O Programa da CE para 2021: Política Externa Cautelosa “num Mundo cada vez mais Polarizado”

O Programa da CE para 2021: Política Externa Cautelosa “num Mundo cada vez mais Polarizado”

29 Dezembro, 2020 /
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A Comissão Europeia revelou o seu programa político para 2021. Este é o 2º de 3 artigos que vamos lançar sobre o tema, focado nas Políticas Externas, Autonomia Estratégica, Políticas Migratórias e Saúde.

“A necessidade de revitalizar e reformar o sistema multilateral nunca foi tão urgente”. Palavras da Presidente von der Leyen no seu discurso do Estado da União, em que recusou pôr a “Europa primeiro” e sinalizou uma “abordagem humana” à migração. Para o próximo ano, direitos humanos, política externa, regulação e rule of law estarão no centro da ação da Comissão Europeia (CE).

Uma UE mais Interventiva à Escala Global?

A promessa de “uma Europa forte” percorre comissões. Em 2017, o então Presidente Jean-Claude Juncker pediu que a União Europeia (UE) se tornasse “num interveniente mais forte no mundo”. No ano seguinte, frisou que “o mundo de hoje precisa de uma Europa forte e unida”. Para o próximo ano, essa é também uma promessa da Comissão von der Leyen.

“Numa ordem internacional polarizada”, refere o documento do executivo, “a CE garantirá que a Europa assume o seu papel decisivo no Mundo (…), reforçando um sistema multilateral pautado por regras, bem como parceiras regionais e globais”. Nesse sentido, a CE prevê, para o segundo trimestre de 2021, o anúncio de uma declaração conjunta sobre o reforço da contribuição da UE para um multilateralismo assente nos princípios do Estado de direito. Em particular, o objetivo da CE é “liderar reformas na Organização Mundial de Saúde (OMS) e na Organização Mundial do Comércio (OMC)”.

Outro pilar da estratégia europeia de política externa é a ajuda humanitária. Segundo a Organização das Nações Unidas, um número recorde de 235 milhões de pessoas necessitarão de ajuda humanitária no próximo ano. Para o período 2021-2027, a CE promete disponibilizar €11 mil milhões em projetos de ajuda humanitária – quase mais quatro milhões do que no período 2014-2020. No próximo ano em particular, o foco do executivo será “trabalhar em novas formas de cooperar com parceiros, estudar como utilizar ferramentas digitais para melhorar modalidades financeiras e de entregas, e ainda melhorar o nexo humanitarismo-desenvolvimento-paz”.

Porém, de acordo com Mats Lucia Bayer, membro do Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas (CADTM), os programas de auxílio humanitário da UE “aumentam a dependência de países do Sul Global para com os europeus”. Na sua opinião, “fundos como o Fundo Fiduciário de Emergência para África financiam a construção de fronteiras físicas, campos de internamento, etc, de forma a impedir que as suas populações cheguem às fronteiras europeias”. Lembrando o legado colonial em muitos países africanos, Bayer afirma que “uma política de auxílio apropriada não deve assentar numa atitude paternalista para com países do Sul Global; antes, deve basear-se em igualdade e dignidade para essas populações, respeitando a sua autonomia”.

Rejeitando esta crítica, Nathalie Loiseau, eurodeputada do Renew e Presidente da Subcomissão da Segurança e da Defesa do Parlamento Europeu, afirma que “a UE apoia civis sem qualquer discriminação, atuando onde os líderes políticos locais falham”. Para a parlamentar, as políticas de ajuda humanitária do bloco têm como foco principal “mulheres, crianças e pessoas vulneráveis, e presta atenção ao contínuo entre missões de paz, assistência em casos de emergência e desenvolvimento”.

Autonomia Estratégica e a Posição da Europa no Mundo

No dia 28 de setembro, Charles Michel, Presidente do Conselho Europeu (EUCO), referiu-se ao termo ‘autonomia estratégica’ como “um conceito que pode ter diferentes conotações, dependente do contexto”, e que tem três objetivos: “estabilidade, disseminar os nossos [europeus] padrões e promover os nossos [europeus] valores”. No dia seguinte, o comissário para o mercado interno Thierry Breton ofereceu o seu contributo à discussão, rejeitando a ideia de produzir tudo na Europa – uma abordagem protecionista –, explicando que autonomia estratégica é “soberania ou resiliência; não nos isolarmos do mundo, mas sim termos escolha, alternativas, competição. Evitar dependências indesejadas, tanto economicamente como geopoliticamente”.

