Se no século XX os planos do amor e da política eram inseparáveis – inúmeras relações amorosas ou reforçavam os valores conservadores da família e de uma relação desigual ou, tanto no conteúdo como na forma, iam precisamente contra as correntes sociais que os sufocavam -, poderíamos pensar que, tendo em conta os inúmeros direitos que foram conquistados entretanto, seria possível discutir, actualmente, o amor independente de qualquer análise política. No entanto, não acredito que seja o caso. Isso seria considerar que chegámos, no nosso caminho como comunidade, a um ponto de equilíbrio e que, portanto, poderíamos simplesmente correr circunscritos num horizonte pitoresco construído num tempo e numa sociedade imutável.
Partindo de uma perspectiva política, acredito que ainda não tomámos consciência como colectivo de um aspecto fundamental do tempo presente. Quando alguém diz que não quer ter filhos, tem essa posição no contexto actual: como cidadão de um mundo global e numa sociedade cada vez mais progressista que dá espaço à mulher para controlar o tempo e o esforço do seu corpo; quando alguém se questiona o que é o amor, deve tomar consciência de que a sua reflexão tem de tomar outros moldes: “o que é amar no século XXI?”. Naturalmente, não tenho as respostas (nem pretendo dá-las), mas sei que, na minha tomada de posição, tomando consciência das desigualdades sociais e económicas existentes a uma dezena de passos de onde me encontro a escrever esta reflexão, existem cada vez mais factores que me levam a acreditar que o acto de amar implica um conjunto de tomadas de posições políticas e, naturalmente, sociais – são planos inseparáveis. Por outras palavras, amar continua a implicar uma tomada de posição em relação ao mundo que nos rodeia. Amar alguém, no sentido em que não é um sentimento efémero, e, consequentemente, não exigindo ao indivíduo uma reacção imediata, coloca-o numa posição antagónica relativamente à diversidade dos estímulos actuais, que já não se cingem à metrópole – quero parar para amar, afastado desta poluição.
Amar é parar em relação à velocidade desenfreada de uma sociedade altamente consumista, caracterizada por uma comunicação rápida, frenética e emocionalmente débil; no entanto, tal não implica parar politicamente, no sentido da inacção ou da ambiguidade – de uma mítica neutralidade suíça. Amar, na realidade, consiste em exigir à comunidade à qual pertencemos uma mudança de rumo. Recuso-me a amar com base num mensageiro algorítmico e aparentemente imparcial – abraço a ideia de amar na rua, símbolo de excelência da democracia: amar num parque, exigindo mais espaços verdes, afastados da poluição sonora e visual dos carros, da publicidade, das marcas; de amar num teatro ou numa sala de cinema, exigindo investimento na cultura que vá para além dos míseros, arrendados e gordos 0%; de amar uma obra literária, exigindo uma mudança radical nas políticas neo-liberais da habitação, de forma a garantir-me o direito a uma habitação condigna (os jovens valem bem mais do que dez metros quadrados e uma casa-de-banho para se limparem da insegurança e ansiedade causadas por um mundo cada vez mais incerto, guiado por estatísticas e probabilidades).
Em suma, amar com tempo exige uma vida quotidiana que não se resuma à existência, durante as oito horas diárias dentro de um cubículo de uma consultora, cujo trabalho esgotante e competitivo, na sua forma mais degradante ao nível intelectual, nos desumaniza: retira individualidade e, ao mesmo tempo, o sentimento de pertença a um projecto colectivo. Amar é uma reivindicação, porque como acto nunca se esgota na pessoa com quem partilhamos directamente as nossas emoções; contrariamente, ocorre num espaço físico, num contexto social e político, resultando num acto em comunidade entre duas pessoas. A verdadeira realização, depois do reconhecimento dos sentimentos, encontra-se precisamente em abraçar os dois planos complementares (o amor e a política.) Assim, o verdadeiro amor é aquele que põe em causa os dogmas da sociedade, que se nega a acreditar que este se limita a uma interacção líquida e ilusoriamente confortável dentro de categorias estereotipadas e tecnocráticas, resultantes de uma filtragem prévia, através de produtos reluzentes e de mensagens animadas e simplistas, denotando um vazio anómico. Contrariamente, à sociedade exige-se o retorno de um choque desconfortável e necessário entre duas visões densas do mundo e do ser humano, sobre as quais só o tempo poderá clarificar e do qual resulta o amor entre duas pessoas: nós, jovens, precisamos deste sentimento cada vez mais; precisamos de viver, de nos apaixonarmos e de não termos medo da política, do confronto, das diferenças.
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Texto de João Pinho.