As imagens que ontem chegaram de Washington D.C. marcarão, com toda a certeza, a história do ano 2021. Apesar da recente entrada no ano, a invasão de centenas, ou milhares, de pessoas da principal casa da democracia norte-americana é o culminar de uma escalada de violência – retórica e física – que há muito toma conta da política norte-americana tendo como principal protagonista Donald Trump. A história da presidência norte-americana mais controversa da história, descrita por intelectuais como Noam Chomsky como um dos períodos mais sombrios da história da América, será caso de estudo por anos sobre a ascensão do populismo conduzida por uma personalidade egótica e… com acesso ao Twitter.
Watch @robertmooreitv's report from inside the Capitol building as the extraordinary events unfolded in Washington DChttps://t.co/krCQf1uQbx pic.twitter.com/SiWbzF5Nzs
— ITV News (@itvnews) January 6, 2021
Por muitas voltas que se dê ao assunto, e por muitos dedos que se apontem aos impérios de comunicação social que nos Estados Unidos ocupam um lugar estrutural no seio da sociedade — pense-se novamente em Chomsky e na sua obra mais reconhecida, Manufacturing Consent — a ascensão de Trump, a sua presidência, e este seu momento de queda livre com estrondo, ficam marcados pela sua proximidade com as redes sociais, especialmente com o Twitter. Foi no Twitter, recorrendo à sua conta pessoal que tornou conta da presidência após rejeitar a oficial, que Trump criou a sua persona, reagiu aos principais acontecimentos, mandou indirectas e alimentou narrativas. A presidência de Trump foi uma House of Tweets que agora se vê desmoronar a dias do final previsto.
Vamos por partes, reflectindo sumariamente sobre esta relação. A opção de Trump pelo Twitter, a rejeição da conta designada para o Presidente norte-americano e a obsessão pelos tweets em modo reactivo e instantâneo são uma boa imagem do ainda POTUS. Donald Trump viu na rede social do passarinho azul uma forma de comunicar sem intermediários com os seus seguidores e aproveitou a banalização da síntese promovida pela dinâmica da rede social para disseminar sem pejo a sua visão ultra-simplificada da realidade. Em afirmações sumárias de 280 caracteres, podia expressar-se em jeito de slogan sem necessitar de um palanque; num espaço público moderado por algoritmos que respondem a critérios sobretudo quantitativos, Trump via esses slogans ecoarem por todos os canto da casa. A sua retórica anti-sistema, apesar da sua íntima relação ao sistema vigente – ver, por exemplo, Hypernormalisation de Adam Curtis — reunia outros que como ele procuravam protagonismo, proximidade do poder ou simplesmente clout, likes e seguidores nas redes sociais. Olhando para as menções dos tweets de Trump, esta categorização dos personagens torna-se óbvia, quase imediata. Ao propor uma visão ultra-simplista da realidade, instrumentalizando as emoções dos mais frágeis com a fórmula retórica bárbara do “nós contra eles”, prenunciando uma América tão grande quanto a torre com o seu nome que protagonizou programas de TV, Trump criava espaço para uma recriação fetichista do sonho americano, na medida em que reservava deste apenas o seu potencial individualista, sem uma contextualização moral que preservasse qualquer tipo de valores.
A subida de Trump é isso, a história de um personagem uni-dimensional, criado em tweets e mantido num registo que se caricatura a si próprio. Com resposta para tudo mas sem soluções para o que quer que seja, cuja principal arma de socialização e política passa pela simplificação ignorante, travestida de uma ironia arrogante de quem tem lata para saber que não sabe o que diz mas continuar a dizê-lo. Um exemplo claro deste desligamento entre Trump e as lógicas que sustentam a realidade foi a sua relação com a pandemia. Perante um vírus detectado e descrito pela ciência, Trump ensaiou xenofobia, uma atitude anti-ciência, o salve-se quem puder, e as mais flagrantes afirmações da sua ignorância como quando apontou a injecção de desinfectante como tratamento para o vírus. Este exemplo é, de resto, extraordinário para se perceber a relação, ou falta dela, entre as afirmações de Trump e a lógica, ponte perfeita para falarmos do ponto seguinte e final deste pequeno texto, as teorias da conspiração. De facto, o desinfectante tem potencial para eliminar os vírus das superfícies, e foi partindo desta base verídica que um dos homens mais poderosos do mundo embarcou na sua invenção. O raciocínio de Trump – ingénuo ou intencional, analistas dirão – caracteriza-se sobretudo por esta facilidade em saltar para conclusões, desrespeitando as lógicas internas dos fenómenos – tal como escolheu falar sempre no Twitter, na conta pessoal, rejeitando o filtro burocrático a que se sujeita qualquer Presidente. Trump não queria ser como os outros e, mais uma vez, acreditou sempre que não era, sem se substanciar nas lógicas internas da sua crença. Quem precisa de substância quando se tem gratificação instantânea e se convenceu metade de uma população?
