Surgiu no mês de Outubro e em pouco tempo ganhou um impacto considerável, para uma causa cada vez mais necessária. Chama-se #NãoPartilhes e pretende acabar com a corrente de partilha de fotos/vídeos sem consentimento. “Queremos ajudar e apoiar as vítimas, consciencializar e quebrar este ambiente de ‘vergonha’ em relação a este assunto”, começa por revelar Inês Marinho, fundadora do movimento. Com a constante modernização da tecnologia, o advento das redes sociais, a possibilidade de criação de conteúdo e a facilidade de tirar e partilhar vídeos e fotografias digitais, o fenómeno de partilha de conteúdo não autorizado tem vindo a aumentar, tornando-se num caso sério e de preocupação no mundo digital, a que a sociedade civil não tem ficado indiferente.
A partilha não autorizada de conteúdo retirado do seu contexto original ganhou maior tração na primeira década dos anos 2000, e os casos mediáticos começaram a surgir como prova disso mesmo. Desde a polémica com o congressista norte-americano Anthony Weiser, à exposição pública das fotos da atriz Jennifer Lawrence, são várias os exemplos mainstream a perpetuar comportamentos ilegais e danosos para as vítimas. Dentro deste fenómeno as motivações para o abuso são várias, na maioria das vezes envolvendo ex-parceiros românticos, casos que se categorizam de revenge porn.
Um estudo feito no ano passado pelo Instituto australiano de Criminologia revela que cerca de 3 em cada 4 entrevistados já se envolveram em “comportamentos de namoro digital”, e metade revelou ter participado em “comportamentos sexuais voluntários com autoimagem”, como a partilha de vídeos ou fotos tiradas por si mesmo. No estudo, realizado com participantes do Reino Unido, Nova Zelândia e Austrália, 39% disseram ter sofrido assédio com base em imagens partilhadas e 29% dos entrevistados descreveram sentir-se pressionados a partilhar imagens sexuais.
Mas nem sempre quem comete o crime é conhecido da vítima. Como já pudemos verificar, chega a vitimar figuras públicas e cria uma corrente de partilha que pode funcionar de várias formas. Algumas vítimas veêm os seus computadores invadidos, outras recebem e-mails de contas falsas que permitem aos hackers ter acesso a informação pessoal como passwords de contas de armazenamento — através do chamado spyware, um software que funciona como um programa automático de intrusão. Nestes casos, o software pode ser usado para o predador monitorizar todas as ações da vítima e/ou para se apropriar indevidamente de imagens e informações pessoais.
Um estudo de 2017 realizado pela Cyber Civil Rights Initiative concluiu que 1 em cada 8 utilizadores de redes sociais foram alvo de “pornografia não autorizada”, numa taxa de incidência mais elevada em adolescentes e mulheres. Este estudo fornece informações sobre a natureza das vítimas e as várias motivações dos agressores, numa pesquisa baseada em dados de 3044 participantes maiores de idade. Se olharmos por género, são 15,8% das mulheres e 9,3% dos homens. Ainda de acordo com o estudo, as mulheres têm 1,7x mais probabilidade de serem vítimas de um crime do género. O estudo também descobriu que a maioria dos incidentes de pornografia não consensual é cometida sem intenção, pelo menos expressa, de prejudicar a vítima, sendo o principal motivo “a partilha de imagens com amigos” para 79% das pessoas. Apenas 12% dos agressores entrevistados revelaram que foram motivados pelo desejo de magoar a vítima. Independentemente do motivo, as vítimas de pornografia não consensual sofrem os mesmos danos e as imagens publicadas na Internet podem ser vistas pelo público em geral, incluindo amigos, família e colegas de trabalho, com consequências graves e imprevisíveis.
Por cá não existe um estudo concreto que nos permita avaliar a situação em Portugal mas a necessidade de abordar o assunto é cada vez maior e a prova disso está na criação do movimento #Nãopartilhes. Em apenas dois dias de atividade, a página já contava com 19 mil seguidores, hoje são mais de 22 mil. Com a criação de Twitter e as imensas histórias de pornografia não consentida que receberam, o impacto é notório. Em entrevista ao Shifter, a fundadora do movimento, Inês Marinho falou-nos um pouco mais dos objetivos do #Nãopartilhes e das perspectivas que levaram à criação da página.
