Pós-neoliberalismo: a primeira década

Pós-neoliberalismo: a primeira década

13 Janeiro, 2021 /

Índice do Artigo:

O sistema pós-neoliberal é fundamentalmente caracterizado por dois fatores: por um lado, Estados intervêm em empresas pouco viáveis (zombies) para evitar crises humanitárias e tumultos sociais; por outro lado, emergem impérios corporativos (tecno-feudalismo), resultado indireto de tais políticas económicas.

Acreditávamos que o medo de morrer convertia os ateus em crentes, mas acontece que transforma neoliberais em keynesianos”. Em março de 2020, no pico da crise pandémica na Europa, o jornalista espanhol Pedro Vallín explorou a ideia que em momentos de crise até os mais liberais apelam pela intervenção estatal para salvar privados. A realidade parecia dar razão a Vallín, nos meses seguintes, vários governos responderam com medidas que pareciam ser uma impossibilidade político-económica semanas antes: nos Estados Unidos foram entregues cheques de 1,200 dólares para todos os nacionais, combinado com a majoração do subsídio de desemprego em 600 dólares por semana; o governo britânico passou a financiar 80% do salário de trabalhadores em regime de layoff (sem custos para os empregadores), enquanto subsidiava em 50% as despesas das famílias em restaurantes; no Brasil, cerca de metade dos agregados familiares beneficiaram de uma transferência mensal de 600 reais (cerca de 90 euros) durante três meses, levando o índice de desigualdade a atingir mínimos históricos. Contudo, tais medidas não são a prova que o covid-19 converteu neoliberais em keynesianos; apenas realçam que, desde 2008, o sistema capitalista está num período de mutação em curso. 

Por mais extraordinário que pareça, ajudas públicas de enormes proporções como resposta a uma crise não tem nada de novo. Durante a crise financeira iniciada em 2008, a maioria dos países desenvolvidos alocaram quantidades massivas de fundos para resgatar sectores económicos em colapso, em especial a banca, argumentando potenciais riscos sistémicos. Em alguns casos, o esforço financeiro dos governos foi superior ao projetado para 2020, como é notório no caso irlandês, que nacionalizou a maioria do seu sistema financeiro. Outras economias periféricas, como Portugal e Grécia, apresentam a mesma tendência.  

Intervencionismo com precedentes: Défice % do PIB (2009-2011) vs. estimativas para 2020. 

Fonte: FMI

Do ponto de vista estrutural, a pandemia não criou nenhuma alteração do sistema económico global, apenas reforçou o novo sistema capitalista nascido da anterior crise financeira. Os recentes resgates ao sector da aviação são um espelho dos apoios à banca anos antes. O sistema pós-neoliberal é fundamentalmente caracterizado por dois fatores: por um lado, Estados intervêm em empresas pouco viáveis (zombies) para evitar crises humanitárias e tumultos sociais; por outro lado, emergem impérios corporativos (tecno-feudalismo), resultado indireto de tais políticas económicas.

Uma economia zombie planificada

Do final dos anos 70 ate à crise financeira, o mundo viveu o período neoliberal, em que grandes corporações se beneficiaram do afastamento do Estado em várias áreas: reduziram-se regulações (laborais, ambientais, etc) e impostos a empresas; enquanto se privatizavam ativos públicos e se desmantelava lentamente o Estado Social em nome do equilíbrio orçamental, competitividade e crescimento económico. 

Nos últimos anos, como consequência de três décadas de neoliberalismo, o sistema económico mutou-se de tal forma que os Estados se tornaram atores ativos na sobrevivência diária do sistema económico vigente. Para além de consecutivos resgates por parte dos governos, os principais bancos centrais do mundo iniciaram um processo de criação de moeda de proporções épicas (Quantitative Easing), de forma a garantir crédito barato e ilimitado ao sector empresarial. Tais políticas criam uma abundância de crédito que garante a sobrevivência de um exército de empresas zombies1, e que também promove investimentos bilionários em novas empresas (unicórnios) que nunca apresentaram lucros, como Uber e WeWork.

No Japão, país que tem sido pioneiro neste tipo de políticas monetárias desde dos anos 90, o Banco Central (detido pelo Estado) tem vindo a comprar ações de empresas nipónicas (desde 2010), de forma a evitar pânicos nos mercados financeiros. Do ponto de vista prático, o Banco Central criou, indiretamente, um sistema semelhante ao fundo de garantia de depósitos para investidores bolsistas, reduzindo o seu risco de perdas. Sistema esse, que funciona através da nacionalização parcial e gradual das empresas cotadas em bolsa. Em dezembro de 2020, o Banco do Japão, tornou-se o maior acionista das empresas cotadas no país, sem deter qualquer controlo efetivo na sua gestão.

