Não tem nenhum Óscar, nenhum dos seus filmes foi um sucesso de bilheteira de bater recordes, não passa nas sessões de cinema de domingo à tarde que a televisão portuguesa nos vai oferecendo, nem atingiu, para já, o estatuto histórico de outros realizadores italianos como Fellini ou Pasolini; ainda assim, Nanni Moretti é uma figura indelével do cinema contemporâneo italiano, com uma presença marcante que assenta não só na grandeza de um título mas especialmente na consistência do seu cinema. Com uma carreira profícua, recheada de cinema de todas as formas e feitios desde 1976, data da sua primeira aventura cinematográfica, Moretti honra na sua obra a herança do neo-realismo italiano e dos seus sucedâneos, como Pasolini, que chega a homenagear, renovando essa estética com as dimensões de significado que a contemporaneidade demanda.
Em 1976, Moretti estreou-se na 7ª arte com um filme que dizia ao que vinha. De Super-8 na mão gravou Io Sono un Autarchico que se traduz para Eu sou Auto-Suficiente, uma espécie de manifesto cómico onde também surge pela primeira vez Michele Apicella, o alter-ego com que o realizador se infiltra nos seus filmes. Apicella é o nome de família da sua mãe, uma personagem que, sem nunca aparecer, paira sobre o cinema de Moretti e informa algumas das reflexões mais tocantes do artista. Entre 76 e 89, Moretti assinou uma mão cheia de longas metragens, em que se contam 4 aparições de Apicella — que até aqui só não aparecera no filme La messa è finita — até nesse ano lançar La Palombella Rossa, uma obra central na filmografia de Moretti e intemporal na crítica que estabelece, e passados quatro anos, Caro Diario, uma viagem poética pela sua própria cabeça, obras que lhe valeram reconhecimento alargado e lhe garantiram entrada para os circuitos do cinema independente europeu e mundial — confirmando a expectativa criada anos antes por Sogni D’oro (1981) ao arrecadar o prémio do Júri em Veneza.
Em Palombella Rossa (1989) (Pomba Vermelha), Michelle Apicella é um jogador de polo aquático em recobro de um acidente de viação, e em pleno processo de reconstrução das memórias que formam a sua identidade. O filme passa-se quase todo em torno de uma piscina onde decorre o importante jogo para a sua equipa e nas suas margens, seja como comentador do próprio jogo ou numa espécie de flash interview. Ao longo do jogo, que parece infinito, Michelle serve-se dos outros intervenientes da partida para reconstruir a sua identidade perdida – antes do acidente, Apicella era deputado pelo Partido Comunista Italiano e é nas posições políticas implícitas aos outros personagens que esta sua identidade se vai reencontrando. Ao longo desta busca, Moretti explora diversas linhas críticas e auto-críticas recorrendo a uma narrativa semi-poética, onde as regras da realidade são por vezes desprezadas, mas com uma presença humana muito forte e realista. Moretti parece dar-se à reflexão, como que se encarnando o personagem se permitisse um olhar mais distante sobre si mesmo, uma forma de perspectivar as suas inclinações ideológicas, e a forma de as exprimir.
https://youtu.be/0m1x93mEcO8
O filme tem um cariz político muito forte mas que não se esgota numa postura militante, antes pelo contrário; o humor transversal a toda a película revelam sem pudor incoerências, frustrações ou emoções exacerbadas, explorando o débil equilíbrio entre uma crença política e uma segurança identitária. Entre as críticas mais fortes e explícitas do filme ressalta aquela que recai sobre a linguagem jornalística que se materializa numa cena épica da filmografia do italiano, uma estalada numa jornalista que o questionava com uma série de estrangeirismos. De assinalar é também a presença de Imre Budavari, o húngaro que é uma lenda do polo-aquático, representando-se a si próprio e protagonizando um curioso confronto com Michelle – uma pequena grande pista para a forma como Moretti mistura e condensa os planos da ficção, realidade e intimidade numa coerente obra.
