Água vai ser negociada em Wall Street: o valor da escassez

Água vai ser negociada em Wall Street: o valor da escassez

9 Dezembro, 2020 /

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Este é um momento histórico, é a primeira vez que a água se negoceia em 'contratos futuros' em Wall Street, um sinal claro do medo de escassez da água.

Onde quer que haja um mercado há a possibilidade de investir nos activos em transação e fazer lucro. Se esse mercado for instável, dado a subidas e descidas, tanto melhor para os investidores que têm nesses grandes movimentos de valor a possibilidade de fazer dinheiro. Neste domínio, o da finança, a transação de acções é o negócio mais comum e serve para entendermos os demais. Para lucrar com a compra de uma acção, o investidor procura comprá-la num ano de baixo valor para que a possa vender mais tarde a um preço mais elevado. O mesmo acontece em qualquer outro mercado com as devidas especificidades, como os mercados de contratos de futuros de mercadorias, que agora chegam… à água.

O que são contratos de futuros?

Os mercados de contratos de futuros (future commodities) são um tipo de negociação padronizada que não implica a transação do bem negociado mas sim um contrato-promessa com uma quantidade de produto e um dia definido no futuro para a sua transação. O exemplo mais popular deste tipo de mercado (e que quase todos os dias ouvimos falar) é o do crude, que nos chega às notícia sob a forma de preço por barril, um valor baseado no equilíbrio e na procura da oferta que se estabelece no mercado.

Este tipo de transação dá-se perante mercadorias de alta importância – para além do crude, existem mercados para trigo, milho, ouro, prata, gás natural, soja, etc – e cuja disponibilidade pode variar, fazendo variar altamente o preço. Os mercados de futuros servem para, de certo modo, aumentar a transparência sobre o valor de uma commodity (matéria-prima), ao mesmo tempo que permite que investidores antecipem escassez dessa mesma mercadoria e possam lucrar com ela.

Mas como é que a água chega aqui?

A chegada da água ao mercado das commodities não aconteceu de um dia para o outro; nem tão pouco estamos a falar de toda a água do mundo. Ainda que existam vários esquemas de transação de água, e por exemplo na Austrália a água também seja cotada em bolsa. Este caso é paradigmático, mas por enquanto não é global; o futuro da água que chega agora aos mercados restringe-se ao estado norte-americano da Califórnia, e a chegada a Wall Street foi precedida pela criação do Nasdaq Veles California Water Index (NQH2O), o índice de valorização da água a que estará associada a negociação de futuros.

Isto acontece num estado responsável por 9% do consumo de água dos Estados Unidos da América, o 2º país mais consumidor do mundo, e historicamente conhecido por períodos de grande seca, seguidos de períodos de grande precipitação que fazem o valor da água variar altamente – fenómeno que se relaciona intimamente com a economia estadual, em que a agricultura desempenham um papel muito importante, mas não só, também as autarquias concorrem no mercado da água para garantir que esta não falta nas torneiras das populações. Segundo estimativas, e para termos uma ideia, entre 2016 e 2019 as transações de água na Califórnia totalizaram 2,6 mil milhões de dólares, segundo a CNN Business.

A ideia da criação do índice de valorização da água, criado há apenas dois anos, surgiu como uma forma de todas as pessoas do estado, especialmente detentores de terras, agricultores, empresários, e até decisores municipais, poderem acompanhar as variações do preço deste recurso conferindo a todo o processo de transação uma maior transparência. A transação de contratos de futuro promete adicionar a esta transparência uma camada de previsibilidade; com este instrumento, os negociadores de água podem “acordar” o valor do bem no futuro, permitindo lidar melhor com a sua eventual escassez. Assim, em teoria, a transação dos futures de água não tem que necessariamente aumentar a especulação no mercado da água, embora isso possa acabar por acontecer caso as variações do mercado se tornem apetecíveis para esse tipo de perfil de investidor. A negociação de futures será gerida pela CME Group, uma empresa de gestão de mercados que, por enquanto, ainda não revelou os pormenores deste mercado da água, como, por exemplo, que a que participantes será permitida a entrada no leilão.

Este é um momento histórico, é a primeira vez que a água se negoceia em ‘contratos futuros’ em Wall Street, um sinal claro do medo de escassez da água, não só na Califórnia, estado que recentemente foi fustigado por uma onda de incêndios de grandes proporções, mas também em todo o mundo, fustigado pela crise climática que torna instáveis os ciclos da água condenando zonas a períodos de secas extremas ou inundações severas. Recentemente, até Março de 2019, e desde 2011, a Califórnia estava sobre alerta de seca, estando mesmo em situação de emergência durante o mês de Julho de 2014, segundo a Bloomberg.

O mercado de contrato de futuros de água procura, em tese, acrescentar transparência e previsibilidade à transação deste recurso, apresentando-se como uma forma de gestão de risco de um recurso em escassez. Contudo, na prática, afigura-se menos como uma resposta ao problema da escassez e mais como uma forma de equilibrar os mercados perante esta possibilidade. Neste caso, pela localização específica do mercado e pelo facto de a disponibilidade do recurso não ser globalmente igual, estima-se que a negociação na Califórnia não afecte os preços do recurso a nível mundial, até pela dificuldade que haveria em transportar, de facto, a água. Ainda assim, Simon Puleston Jones, da Europe at the Futures Industry Association, uma correctora norte-americana, ouvido pelo Finantial Times, revela o seu cepticismo ao dizer que “se há classe de recurso que não quero ver aberta a potencial manipulação ou ao aumento de preço por pressão dos mercados financeiros é o recurso de que toda a Humanidade precisa para a sua sobrevivência”, acrescentado que “precisamos de pensar no potencial directa e indirectamente negativo de tratar a água como um activo e não como um recurso”.

 

Actualização 16:13: Actualização do subtítulo para correção da afirmação.

Autor:
9 Dezembro, 2020

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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