S: Como surgiu a ideia de criar este movimento?
Este movimento surgiu com o intuito de desmistificar um pouco este problema que existe há anos, a partilha de conteúdos íntimos de outrem sem o seu consentimento. Queremos ajudar e apoiar as vítimas, consciencializar o resto e quebrar este ambiente de “vergonha” em relação a este assunto.
S: Em apenas 2 dias angariaram cerca de 19 mil seguidores, esperavam todo este sucesso repentino? É sinal de que é preciso falar mais sobre este assunto?
I: Não esperávamos, não esperávamos também a quantidade de testemunhos, foram e continuam a ser tantos que nem conseguimos responder a todos. É um assunto que claramente precisa de ser mais falado, porque não só as pessoas têm tendência a esquecer-se como também não chega a todos.
S: “Em teoria, estabelece-se que nunca existe consentimento verdadeiro na presença de qualquer tipo de coação ou alteração do estado mental e que o mesmo não pode ser inferido através de comportamentos prévios da vítima (evitando qualquer “avaliação de carácter”) ou da ausência de resistência ou de um “não” explícito. Na prática, “não é não”, mas a ausência de um “sim” claro, consciente e livre também é “não”.” É a falta de conhecimento sobre esta afirmação que deixa passar tantas situações, na prevalência do popular “quem cala consente”. Sentem que é cada vez mais necessário falar sobre a importância do consentimento?
I: Sim, ainda é um assunto muito dúbio no pensamento de muita gente. Se falamos com as vítimas sobre a sua segurança também temos que falar com os opressores sobre consentimento.
S: Dentro das frases de exemplo ditas por quem pratica este ato ilícito e partilhadas pelo vosso movimento qual sentem ser a mais recorrente?
I: “Não mandasses.”
S: Qual pode ser o papel dos homens na divulgação desta mensagem? Acabam por ser eles o verdadeiro público do vosso projecto?
I: O nosso público é literalmente toda a gente. Tanto a pessoa que teve o seu conteúdo exposto, como a que é amiga dela e não sabe como a ajudar, como o opressor, como os amigos do opressor, como a que não sabe como abordar este assunto com os filhos. Tanto homens como mulheres, supostamente, deviam estar do lado do movimento porque estes crimes não escolhem géneros nem orientações sexuais. Queremos que saibam o que dizer tanto à vítima como ao opressor.
Repercussões em cada uma das vitimas
A pornografia não consensual pode causar danos graves e irreparáveis às vítimas, na sua vida pessoal, social e profissional. Estudos, filmes, livros e senso comum contam-nos que as vítimas acabam a sofrer de depressão contínua e severa, e de uma variedade de questões relacionadas com o trabalho, como humilhação perante colegas e superiores, ou dificuldade de sociabilização no geral que podem culminar em comportamentos auto-destrutivos. Outros diagnósticos psiquiátricos comuns incluem depressão, transtornos de ansiedade e transtorno de stress pós-traumático.
Núria Silva, de 22 anos, foi vítima de assédio sexual online e partilhou um vídeo de cerca de 7 minutos na sua página de Instagram a contar a sua história:
“Com o passar do tempo, cada vez mais me sentia à beira de explodir. No momento exato em que percebi que alguém tinha tido coragem de dar o primeiro passo, decidi também avançar com a minha partilha. Senti que seria uma boa altura, pelo simples facto de saber que não ia estar sozinha.”
Depois da coragem para partilhar o seu relato, o vídeo acabou por gerar uma atenção que não esperava, conforme contou, em conversa com o Shifter.
S: Como é que ouviste falar do movimento #NãoPartilhes?
N: Conheci a pagina no Instagram, logo no início de ser criada. As raparigas que fizeram a página, ao verem a partilha do meu vídeo, pediram-me para me juntar à causa e agora fazemos todas parte do mesmo projeto.
S: De momento tens mais de 40 mil visualizações no vídeo, como te sentes perante isso? Alivia-te partilhar a experiência ou por outro lado torna-se assustador?
N: Nunca me senti melhor, para ser sincera. De há 4 dias para cá recebi apenas 3 mensagens negativas (antes da partilha do vídeo, isso seria a norma por dia). Sinto que recebi muito mais apoio de todos, quer dos que não sabiam, quer dos que estavam mal esclarecidos ou simplesmente não se importavam com a partilha. Por outro lado, sinto-me um pouco assustada pelas proporções que tudo tomou. Nunca pensei que fosse ouvida por tantas pessoas, tanto instagramers como media.