Cinco anos passados sobre Palombella Rossa, Moretti apresentaria Caro Diario, um filme que, a nível estético, cria um dos símbolos que viria a ilustrar a sua carreira. Os planos longos na sua vespa a andar aos esses, sem as mãos no guiador, com o lenço ao vento, com que pontua a viagem pelo seu Diário imaginário servem até hoje como imagem de marca, e até como logotipo da sua produtora, a Sacher Filmes, cujo nome se inspira num dos doces preferidos do realizador, a tarte de chocolate Sacher, de origem austríaca, dada a conhecer ao público numa obra especialmente doce da sua filmogafia, Bianca, que em inglês ficou com o título de Sweet Body of Bianca.
Caro Diario é um filme tripartido, dividido em três grandes blocos que nos são apresentados como capítulos de auto-reflexão do artista. Aqui Moretti não é Apicella, é mesmo Moretti, que nos apresenta algumas dos lugares mais recônditos do seu íntimo, disfarçados por uma carga poética que transforma mesmo os momentos mais negros numa ode à vida e ao passar do tempo. Na primeira parte do filme, Moretti vai à boleia da sua vespa prestar homenagem à sua amada cidade de Roma, passando de caminho pelo seu fascínio por Jennifer Beals, desde Flashdance, e por Ostia, bairro romano onde fora morto Pier Paolo Pasolini. Na segunda, viaja por mares nunca dantes navegados, passeando por 3 ilhas do arquipélago de Aeolian em busca de inspiração para o seu novo filme; no filme as ilhas servem de cenário para exageros sobre a vivência humana que vão acabando com a paciência de Moretti e do seu assistente Gerardo que acaba por o abandonar. Já na terceira parte do filme, Medici, Moretti perspectiva de uma forma tragi-cómica a sua primeira experiência com um linfoma (viria a vencer o cancro novamente quase 20 anos depois), e a demora do diagnóstico que, aponta, se deve muitas vezes à incapacidade de os médicos ouvirem os pacientes. O filme foi selecionado para a competição principal de Cannes onde Moretti acabou por vencer o prémio de Melhor Realizador. A banda sonora, assinada por Nicola Piovani, é também um elemento que aqui se começa a destacar nas obras do realizador.
Em Aprile, obra seguinte, Moretti incide sobre a primeira eleição de Silvio Berlusconi, personagem que viria a merecer destaque mais tarde em Caimão, outro filme dedicado ao controverso político e milionário Italiano. Este filme marca o novo desvendar de mais uma página da história da sua vida real. Neste filme, a sua mãe, a sua mulher e o seu filho acompanham-no representando-se a si mesmos. Desta feita é Ludovico Einaudi quem orquestra a película, em mais uma feliz colaboração. Em 2001, e de volta à colaboração com Piovani, Moretti assina um dos filmes mais marcantes de toda a sua carreira – o portentoso drama La stanza del figlio (O Quarto do Filho). Nesta trama Nanni não é Apicella nem Moretti mas sim Giovani, um psicoterapeuta que acompanhamos em consultas no seu gabinete durante um período trágico da sua vida, marcado pela morte do seu filho, Andrea. O filme incide sobre o luto da família e a difícil tarefa de Giovani de se manter são para os seus pacientes enquanto lida com a sua dor interior, com imagens fortíssimas capazes de emocionar qualquer espectador. Não sendo um drama linear com um desfecho óbvio ou apoteótico, pontuado com cenas cómicas, especialmente passadas no gabinete, o filme adopta um ritmo que nos mergulha profundamente na melancolia do luto que contrasta invariavelmente com a necessidade de se seguir em frente. Um sentimento que se cristaliza numa longa viagem de carro, em que Giovani leva a namorada do filho e um amigo seu até à fronteira com França, e na música de Brian Eno, “By this River”, um elemento indispensável ao filme que traduz para o inglês – e para a linguagem do som – o sentimento que maravilhosamente se vai construindo ao longo da trama.
