social servem-se deste argumento para corroborar a suspensão. Para além disso o carácter privado da empresa presidida por Jack Dorsey surge como outra das justificações da legitimidade da decisão. Ainda que se possa aqui contra-argumentar com o facto de o Twitter estar ao abrigo da excepção concedida Secção 230, e por isso, obrigado a uma imparcialidade nas suas decisões, é plausível dizer-se que um desrespeito pelas normas de utilização do serviço, com as quais cada utilizador tem de concordar, vai para além de uma normal moderação de conteúdos.

Por outro lado, há quem defenda, por várias razões, que o Twitter não devia ter bloqueado Trump. Alex Navalny, o conhecido opositor de Putin, foi um dos mais assertivos a este respeito. O dissidente russo fez uma extensa sequência de tweets onde reiterou que na sua opinião a suspensão de Trump é um acto de censura. Navalny justificou a sua posição com uma série de afirmações e exemplos sobre a forma arbitrária como o Twitter gere as suspensões de contas, recordando, por exemplo, que ele mesmo recebe ameaças de morte diariamente, de utilizadores que não acabam banidos. Para Navalny uma decisão deste calibre poderia ser tomada mas num outro contexto, com um comité de pessoas conhecidas por todos os utilizadores. Navalny secunda a sua posição neste caso com o seu historial, fazendo o engenhoso exercício de se colocar na pele de Trump, e relembrando que a plataforma mantém activas contas como a de Nicolas Maduro ou Putin – embora seja interessante aqui recordar o contraste da linaguagem utilizada por uns e por outros nesta plataforma, e não só as suas práticas enquanto líderes políticos.

Para além do argumento mais explícito empregue pelo russo, noutros debates surgiu a ideia de que banir Trump criar um precedente pela regulação das redes sociais. Contudo, à luz deste argumento vale a pena acompanhar as palavras de Jillian York. A directora da International Freedom of Expression da Electronic Frontier Foundation, que este publicará em breve o livro Sillicon Values: The Future of Free Speech Under Surveillance Capitalism, compilou no seu blog uma série de exemplos contra argumentos deste género. Jillian lembra desde logo que Trump não foi o primeiro utilizador do Twitter a ser banido, denunciando a perspectiva americanizada por trás deste argumento. Recorde-se, por exemplo, que em Setembro de 2019, o Twitter suspendeu dezenas de contas afiliadas do Governo de Cuba, incluindo de órgãos de comunicação estatais. E que desde 2010 se sucedem as suspensões de contas de alto perfil, como regista esta página na Wikipédia. Jillian rebate ainda outros argumentos relacionados não só directamente com a suspensão de Trump mas com o chamado de-platforming (tirar a plataforma) de todo o movimento, que fez com que alguns utilizadores notassem perdas no seu número de seguidores, como Larry Sanger ou Kim Dotcom. York lembra que não é a primeira vez que acontecem suspensões em massa, recordando, entre outros exemplos, o caso de uma utilizadora que foi proibida pela plataforma Etsy de vender bonecas persas por, no entendimento da equipa de moderação, se relacionarem com o Irão, estando proibidas ao abrigo das sanções económicas impostas.

Curiosamente, andando para trás no tempo, percebe-se que esta não é a primeira vez que este tipo de moderação massiva e, digamos, radical, acontece. É a importância do contexto – a transição eleitoral – e das acções reais – a invasão ao Capitólio – que simultaneamente o tornam urgente e disruptivo. Em 2018, na sequência do tiroteio de Pittsburgh que provocou 11 mortos, a plataforma Gab foi alvo de um cancelamento semelhante aos que hoje se verificam, sendo suspensa do serviço de alojamento Joyent e da plataforma de pagamentos Stripe. Pouco tempo depois acabou por voltar, alojada num novo servidor da Epik. Esta empresa, Epik, baseada em Washington, voltou em 2019 às notícias por servir de alternativa ao 8Chan, fórum anónimo associado aos tiroteios de El Paso, Texas e Dayton, Ohio, e acusado de hospedar pornografia infantil e outros conteúdos ilícitos, e ao The Daily Stormer, media de extrema direita, banidos do serviço da Cloudflare. Entretanto o 8Chan migrou para a Deep Web mas a Epik continua a prestar serviços de alojamento ou de proteção contra ataques ao Gab, tornando-se na sequência destes eventos casa do Parler.