Já em novembro, o vice-Presidente da CE Maroš Šefčovič esclareceu o que entende por “autonomia estratégica aberta”. Trata-se da “capacidade para reduzir dependências e reforçar a segurança no fornecimento de bens estratégicos”, enquanto “se preservam os benefícios de uma economia aberta, apoiando parceiros em todo o mundo”. 

Apesar de a CE não referir explicitamente a “autonomia estratégica” no seu plano para 2021, o conceito está implícito na “defesa da ordem num mundo polarizado”. Desde logo, von der Leyen refere-se cautelosamente à relação da Europa com a China, que considera ser “simultaneamente uma das mais importantes e uma das mais desafiantes”. Isto porque o país é “um parceiro de negociação, um concorrente económico”, mas também “um rival sistémico”.

Nesse sentido, 2021 verá um impulso significativo na política de defesa da UE, com a ativação do Fundo Europeu de Defesa, que a anterior Comissão Juncker caraterizou como “um esforço sem precedente para proteger e defender os europeus”, e um “contributo para a autonomia estratégica da UE”. Segundo a eurodeputada Nathalie Loiseau, “este fundo irá além do seu atual pré-programa [Programa Europeu de Desenvolvimento Industrial no Domínio da Defesa], e terá um orçamento de €8 mil milhões para os próximos sete anos”. A eurodeputada defende ainda que “a Europa não pode depender de terceiros em tecnologias-chave, pelo que esta iniciativa é bem-vinda para a UE se tornar mais assertiva”.

Apesar desta ênfase recente na autonomia estratégica, a CE celebrou a vitória de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos com uma “nova agenda transatlântica para a mudança global”. Este estímulo à cooperação entre os dois blocos tocará em domínios como o combate às alterações climáticas, a reforma da OMS e da OMC, a defesa dos direitos individuais e dos princípios democráticos, e ainda a responsabilidade das plataformas digitais e das grandes empresas tecnológicas.

Outro tema em cima da mesa para os próximos tempos é o EU Global Human Rights Sanctions Regime, a versão europeia do Magnitsky Act. Anunciado no início de dezembro, pretende punir perpetradores de violações de direitos humanos e associados com penas que vão desde a proibição de entrada na UE ao congelamento de ativos. Os crimes referidos incluem genocídio, tortura, escravatura, detenções arbitrárias e tráfico sexual.

Este “European Magnitsky Act” já tinha sido sugerido pela Presidente von der Leyen no seu discurso do Estado da União, ocasião em que apelou à “mudança [para um regime de sanções] com recurso a voto por maioria qualificada” mediante um único sistema europeu.

Desta forma, conclui a Presidente, os Estados-membros deixariam de “acusar a Europa de ser muito lenta” em “atentados aos direitos humanos, tanto em Hong Kong como com os Uigures”. Na mesma linha, o Partido Popular Europeu vê com bons olhos esta proposta, referindo que “precisamos deste instrumento na UE agora para sancionar indivíduos que violam os direitos humanos na Bielorrússia, na Venezuela, na região de Xinjiang ou em qualquer outra parte do mundo”.

Política Migratória: Reforçar a Frontex, Salvar Vidas e Facilitar Retornos

No final de setembro, a CE anunciou o Novo Pacto em Matéria de Migração e Asilo, “uma nova abordagem para a gestão das fronteiras”. Segundo a Presidente von der Leyen, a única diferença entre o Novo Pacto e o anterior Sistema Europeu Comum de Asilo é “a substituição do Regulamento de Dublin por um sistema europeu de governação”. Este último visa oferecer mais flexibilidade aos Estados-membros, tanto na relocação de recém-chegados como em apoio operacional. Ou seja, os países são obrigados a salvar migrantes, mas não a acolhê-los – cedendo às exigências da ‘coligação de bloqueio’ formada por Hungria e Polónia.