La stanza del figlio valeu a Moretti a Palma de Ouro em Cannes em 2001, um prémio que há 20 anos, desde 1978 não distinguia cinema italiano, depois das primeiras décadas de festival terem contado com diversas premiações para realizadores italianos, desde De Sica nos anos 50, a Fellini e Michelangelo Antonioni nos 60, terminando em 78 com a consagração de Ermanno Olmi. Depois deste momento, Moretti abrandou o ritmo de produção mas não se demoveu nem um passo desta ideia que foi construindo ao longo da carreira de misturar poeticamente as suas convicções, emoções, histórias e mesmo artefactos no seu cinema.
Em 2006, 5 anos volvidos, lança Caimão, um filme protagonizado por outra marca do cinema de Moretti, o brilhante actor Silvio Orlando, e marcadamente crítico da figura Berlusconi – que chega a ser representada pelo próprio Moretti – e que viria a ser derrotado nas eleições gerais nesse mesmo ano. Em 2011 assina Habemus Papam, um dos filmes mais ligeiros da sua obra, mas que aporta nessa leviandade uma carga extremamente humanista para um cenário habitualmente austero e formal como o Vaticano; Moretti desconstroi toda essa formalidade ritual e mete os candidatos a Papa a jogar vólei e acompanha particularmente de perto um dos preferidos pelo conclave que teme a ideia de se vir a tornar no nome maior da igreja. Já em Mia Madre, de 2016, Moretti volta a trazer o tema da morte para a tela, desta vez procurando exorcizar artisticamente a morte da sua própria mãe – o título do filme não é por acaso. Moretti volta em Mia Madre a ser Giovanni, e expressa no filme a dor que sentira pela morte da sua mãe durante a rodagem do filme anterior. Sem que a história seja propriamente a sua, Moretti desenha cenas que lhe permitam reflectir sobre assuntos que são completamente seus; para reforçar esta relação o realizador cedeu mesmo o seu carro para a rodagem de uma cena em que a mãe tem um acidente, levou os livros de casa dos seus pais para o décor do filme, as roupas que a sua mãe usou no hospital serviram para vestir a actriz que desempenha o papel de mãe e as recordações que apontara no seu diário durante o período de doença da mãe inspiraram o guião final.
Santiago, Italia, já de 2018, marca uma viragem na carreira do realizador que, ainda assim parte de um lugar político que não se estranha na sua obra. Em documentário, o realizador entrevista protagonistas do golpe de Estado do General Augusto Pinochet no Chile.
O seu cinema, que conta com 14 longas metragens, quase tantas curtas e 3 documentários, parece ser como que uma coleção de diários e papéis soltos que contam uma ou várias histórias consoante a interpretação que lhe damos. A gramática com que pontua a sua obra oferece pistas que o tornam não previsível mas expectável, criando uma certa familiaridade crescente com o espectador que se dedique à obra do realizador. Um exemplo disso é o seu uso da cor, nomeadamente do vermelho e do azul, tons que protagonizam nos filmes de Nanni Moretti um jogo escondido mas constante de significações. É comum vermos personagens mais exaltadas vestidas de vermelho e cenas mais pacíficas pontuadas pelo azul – as cores que Bruno Nogueira e Gonçalo Waddington levam para a série Odisseia, de resto – numa dinâmica que cria a sua própria linguagem e nos permite mais do que ver os filmes do realizador, vivê-los mesmo, torná-los parte da nossa vida pela força de uma interpretação única, extremamente pessoal e emocional, como demanda cada uma das suas peças.
O cinema de Nanni Moretti é mais uma vez revisitado a propósito da Festa do Cinema Italiano. A Filmin é a sala online do festival e terá em catálogo, até 16 de Novembro algumas das obras que passarão pelas salas de cinema de todo o país.
Entre as escolhas estão Palombella Rossa (1989) e Caro Diario (1993), filmes mencionados neste artigo e para os quais temos entradas gratuitas para te oferecer.
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