Em síntese, todo este debate remete para uma discussão muito maior que se tem dado entre especialistas, defensores dos direitos digitais e figuras políticas, sobre a regulação da internet no geral. Agora, as plataformas que albergam conteúdo gerado pelos utilizadores como Facebook, Twitter ou provedores de servidores estão ao abrigo da famosa Secção 230, conhecida como “as 6 palavras que originaram a internet”, o que lhes garante um regime especial de responsabilidade sobre o conteúdo que lá é publicado. Tal excepção tem sido criticada, neste caso especialmente por quem está contra a suspensão de Trump, e badalada entre políticos dos dois partidos. Contudo, o caso sobre a Section 230 vai muito para além desta dicotomia, como explica Julian Sanchez. É preciso recordar que as plataformas, actualmente, já desenvolvem esforços de moderação e que não será por uma diferença legal que essa moderação será mais eficaz. Julian Sanchez recorda que, tal como se debateu do lado europeu, obrigar as empresas a moderação mais apertada por via da lei só reforçará as desigualdades que a moderação automatizada gera. Também a Fight For The Future, associação de defesa dos direitos digitais, fez um extenso comunicado dizendo que não se pode combater “Supremacia branca com fascismo” e alertando para o perigo que seria utilizar o caso de Donald Trump como um argumento para mais vigilância online. Regra geral, e como afirmam, esta vigilância seria operada por tecnologias enviesadas que prejudicam pessoas de cor ou outros fora do espectro ‘americanizado’ ou por entidades centralizadas controladas por um empregador americano, preconizando preconceitos e estereótipos sobre o que é discurso aceitável partindo quase sempre do mesmo ponto de vista.

Julian Sanchez lembra que vários casos de partilha de conteúdo online chegam aos tribunais que demoram muito tempo a decidir sobre a criminalidade dos mesmos – nomeadamente deduzindo o seu contexto e intenção – e que seria impensável forçar as tecnológicas a assumir esse papel ao levantar a excepção que lhes permite hoje dia funcionar com alguma eficiência.

Jack Dorsey, CEO do Twitter, foi um dos últimos a reagir ao amplo debate que se estabeleceu na sua plataforma mas, ao contrário de Mark Zuckerberg ou outros líderes de empresas, foi longe nas suas afirmações. Dorsey deu a cara pela suspensão de Donald Trump numa sequência de tweets em que revelou não celebrava nem sentia orgulho na decisão e, onde, de certa forma revela a sua discórdia perante a decisão que se vira obrigado a tomar. Dorsey assumiu a urgência dizendo que era obrigação do Twitter zelar pela segurança de todos online e offline mas explica que por princípio se opõe a esta forma de gestão de conteúdos, especialmente quando ganha um teor de coordenação como aconteceu neste caso com todas as empresas a agir no mesmo sentido. Dorsey assegura, ainda assim, que não houve nenhuma coordenação entre as empresas e que este momento “exigia” esta dinâmica, seguindo para o ponto de explicação dos princípios que defende. Como é público Jack Dorsey voltou a exprimir a sua visão de que a descentralização é o futuro da internet, e a lembrar o projecto que fundara para que o Twitter se pudesse tornar apenas um cliente de um protocolo de rede social descentralizada.

Como se vê, este é um debate rico em que não faltam argumentos e, sobretudo, nuances, mesmo nas opiniões mais assertivas. Apesar da surpresa provocada pelos acontecimentos dos últimos dias, é impreciso dizer que seja um caso sem precedentes – eles existem em todas as acções. Outra nota que importa fazer é que apesar da suspensão de algumas contas, a verdade é que a liberdade de expressão de grande parte dos visados não foi propriamente posta em causa – como caricatura dessa ideia ficam as imagens do mockumentary criado por Charlie Brooker, realizador de Black Mirror, Death to 2020 no tweet em baixo. Convém lembrar que Donald Trump continua a ser um tema de especial interesse para a imprensa pelo que não seria difícil para si montar uma conferência, e que todos os outros meios de expressão estão ao seu dispor, bem como as contas de Twitter da Presidência ou da Casa Branca, os registos oficiais de onde provavelmente nunca deveria ter saído. Como se lê por aí, é bom lembrar que Free Reach não é Free Speech, e que, como escreve Jillian York no seu blogpost, não há nada mais errado do que dizer que estas acções são uma manobra comunista – afinal de contas resultam do poder acumulado por empresas tecnológicas do universo capitalista que ao longo dos anos foram sempre convenientes com o poder norte-americano.

Autor:
14 Janeiro, 2021

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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