O Novo Pacto guia-se pelos princípios da eficiência e solidariedade, e, segundo a CE, “estabelece um sistema de governação em que os desafios da migração são abordados de forma abrangente”. Apesar destas propostas para agilizar processos burocráticos e de triagem, Maria Arena, eurodeputada dos Socialistas & Democratas e Presidente da subcomissão de Direitos Humanos do Parlamento Europeu (PE), afirma que “ainda há muito trabalho pela frente para garantir que o processo beneficia aqueles que procuram asilo”.

Para tentar garantir esses benefícios, o executivo avançou em novembro o Plano de Ação para a Integração e a Inclusão 2021-2027, baseado numa “educação inclusiva”, na “melhoria das oportunidades de emprego e do reconhecimento das competências das comunidades migrantes”, no “acesso a uma habitação adequada e a preços acessíveis”, e na “promoção do acesso aos serviços de saúde”.

No próximo ano, outros elementos do Novo Pacto serão revelados: a Estratégia em Matéria de Regresso Voluntário e de Reintegração, o reforço da União da Segurança e um pacote de medidas relativas a competências e talentos. Antes disso, a CE terá de dialogar com o PE e com o Conselho da UE, “onde tentará chegar a um consenso em relação ao novo mecanismo de solidariedade, bem como aspetos de renovados métodos de triagem e procedimentos fronteiriços”, explica Arena.

Num artigo publicado em maio deste ano, a investigadora Lena Näre discute “violência burocrática” na Finlândia. Näre entrevista Nadim, um jovem afegão que se tentou enforcar depois de o seu pedido de asilo ter sido rejeitado duas vezes. Medicado com antidepressivos, Nadim disse-lhe que “no Afeganistão os talibãs matam com armas; na Finlândia o governo mata com uma caneta”.

Tentativas de suicídio ou autoflagelação entre requerentes de asilo vêm-se acumulando nos últimos anos. Só no estado de Hesse, na Alemanha, 70 tentaram matar-se ou ferir-se em 2017. Em 2018, segundo a organização médico-humanitária Médicos Sem Fronteiras, houve crianças que procuraram pôr fim à vida em resposta às más condições do campo de refugiados de Mória. Mais recentemente, 124 pessoas saltaram de um navio de resgate enquanto esperavam por luz verde para desembarcarem na Sicília. Já o jornal Times of Malta divulgou em setembro um vídeo em que um grupo de migrantes, fechados em contentores, reclamam contra más condições de higiene, falta de comida e de cuidados médicos.

Franziska Grillmeier, jornalista em Lesbos, refere que “estruturas campais como a de Mória ou a mais recente, Kara Tepe, não podem funcionar sem violações de direitos humanos”. Há cinco anos a acompanhar a vida de milhares de requerentes de asilo, Grillmeier refere que “o que se passa não é um falhanço político, mas uma estratégia política para impedir que refugiados e outras pessoas à procura de abrigo entrem na UE”. Para o futuro, antecipa “mais campos, e estruturas cada vez mais fechadas”.

Em relação a este fechamento, por exemplo, a Grécia proibiu no início de dezembro a divulgação de qualquer informação sobre as estruturas temporárias de acomodação a indivíduos externos à atividade nos campos. Com efeito, o que se passa nesses campos passa a ser secreto, e “qualquer violação das obrigações terá consequências legais”.

No centro das críticas tem estado a Frontex, a Agência Europeia de Guarda de Fronteiras e Costeira, dotada de um orçamento de €460 milhões para 2020. São vários os relatos de abusos e violência contra migrantes por parte de “uma das agências da UE que mais rapidamente tem crescido”. Em 2019, a DW noticiou casos de brutalidade em países como a Grécia, Bulgária e Hungria. Em novembro de 2020, os jornais EUobserver e Der Spiegel revelaram pushbacks na Grécia e na Croácia por parte das guardas costeiras. O jornal alemão denuncia ainda casos de indivíduos espancados, eletrocutados e a quem foram arrancadas unhas dos pés.

