Quando achamos que já vimos tudo, há sempre algo novo para nos surpreender e para nos pôr a pensar no sentido que segue a humanidade. Muito recentemente foi assunto do outro lado do atlântico o curioso caso das uvas vendidas com um User Agreement License, isto é, uma política de utilização. E se, à partida, podemos achar que tudo não passa de uma piada da marca, a verdade é que o caso é bem mais sério do que isso e que nos leva a pensar no controverso licenciamento por patentes de sementes.
Na política de utilização das uvas da marca Carnival pode ler-se que o receptor final do produto contido na embalagem concorda em não propagar nem reproduzir nenhuma porção do produto, incluindo as sementes, os caules, os tecidos ou o fruto. Assim, ao comprar o pacote de uvas, e aceitar tacitamente o acordo, o consumidor compromete-se a não propagar ou redistribuir parte do que comprou, uma estratégia legal que visa impedir que os consumidores possam utilizar as sementes da fruta para fazer as suas próprias plantações.
all right, this is a new one. a EULA on…fruit?!
'the recipient of the produce contained in this package agrees not to propagate or reproduce any portion of this produce, including "but not limited to" seeds, stems, tissue, and fruit.' pic.twitter.com/4dgiuCZato
— Tube Time (@TubeTimeUS) October 9, 2020
some folks think I faked it. it's real. it's even printed in French on the other side pic.twitter.com/CHmc12b9A7
— Tube Time (@TubeTimeUS) October 9, 2020
Se o caso parece saído de um filme distópico em que tudo é licenciado e protegido por patentes até ao mais ínfimo detalhe, a Vice foi ouvir especialistas que confirmam a existência de leis que validam este tipo de licença e, mais, outros casos que, a servir de jurisprudência, dão ainda mais força à marca de uvas Carnival. O produto em questão – as uvas em questão – dão pelo nome de Cotton Candy Grape, são cerca de 18% mais doces do que o normal, e estão, de facto protegidas por patente desde a sua criação.
“This invention is a new and distinct interspecific grapevine denominated ‘IFG Seven’. ‘IFG Seven’ is characterized by producing large, firm, oval green seedless berries with a distinctive and unique flavor. The fruit ripen and are harvestable from mid to late August.” pode ler-se na descrição da patente disponível no Google.
Se este tipo de discurso e acordos são relativamente banais no mundo do software, no universo da fruta o surgimento destas mensagens é no mínimo surpreendente, apesar da sua base legal. É neste ponto que o caso nos leva a reflectir sobre os movimentos globais em torno das sementes, onde o caso mais flagrante é o da gigante Monsanto. O licenciamento por patentes de sementes mais resistentes, mais rentáveis, ou simplesmente que dão frutos mais saborosos tem sido uma das grandes apostas das grandes empresas de agricultura e biotecnologia para garantir os seus lucros. Deste modo, as empresas geram e mantêm uma dependência nos agricultores que ficam impedidos de replantar as sementes que provêm de cada colheita, sendo obrigados a comprar novas todos os anos para garantir o cumprimento das políticas de licenciamento em vigor.
Apesar da pouca popularização do tema, o movimento de resposta tem sido substancial, e materializado em organizações como a Open Source Seeds Initiative, uma organização inspirada pelo movimento do Software Livre e Open Source que, tal como as contrapartes de software, se dedica a promover e gerir a criação e comercialização de sementes “livres de direitos”, livres para qualquer agricultor poder usar da forma que bem entender, como estas que podemos encontrar aqui.