S: Apesar de já teres abordado mais ou menos o assunto no vídeo, como é que lidaste com a situação? Quem foram as pessoas essenciais para a tua recuperação?
N: Sem dúvida, os meus amigos. Foi mesmo muito complicado para mim. Durante 1 ou 2 dias depois de ter sido exposto o conteúdo, ainda tentei fazer a minha vida normal, mas não consegui. Saía de casa e sentia que todos estavam a olhar para mim, a julgarem-me. Certa vez provou-se verdade, quando um homem bêbado me agarrou pelo braço e disse “tu és a miuda do vídeo do carro”. Esta situação, bem como todas as mensagens que eu recebi, deixaram me mesmo muito em baixo. Pus baixa no trabalho e não saí de casa durante mais de 1 mês. As únicas saídas eram para ir entregar as baixas ao trabalho e comprar comida, o que eu fazia nas horas em que sabia que não havia muito movimento. Fechei-me do mundo e das redes sociais, apaguei muitas fotos que tinha na minha página, e com vergonha, obriguei-me a mentir à minha família.
Todos os dias, uma amiga me telefonava (nunca falhou nem 1 dia), e vinha ter a minha casa constantemente. Ter os meus amigos comigo, que nunca me julgaram e sempre me deram todo o apoio do mundo, foi a melhor forma de recuperar. Finalmente ganhei coragem e partilhei também com a minha avó, que me apoiou a 100%. Tenho plena consciência de que se não fossem eles, eu não tinha conseguido chegar onde estou hoje.
S: Concordas que a chamada “pornografia não consensual”, neste caso partilha de imagens/vídeos não consentidos na internet, vitimiza mais mulheres porque não envolve apenas imagens íntimas mas sim um controlo sobre as mulheres, como se fossem propriedade comunal? Sentiste isto quando foste vítima?
I: Sim, sem dúvida. Apesar de saber que também acontece com os homens, eles ultrapassam muito rápido. As mulheres sentem mais dificuldade por todo o julgamento que há na sociedade e pelo facto de nos tornarmos objetos sexuais quando existem essas partilhas. Essa “pornografia não consensual” não só se traduz na actual partilha como também na chantagem psicológica com as mulheres – “se não mandares mais fotos mostro ao teu namorado/conto à tua família”. O medo, a vergonha e a falta de apoio social faz com que elas cedam e se rebaixem, às vezes durante anos. Felizmente eu não consigo ser esse tipo de rapariga, e cada vez que me fizeram algum tipo de chantagem, eu incentivei-os a partilhar. O mal já estava feito, já todos sabiam. No entanto, tiveram-me na mão sim… constantemente havia bullying, eu apagava os comentários nojentos com vergonha, e “permiti-me” a ser vista como objeto sexual. Quando todos têm os nossos conteúdos, não há muito a fazer.
S: Que danos emocionais, físicos ou psicológicos na tua opinião podem advir deste tipo de situações?
N: Perda de identidade pessoal. Sentimo-nos deslocadas, não sabemos quem somos. E quando recebemos milhares de mensagens a chamarem-nos “nojentas” e sem respeito por nós, começamos a acreditar. Sentimos que não somos ninguém, ninguém nos quer.
Quando encontrei uma pessoa de quem gostava, frequentemente ele atirava-me à cara que eu tinha vídeos na internet e que não sabia como é que iria conseguir ser visto com alguém “conhecida como eu”. À noite eu ficava a pensar o quão nojenta eu era, que nunca na vida ia ser alguém… Que nunca ninguém me ia querer. Era uma dor tão grande que comecei a cortar-me só para sentir outro tipo de dor que não aquela.
O poder da Justiça neste tema
Há apenas alguns anos a ideia de enviar uma nude pela internet era considerada uma coisa arriscada e pouco comum, hoje em dia mantém-se, pelo menos, arriscada. Os nossos smartphones mudaram esse paradigma e enviar uma imagem íntima tornou-se mais um passo normal da nossa expressão sexual. Assim, e como já vimos, aumentam também os riscos e inseguranças. Em pleno 2020, com a pandemia de Covid-19 e a quarentena, a aumentar o tempo que se passa online e, sobretudo, nas redes sociais, aumentou também a exposição e vulnerabilidade de cada um aos perigos do digital.