Como explica Melanie Fink, professora na Universidade de Leiden, “o regulamento fundador da Frontex obriga a agência a monitorizar o cumprimento dos direitos humanos durante todas as suas operações e a suspender ou terminar quaisquer atividades em que ocorram violações [desses direitos]”. Porém, a situação complica-se quando as autoridades são chamadas a prestar contas. Isto porque, continua Fink, “apesar de a UE ter uma ‘https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistração partilhada’ com autoridades nacionais na implementação e aplicação da legislação da UE, o seu judiciário divide-se entre o nível nacional – que decide sobre a legalidade da conduta nacional – e o nível da UE – que decide sobre a legalidade da conduta da UE”. Ou seja, apesar de a Frontex e as autoridades nacionais cooperarem na aplicação das regras da UE e de, segundo o Novo Pacto, “partilharem a responsabilidade”, Fink considera que “é difícil separar as suas ações por motivos de responsabilização – cada participante tem de ser chamado a um tribunal diferente”.

No Novo Pacto em Matéria de Migração e Asilo, a Comissão Europeia anuncia não só o favorecimento de “cooperação com países terceiros para facilitar o regresso e a readmissão” de migrantes e requerentes de asilo, mas também “o mandato reforçado da Frontex”. Um dia depois da apresentação destas medidas, a Amnistia Internacional publicou um relatório onde revela que “dezenas de milhares de refugiados e migrantes na Líbia arriscam a vida no mar em busca de segurança na Europa, para serem intercetados pelo caminho”. No documento, a ONG acusa a UE de “colaborar com as autoridades líbias – oferecendo lanchas, treino e assistência – para garantir que pessoas que tentem sair do país por via marítima são reconduzidas para terra”. Aí, “são sujeitas a detenções arbitrárias, tortura, extorsões e fome, e não têm direito a cuidados médicos”. Em maio de 2020, diz o relatório, “um grupo de homens armados abriu fogo sobre cerca de 200 refugiados e migrantes presos num ‘campo’ controlado por traficantes”.

Para a eurodeputada Maria Arena, que “condena veemente atos violentos contra requerentes de asilo”, “a UE necessita de um mecanismo independente de monitorização”, iniciativa que, de certa forma, está prevista no Novo Pacto apresentado pela Comissão. Com efeito, “[o]s Estados-membros são obrigados a criar um mecanismo de controlo independente” sob a orientação da Agência dos Direitos Fundamentais.

Arena relembra ainda que “após os relatos de violência na Croácia, o provedor de justiça da UE anunciou um inquérito sobre como a CE permitiu que fundos continuassem a ser usados sem assegurar o cumprimento dos direitos humanos”, acrescentando que a ação do provedor representa “um primeiro passo importante na luta contra estes abusos flagrantes e na prestação de contas”.

Para responder às más condições em que vivem os requerentes de asilo, no início de dezembro a CE chegou a acordo com as autoridades gregas para construir um novo centro de receção de refugiados na ilha de Lesbos em setembro de 2021. Segundo o executivo, “o novo centro terá uma área de residência com contentores, (…) contentores médicos para primeiros socorros, espaços de lazer para a prática de desporto, recreios, casas pré-fabricadas para educação formal e não-formal”, “[c]ozinhas comuns” e “[q]uartos especiais para pessoas com deficiência”.

O reforço da União Europeia da Saúde

A pandemia da COVID-19 colocou a nu as debilidades tanto dos sistemas de saúde europeus como da resposta unitária do bloco. A própria CE admite que “a atual crise sanitária expôs a necessidade de reforçar mecanismos de gestão de crises”, e propõe por isso o fortalecimento da União Europeia da Saúde. Em particular, o executivo prevê criar a Autoridade para Resposta a Emergências Sanitárias – final de 2021; reforçar os mandatos do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças e da Agência Europeia de Medicamentos; e melhorar a preparação, vigilância e comunicação de dados de futuras emergências sanitárias.


Artigo de Nuno Martins. Licenciado em Ciências da Comunicação pela NOVA/FCSH, Mestre em Ciência Política pelo ISCTE. Interessado no que se passa na Europa e no Extremo Oriente.

Autor:
29 Dezembro, 2020

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