O crescimento das empresas zombies. % de empresas zombies num conjunto de economias desenvolvidas. 

O lado tecno-feudalista

Ao criar-se um ambiente em que empresas sem viabilidade (zombies) têm relativa facilidade de financiamento e sobrevivência; os gigantes corporativos, que apresentam lucros colossais, não terão qualquer dificuldade em financiar seus projetos e moldar o sistema económico mundial em seu benefício. 

Nos últimos anos, a Facebook tem usado a sua posição de líder de mercado para comprar empresas que considere uma ameaça à sua rentabilidade, como o Instagram e WhatsApp. A Amazon, ao ter criado uma complexa rede de e-commerce, tem a capacidade de competir deslealmente com as empresas que usam a usa plataforma: tendo a informação de quais os produtos mais vendido na plataforma, a AmazonBasics (marca própria) cria produtos semelhantes aos seus concorrentes/clientes a um preço inferior. 

A tendência de desigualdade e comportamentos anti concorrenciais entre empresas cria problemas sérios para o mundo laboral. Gigantes corporativos ganham a capacidade de criar monopólios de emprego em economias locais (monopsónios), semelhantes aos assalariados rurais nos latifúndios alentejanos no século passado. Em plena recessão, a Amazon contratou 350 mil trabalhadores permanentes em apenas quatro meses (julho a outubro), aproximadamente um aumento de 45% do número total de trabalhadores que tinha no ano anterior. A cada recessão económica, as maiores empresas mundiais vão conquistando espaço na economia global, moldando o sistema económico-social conforme os seus interesses. 

O império Bezos. Número de trabalhadores da Amazon (2007-2020*)

Fonte: Statista (2007-2019). * Estimado com o aumento de 400 mil trabalhadores noticiado pelo Washington Post em 29 de outubro de 2020.

Um jardim à beira-mar ligado às máquinas

No caso português, os sinais mais visíveis do sistema pós-neoliberal são as contínuas ajudas públicas a um sistema bancário pouco viável, com seus zombies (Novo Banco) e cadáveres (BPN, BANIF, BPP), enquanto o Banco Central Europeu segura o Estado português, ao emitir moeda para compra de dívida pública. Nos últimos anos, e em especial desde o início da pandemia, os sinais dos colossos tecnológicos a penetrar e moldar a pequena economia periférica portuguesa começam a ser mais visíveis.

Desde do final de 2007, o governo português injetou 25,5 mil milhões de euros no sistema bancário através de nacionalizações e empréstimos, uma média de 1.8 mil milhões por ano entre 2007 e 2020; esse valor, apenas 6 mil milhões foram recuperados até hoje. Colocando em perspetiva, o montante remanescente (cerca de 9,1% do PIB em 2019) corresponde a um quinto do aumento de dívida pública entre 2008 e 2019 e acima do valor poupado** em saúde e educação na última década, quando comparado com a trajetória dos anos anteriores. Mesmo se a maioria desse montante for recuperado no futuro, o Estado português abdicou de realizar parte das suas funções fundamentais como investimentos no Estado Social e capitanear um processo de transição energética, incorrendo em custos sociais no presente e no futuro. 

O elevado preço dos resgates. Estimativas de vários programas/medidas, em % do PIB (2019)

Fontes: PORDATA, Eco, JN, observador, TSF, DN. Valor total dos resgates incluí empréstimos do Estado Português ao fundo de resolução (5,2 mil milhões emprestados relativos ao Novo Banco e 489 milhões relativos ao BANIF) * Incluí os valores recuperados (aprox. 6 mil milhões) com empréstimos a BCP (3 mil milhões), BPI (1,5 mil milhões), CGD (0,9 mil milhões), entre outros. ** Diferencial da despesa com saúde e educação durante 2009-2019 (média anual de 9,1% do PIB) vs. os cinco anos anteriores (despesa média anual de 9.9% do PIB).

A atual crise levantou novos receios sobre a robustez do sistema bancário português. O Novo Banco registou prejuízos de 853 milhões de euros nos primeiros nove meses de 2020, tornando extremamente provável um pedido de 900 milhões de euros ao Estado no futuro próximo. Acrescidas às dificuldades já conhecidas no antigo BES, as atuais moratórias estarão muito provavelmente a ocultar artificialmente problemas estruturais do sector da banca. Como apontou a economista Susana Peralta, “Quanto mais durar a moratória, maior é a probabilidade de a empresa ou família não vir a recuperar a sua saúde financeira”. O período de moratória já foi estendido por duas vezes, até setembro de 2021. Para além de longas, as moratórias têm uma dimensão particularmente assustadora no contexto português: de acordo com a Autoridade Bancária Europeia (junho 2020), Portugal era o terceiro país da União Europeia com a maior proporção de empréstimos em regime de moratória, ligeiramente acima de 20%. As visíveis fragilidades do sistema financeiro podem causar uma nova onda de apoios estatais, que só será possível com o continuo apoio do Banco Central Europeu, imprimindo moeda.