E a verdade é que, se existem leis, a justiça aplicada em Portugal é inconclusiva. Em Portugal, para além da já referida Lei 44/2018, temos também os Artigos 192.º (Devassa da vida privada), 193.º (Devassa por meio de informática), 199.º (Gravações e fotografias ilícitas) e 197º (Agravação), todas elas mencionadas na página de Instagram do movimento #NãoPartilhes. Todos estes artigos podem levar o agressor a tribunal e resultar em pena de prisão ou no pagamento de uma coima, mas apresentar queixa pode não ser o suficiente para “quebrar” esta corrente. Em entrevista ao Público, Ricardo Estrela, responsável pela operacionalização das linhas Internet Segura e Alerta da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), Pedro Duro, advogado especialista em Direito Penal, sócio do escritório Campos Ferreira, Sá Carneiro & Associados e Pedro Freitas, professor na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, explicam as repercussões de apresentar uma queixa: ”o tribunal pode impor um dever de conduta e impor ao agressor que apague os conteúdos que tem na sua posse”, isto, partindo do pressuposto que nunca foram partilhados.
Ainda assim, “nada garante que não tenha mais cópias e que mais tarde não possa ser partilhado”, lamenta Ricardo Estrela. “Isso não há como garantir”, confirma Pedro Duro, enquanto Pedro Freitas admite que “quem trabalha com estas questões das tecnologias não pode afirmar com certeza absoluta que algo digital seja alguma vez apagado”. Pode também ser determinado um conjunto de obrigações, lembra Pedro Freitas, tais como “não ir a determinados lugares, não falar com determinadas pessoas”, ou, em “casos mais extremos”, proibir temporariamente a utilização de telemóveis ou computadores e o acesso à internet.
Todavia, mesmo que isso seja difícil de policiar, Ricardo Estrela considera que “é sempre importante” que seja feita a queixa-crime e que as autoridades determinem que o agressor deva apagar os conteúdos, mesmo que não haja forma de garantir que isso é cumprido.
O mesmo enquadramento legal se aplica perante a divulgação de conteúdos. Aplica-se a lei 192º referida acima e a pena de prisão varia entre 1 mês e 1 ano, ou pena de multa até 240 dias. A divulgação através da Internet e das redes sociais pressupõe um agravamento de um terço na pena aplicada, elevando o máximo para 1 ano e 4 meses — uma agravante cada vez mais regular em Portugal, mostrado ser um fenómeno incontrolável e uma normalização perigosa. Num caso recente e tornado viral, um grupo de Whatsapp chamado “Pussylga” contava com mais de 9000 membros que divulgavam conteúdo erótico de forma não consensual, aqui relatado pelo jornal i.
Na sequência desse caso, veio ainda a público o reaparecimento de um bot que, no Telegram, uma app de mensagens encriptadas que tem estado no centro de várias polémicas de revenge porn, recorre à tecnologia “deep fake” para criar imagens falsas de mulheres sem roupa, com qualquer foto que tenham publicado nas redes sociais.
Foi como vítima de partilhas não consensuais que Raquel Rodrigues decidiu virar o jogo, e aderir à plataforma OnlyFans. Criada em 2016 pela Fenix International Limited, que na altura apresentou a aplicação como uma ferramenta útil e poderosa para influenciadores, youtubers, entre outros, poderem monetizar aquilo que fazem cobrando por cada conteúdo, foi na venda de conteúdo pornográfico que a OnlyFans ganhou a sua relevância, e hoje em dia são várias as sex workers que nela têm a sua principal fonte de rendimento. Entre elas, Raquel, que se apresenta como @deadlyraquel. Conta com 53 mil seguidores no Twitter e 235 no OnlyFans. Para além das parcerias com sex-shops portuguesas, tem ainda uma conta de Patreon. Em entrevista ao Shifter, Raquel falou um pouco sobre como é trabalhar neste meio e os perigos que lhe estão associados.
S: Como surgiu a ideia de criares OnlyFans e produzires conteúdo sexual?
R: A ideia surgiu porque eu estava constantemente a ser assediada nas redes sociais com fotografias íntimas não solicitadas, ao mesmo tempo estava a passar um mau bocado financeiramente então decidi juntar o útil ao agradável. Desde que comecei a fazer trabalho sexual online que o assédio diminuiu, não cessou, infelizmente, mas diminuiu, o que já é uma vitória.
S: Olhando para o mundo da pornografia percebemos que continua repleto de polémicas de exploração e abuso, tais como discriminação e sexismo. Sentes que o OnlyFans valoriza os trabalhadores e conteúdo sexual e pode ser uma alternativa digna? Tinhas algumas reservas antes de o fazer?
R: Já experienciei isso de várias formas, em vários sites, redes sociais e messengers. Felizmente tenho um serviço de DMCA que me ajuda a derrubar conteúdo roubado, o problema é que apenas ajuda a derrubá-lo, não a evitar que seja repostado porque isso já depende da consciência e senso comum de cada um.
Tive algumas hesitações porque não sabia como as pessoas iriam receber a informação de que tinha passado a produzir tal conteúdo, mas uma trabalhadora sexual, a @Raquel_Savage inspirou-me a fazê-lo sem pensar nas opiniões alheias.
S: É sabido que, independentemente da referência a direitos autorais, não há forma de garantir que os utilizadores não guardam o conteúdo ou o divulgarem através de gravação ou capturas de ecrã. Em referência ao movimento #NãoPartilhes, como lidas com a divulgação de conteúdo não autorizado? Já foste vítima disso?
R: Acho o movimento óptimo e acho que pode abrir imensas portas para se fazer justiça. Na minha opinião, um protesto, um movimento, uma petição, algo que cause um impacto ainda maior seria necessário para ter resultados. É o tal ditado “closed mouths don’t get fed”. Precisamos de fazer barulho e de nos fazermos ouvir mas em massa, porque não é apenas uma luta contra a violação de direitos autorais, é uma luta contra a violação de corpos, consentimento e contra o machismo que existe tão entranhado na nossa sociedade.
Eu produzir este conteúdo não dá o direito ao cliente de violar o meu consentimento. Por mais polémico que seja dizê-lo, o meu consentimento para visualizarem o conteúdo é comprado, mas foi essa a troca que estipulei EU mesma. Foi algo que eu mesma decidi. A partir do momento em que esse conteúdo é partilhado com quem não pagou para o visualizar, torna-se violação de consentimento. O pensamento machista de “eu paguei menos de $10 para aceder, logo tenho poder sobre o corpo dela e posso partilhar porque paguei” está errado. Não é porque pagas a subscrição de Netflix que todos os filmes, séries e documentários que se tornam disponíveis para ti se tornam teus e os podes partilhar. É uma clara violação de direitos de autor.
S: Atendendo ao facto de venderes esse conteúdo, vês essa alegada partilha como um desrespeito pela tua dignidade enquanto pessoa ou como uma fraude de um cliente?
R: Vejo como uma fraude de um cliente, como uma traição. Ao fazeres o registo no OnlyFans estás a concordar com os termos de serviço, termos esses que incluem regras sobre a não partilha e uso do conteúdo sem ser pessoal. Ao quebrarem essa regra, estão a cometer uma fraude, um crime. Infelizmente, sejas criadora de conteúdo no OnlyFans, ou o que nós trabalhadoras sexuais chamamos de rapariga “vanilla” ou “civilian”, a justiça (quase) nunca é servida ao fazer-se queixa sobre o incidente. É algo que precisa de mudar, é algo que merece atenção e esforço por parte das nossas forças policiais porque são filhas, mães, tias, primas, irmãs a serem alvos destes crimes por filhos, pais, tios, primos, irmãos.
Numa dicotomia tão representativa dos tempos que vivemos, se por um lado a partilha de conteúdos não autorizados é um assunto que tende a ser cada vez mais falado, por outro parece ser também cada vez mais ignorado. Além dos referidos danos que o crime causa às vítimas, da referida ineficácia das leis civis e criminais par eliminar a raiz do problema, a regulamentação actual da Internet também não permite uma resposta eficaz e exige uma estrutura regulamentar multifacetada, necessária para enfrentar esta corrente que teima em não quebrar e que afeta predominantemente mulheres. Com a falta de resposta legal e institucional, a primeira ação necessária deve vir da nossa consciência, agindo contra a corrente e nunca compactuando com a partilha. Citando a frase do movimento #NãoPartilhes “não foi consensual, não tornes viral”.