Se este lado de Trump mostra sobretudo a importância das instituições que seguraram a América durante uma presidência atribulada, o outro ponto que interessa aqui explorar evidencia essa importância a nível social. Dentro da mesma lógica afirmativa e simplista de Trump, e paralelamente ao seu caminho, surgia no seio social americano uma teoria da conspiração sem paralelo que, como ontem se viu em directo na TV, teve um papel central na invasão do Capitólio. A teoria do QAnon que aqui te explicámos começou em 2017 e acompanhou de perto a presidência de Donald Trump, fazendo do presidente o seu personagem principal tantas e tantas vezes. Nesta história, Trump seria o escolhido, o homem providencial, que dedicara os últimos anos a preparar-se para limpar o deep state das influências satânicas, uma ideia que se reflecte na sua mítica promessa de drenar o pântano (drain the swamp). E se a teoria nascia e crescia em anónimo, depressa Trump parece ter percebido que teria algo a ganhar se embarcasse na plataforma. Mais uma vez, indiferente às lógicas internas e ao contexto, ao princípio da teoria em que o autor afirmava ser um membro do governos dos Estados Unidos com acesso a informação secreta e portanto a cometer um acto supostamente ilícito, Trump retweetou vídeos do movimento e mencionou várias vezes figuras importantes deste, num suceder de referências que aumentava à medida que a presidência de Trump se começava a deteriorar.
QAnon: uma piada descontrolada, uma alucinação colectiva ou a emoção no comando
Um dos momentos chave da fusão entre a ficção do QAnon e a ficção de Trump aconteceu em plenos protestos Black Lives Matter, quando Trump deecidiu ir até à capela junto à Casa Branca, para pousar de bíblia na mão. Os responsáveis da igreja foram dos primeiros a reagir revelando o seu ultraje pela encenação de Trump que, segundo contam, nem se dignou a rezar. A pose de Trump de mão na bíblia emulou imagens figurativas do movimento QAnon cuja ficção termina num dia de juízo final em que os bons e os maus se confrontarão nas ruas. Mas a sua promoção ao movimento QAnon não se fica por aqui nem por acções concretas. É recuperando a forma fetichista que molda o seu raciocínio, a dispensa dos intermediários de execução de poder, e a preferência por uma retórica ultra-simplificada, quase comercial, que conseguimos traçar a figura completa da presidência norte-americana, um moderno exemplar de fascismo. O fetichismo nostálgico, o nacionalismo exacerbado, o culto de uma figura providencial – quase heróica, a repulsa ao pensamento lógico, a arregimentação da sociedade em lógicas confrontacionais, vinham demonstrando uma tendência clara de desrespeito pelo carácter institucional do poder que detinha. A invasão do Capitólio é o reflexo na sociedade desse desrespeito que se promoveu. Mais do que rejeitar o que todos afirmam como verdade, os apoiantes de Trump que promoveram a fatídica invasão rejeitam a própria lógica da verdade consensual aceite nas sociedades liberais. Trocaram a lógica, a razão e a ponderação com que se afere o que é a verdade em regimes democráticos com intermediários, pela força da fé que traduzem em violência primitiva, num ataque directo ao coração da democracia. O resultado está à vista de todos.
A morosidade da lógica foi trocada pela viralidade da demagogia, impulsionada pelas redes sociais, organizada através de ferramentas de reunião digital longe do escrutínio de todos. A acção das principais tecnológicas durante o mandado de Trump, tentando moderar o imoderável Presidente norte-americano, a mudança constante de plataforma dos conspiracionistas, e a facilidade com que embarcaram numa narrativa como a de Q, mostram as raízes de um problema mais difícil do resolver do que derrotar Trump em eleições. Trump foi escolhido por um eleitorado que não queria um Presidente mas antes um salvador de plenos poderes, de inspiração religiosa. E enquanto esteve no poder fez tudo para deteriorar os intermédios que advogam pela razão na sociedade democrática, ora difamando os media, ora recusando-se a reconhecer problemas como a violência policial, preferindo tratar todos ‘os outros’ como inimigos da sua visão sintética e homogénea.
Num país onde frequentemente se apontaram críticas ao carácter revolucionário de propostas políticas, onde se antagonizaram as forças de progresso que protestavam por mais justiça social, onde o socialismo continua a ser um bicho papão, acabam por ser os arautos da americanidade a deixar cair a maior nódoa sobre a bandeira que tanto dizem prezar. Aqueles que cheio de si, o sistema não considerou nunca os outros, como evidenciam as diferenças no tratamento policial. Da invasão do Capitólio, como efeitos directos, já existem feridos e mortos a lamentar, mas os efeitos desta ferida na imagem global do que é uma democracia sentir-se-ão como réplicas, durante anos. A democracia como se conhece, um processo moroso e com uma componente institucional forte que dissuade a personalização das políticas ou o individualismo autoritário é a materialização de um pensamento político que aceita e assimila a complexidade. A abordagem de Trump e dos que ontem perpetraram a invasão é a representação dos que perante perguntas complexas atiram respostas parvas convictos de que a sua visão é mais clara que a dos demais e que em última instância a sua persistência é a lógica suficiente para que o que pensam se torne realidade.