A bomba relógio das moratórias: % de empréstimos em regime de moratória (eixo direita, losangos), montante total em milhares de milhões de Euros (eixo esquerda, barras)

Fonte: Autoridade Bancária Europeia

A recuperação económica portuguesa não se deveu ao cumprimento programa da Troika, as suas privatizações e “reformas estruturais”; algo posteriormente reconhecido pelo o próprio FMI. O crescimento económico e viragem da página da austeridade deu-se, essencialmente, por um conjunto de políticas monetárias do Banco Central Europeu, iniciadas em 2012 e uma intensificação destas a partir de 2015. Política essa que reduziu a despesa com juros de dívida dos governos, criando alguma margem orçamental para reverter políticas de austeridade e promover estímulos económicos. 

Do ponto de vista operacional, o Banco Central Europeu (BCE) iniciou um processo impressão de moeda para adquirir dívida pública dos seus estados-membros, assegurando aos investidores privados (os “mercados”) que seria um comprador ativo em tempos de incerteza. Ao acalmar os mercados, a perceção do risco de deter dívida pública caiu, causando uma queda abrupta dos custos com juros de governos como o português. O ativismo do BCE fez com que os juros do governo português caíssem de níveis superiores aos do governo da Zâmbia (atualmente em incumprimento) em 2012, para taxas de juro negativas em plena pandemia, período em que a economia se encontra em completo colapso e com altos níveis de dívida pública.  

Nos últimos seis anos, o Banco de Portugal (filial do BCE) comprou aproximadamente um quinto de toda a dívida pública portuguesa, um montante significativamente superior aos gastos com o sector da banca. Dívida que o Estado deve, indiretamente, a si próprio; um processo discreto de reestruturação de dívida pública sem confrontos com privados. Consequentemente, essa política fez com os encargos do Estado português com juros deixassem de ser superiores às rúbricas de saúde e educação. Um processo inteiramente baseado na intervenção de uma única instituição pública.

A reestruturação totalmente planificada pelo BCE: Evolução da dívida pública, detida “nos mercados” vs. comprada pelo Banco de Portugal, % do PIB (2011-2020)

Fonte: Banco de Portugal, INE.

A reestruturação totalmente planificada pelo BCE: Custos com juros, % dos gastos do estado português (2009-2019)

Fonte: Banco de Portugal, FMI, PORDATA.

Os últimos anos, e 2020 em particular, vieram mostrar que os Estados do norte global detêm as ferramentas que fazem com que o sistema económico mundial sobreviva. Essas ferramentas são utilizadas em nome da prevenção de riscos sistémicos. Dessa forma, é também fundamental considerar o iminente colapso climático, e as crises humanitárias associadas a este, um risco sistémico. Contudo, deslocar os mecanismos financeiros existentes para o investimento verde não nos salvará dos custos sociais do sistema pós-neoliberal que expande à velocidade da luz. A Amazon apresenta planos para expandir o seu império logístico para as portas de Portugal; enquanto a Uber Eats ambiciona tornar-se numa Uber Tudo/Amazon das entregas rápidas, alastrando a precariedade laboral do seu modelo de negócio. É urgente criar, em simultâneo, uma agenda de redistribuição de riqueza, regulação concorrencial das grandes empresas e alcançar o controlo público de sectores essenciais da economia antes que seja tarde demais.  

1- Empresas que geram receita suficiente para pagar os custos operacionais (renda, salários e juros com divida) mas não para pagar a totalidade da divida. Geralmente a sua sobrevivência depende dos seus credores que garantem a sua sobrevivência com a extensão de empréstimos.)

Guilherme Rodrigues

Um socialista, formado na capital portuguesa do neoliberalismo económico (Nova SBE), que tenta contar uma história escondida

@zerohoursworker / https://medium.com/zinc-tank

Autor:
13 Janeiro, 2021

A rede de colaboradores do Shifter

Ver todos os artigos
Partilha este artigo:
Recebe os conteúdos do Shifter, semanalmente no teu e-mail.
Partilha este artigo:

Outros artigos de que podes gostar: