Este texto constitui um excerto de A Torção dos Sentidos: Pandemia e Remediação Digital, de João Pedro Cachopo, que virá a lume pela Documenta no início de Dezembro de 2020. Com a sua pré-publicação, oferece-se ao leitor uma experiência afim a uma outra que por estes dias se tornou menos comum: folhear um livro numa livraria.
Interrogando-se sobre a crise pandémica em curso, o livro parte de uma hipótese provocatória: a pandemia não é em si mesma o acontecimento. O acontecimento, precipitado pela conjunção de isolamento preventivo e uso exacerbado de tecnologias de remediação digital, é a «torção dos sentidos» por meio dos quais nos imaginamos próximos ou distantes de tudo o que nos rodeia. É pelo ângulo desta hipótese que muitas das questões sobre a presente crise são abordadas neste livro. O que revela a pandemia sobre o mundo em que vivemos? De que modo está a transformar as nossas vidas? Como podemos e devemos posicionar-nos em termos éticos, políticos e artísticos perante estas transformações?
1.Tornou-se comum comparar o impacto da pandemia de Covid-19 com um abalo dos alicerces de civilização mundial. O título escolhido por Slavoj Žižek para a colectânea de textos sobre a pandemia publicada logo em Abril, A Pandemia Que Abalou o Mundo, é disso ilustrativo. Mas é-o também o modo como Byung-Chul Han adapta a «teoria do choque» de Naomi Klein ao seu pensamento. Numa sociedade do cansaço, caracterizada pelo excesso de positividade e virtualização, a ameaça de um vírus real — e já não de um vírus informático — representaria o retorno traumático do real em toda a sua negatividade e concretude.1 Foi este real que subitamente se abateu sobre o mundo e sobre nós. Dir-se-ia, em termos metafóricos, que o abalo pandémico provocou a um só tempo um sismo e uma concussão.
Seduz-me a comparação do impacto da pandemia com uma lesão corporal. Arrisco, contudo, conduzi-la noutra direcção. Na quarentena global, por maior que fosse o isolamento, não deixámos de comunicar, de interagir, de amar, de trabalhar ou de estudar. Tivemos, porém, de fazer tudo isso por outros meios. Ao reorganizarmos os ritmos do corpo e as rotinas da mente, fixámos os olhos em ecrãs, inclinando o corpo para computadores, smartphones e tablets, entre outros dispositivos digitais. A lesão causada pela pandemia decorre tanto de um choque inesperado do real quanto da súbita necessidade de reajustar a postura do corpo. A urgência exigiu uma adaptação imediata. Além de uma concussão, sofremos um torcicolo.
Num primeiro momento, podemos pensar esse torcicolo como contractura dolorosa, como lesão causada por uma transição demasiado brusca entre aceleração e travagem. Porém, num segundo momento, e expandindo a metáfora, devemos investigar a hipótese de que este torcicolo conduza a um rearranjo das nossas faculdades, do qual não é impossível que surjam novas formas de flexibilidade imaginárias. Perdemos o norte da proximidade e o sul da distância. Sentimo-nos desorientados no espaço e no tempo. Cabe remapear os lugares em que existimos.
2.Hoje, e cada vez mais desde que a pandemia abalou o planeta e os corpos, reconhecemos a revolução digital, à semelhança de como Karl Marx reconheceu a revolução industrial, como fonte daquela «iluminação universal em que todas as demais cores estão imersas e as modifica na sua particularidade»2. Se Herbert Blau, citando esta mesma passagem de Marx, defendeu que o cinema, tornado possível pela reprodução mecânica da imagem e do som, foi o «éter» do século XX3, podemos hoje reconhecer na remediação digital da realidade, que torna a sua representação maleável como nunca, o «éter» deste início de século XXI. É ele que «determina o peso específico de toda a existência que nele se manifesta»4. Tudo parece sujeito à sua influência, embriagado dela. São muitas as inquietações que esta embriaguez suscita. Durante a quarentena, sentimo-las nervosamente à flor da pele. Que vida é esta que levamos confinados em casa, exilados do mundo? Estas aulas no Zoom, estes concertos no YouTube, estas conversas no WhatsApp — será que o são? Serão realmente aulas, concertos, conversas? Não serão meros simulacros — versões empobrecidas, adulteradas, inautênticas do que é o ensino e a aprendizagem, a prática artística e a experiência estética, a convivência humana?
Hoje, tendemos a amaldiçoar a distância. Convém, no entanto, evitar a falácia que consiste em supor um nexo entre o uso das tecnologias que permitem o «contacto à distância» e uma tomada de partido pelo distanciamento. Não faz sentido maldizer estas tecnologias tanto ou mais do que o vírus. E cabe não esquecer que os novos media, que permitem o convívio à distância, as aulas à distância, os concertos à distância visam também, em última análise, uma aproximação. Contêm, por outras palavras, uma «promessa de proximidade».
Podemos (e devemos) discutir que tipo de proximidade é essa. Podemos (e devemos) discutir quem lucra com essa promessa. Podemos (e devemos) discutir em que medida ela pode ser cumprida. Mas não podemos negar que essa promessa existe e que caracteriza estes novos media. Neste aspecto, a remediação digital é herdeira da reprodutibilidade técnica, que revolucionou a experiência moderna na transição entre os séculos XIX e XX.
3.Esta «promessa de proximidade» tem um sentido político ao qual Walter Benjamin, nas suas reflexões sobre a relação da tecnologia com a arte e a política, foi especialmente sensível. É esse o cerne do seu famoso — e nem sempre bem compreendido — ensaio sobre «A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica». O carácter positivo, tal como o apresenta neste estudo, da possibilidade da reprodução técnica é, justamente, a aproximação: a oportunidade de tornar as coisas, e em particular a obra de arte, mais próximas de nós. «“Aproximar de si” as coisas, espacial e humanamente», escreve o teórico alemão, «representa tanto um desejo apaixonado das massas do presente como a sua tendência para ultrapassar a existência única de cada situação através da recepção da sua reprodução»5. É este «desejo de aproximar de si» as coisas que explica a importância política do cinema e da fotografia, a par de tudo o que na arte decorre da possibilidade de reprodução técnica, nos tempos modernos.
No contexto daquele ensaio, o resultado da reprodutibilidade técnica, que ultrapassa a «existência única de cada situação», é a transformação de toda a verticalidade visível ou audível em horizontalidade táctil. Tal é a tradução sensorial do seu teor político. Esta reprodução fotográfica da Mona Lisa, cujo original, patente no Louvre, só posso contemplar a uma certa distância, posso tocar-lhe, recortá-la, justapô-la, numa colagem, a qualquer outra imagem. Aquele registo fonográfico, manuseio-o, interrompo a sua reprodução, retomo-a mais tarde. Nada é suficientemente distante ou inacessível ou altivo que não admita aproximação. O princípio da aproximação é a dinamite de todas as hierarquias — na experiência da arte, no ímpeto da sua recriação e sempre que arte e vida se cruzam.
Esta aproximação incidiu sobre objectos visíveis e audíveis, cuja existência se espraia e se desdobra no espaço e no tempo. Não é só do distante no espaço mas também do distante no tempo que as tecnologias de reprodução e remediação nos permitem aproximar-nos. O telefone tornou próxima a voz de quem estava longe. Em contrapartida, a fonografia, fixando o presente audível — tal como a fotografia fixava o presente visível — criou os traços no encalço dos quais os vindouros se viriam a aproximar do passado. Eis o que de tão óbvio nos passa amiúde desapercebido: os registos fotográficos e fonográficos — a timidez aparente das peixeiras de New Haven, fotografadas por David Octavius Hill e Robert Adamson em meados do século XIX, a desenvoltura vocal de Gustave Eiffel, registada por um fonógrafo, no topo da torre que tem o seu nome, em 1891 — transformam-se, continuam a transformar-se a cada segundo que passa, em vestígios de um passado cada vez mais longínquo. Acenam desde uma lonjura cada vez mais distante.
Em suma, em virtude das transformações tecnológica na transição entre os séculos XIX e XX, nos termos em que no-las apresenta Benjamin, gera-se uma horizontalidade caleidoscópica em que colapsam as hierarquias não só entre o intocável e o manuseável, o elevado e o rasteiro, o sublime e o vulgar, mas também entre o efémero e o permanente, o que se perdeu do passado e o que se conserva para o futuro. O preço desta aproximação é a renúncia à experiência aqui e agora de algo único: o famigerado «declínio da aura». Vejo esta fotografia; ouço aquela gravação. Tenho uma experiência daquilo que nelas se vê e ouve reproduzido na justa medida em que prescindo da experiência original. Estão em causa meras cópias. Falta-lhes o que só o original possui: a autenticidade de um encontro aqui e agora com uma ocorrência ou um objecto singulares. Esta falta gera uma desconfiança que nunca desapareceu por completo e que hoje retorna, sobrevive e recrudesce na inquietação com a experiência remediada.
João Pedro Cachopo, A Torção dos Sentidos: Pandemia e Remediação Digital, Lisboa, Documenta, 2020, pp. 41-45.
- Byung-Chul Han, A Sociedade do Cansaço, trad. Gilda Lopes Encarnação, Lisboa, Relógio D’Água, 2014; «A emergência viral e o mundo de amanhã», Sopa de Wuhan, pp. 97-112.
- Karl Marx, Grundrisse. Manuscritos económicos de 1867-1858. Esboços da crítica da economia política, trad. Mario Duayer e Nélio Schneider, Boitempo, p. 82.
- Herbert Blau, Blooded Thought: Occasions of Theater, New York, Performing Arts Journal Publications, 1982, p. 121.
- Karl Marx, Grundrisse, op. cit., p. 82.
- Walter Benjamin, «A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica», A Modernidade, trad. João Barrento, Lisboa, Assírio e Alvim, 2017, p. 213.