“Qual é o propósito se não nos pudermos divertir?”: a derradeira lição de David Graeber

“Qual é o propósito se não nos pudermos divertir?”: a derradeira lição de David Graeber

11 Outubro, 2020 /

Índice do Artigo:

Um obituário e uma lição de activismo, pelos outros e pelo prazer de deixar um legado melhor para quem nos sucede.

Se há algo que fica claro com a notícia e os ecos de que David Graeber, antropólogo, revolucionário, libertário e um dos motores ideológicos do movimento Occupy Wall Street, nos deixou a 2 de Setembro, é que a sua essência ficou marcada, não apenas no registo do que disse ou escreveu, mas no modo como o praticou, que não lhe é único, mas é sempre singular.

A ideia de desafiar o poder estabelecido como um acto contínuo, a acontecer de múltiplas formas, e que não é da exclusividade de ninguém; de que cada um de nós tem, em si, ou nos seus corações (como diria Buenaventura Durrutti) um novo mundo, e que fazê-lo acontecer não depende de um único caminho, nem se esgota num só tipo de acção; de que há, todos os dias, novas formas de vermos uma utopia a acontecer, era a principal mensagem do malogrado Graber, que ao longo do seu percurso académico encontrou nos actos mais simples revoluções imensas.

A sua importância tornou-se inquestionável ao trazer para o espaço de discussão pública e política uma série de ideias que, queria-se, não pertenciam ao mesmo. Graeber reconheceu na prática do anarquismo mais do que uma ideologia perigosa, sinónimo de uma esquerda radicalizada, um conjunto de práticas de questionamento da realidade instituída, comuns entre sociedades humanas, independentemente da sua complexidade. Dizia para não lhe chamarem anarquista porque a anarquia é algo que se faz e não que se professa. E foi sobre o mito da complexidade que fez alguns dos seus mais importantes trabalhos, desconstruindo a ilustração ocidentalizada e altamente marcada, quase modulada, pelas contingentes financeira e tecnológica, da forma de ver as relações humanas. Dívida: os Primeiros 5.000 Anos, talvez o seu trabalho mais popular, e um dos mais recentes, é o exemplo material disso mesmo ao desmontar de uma perspectiva antropológica o fantasma da dívida que assombra as sociedades contemporâneas.

O trabalho de David Graeber é essencial, por desconstruir a ideia de que certas possibilidades seriam impensáveis em sociedades apelidadas de primitivas, um conceito verdadeiramente preconceituoso de um ocidente alheado de si e, pior, do mundo em que se insere e que catalisou a sua evolução; torna-se, contudo, fundamental por conseguir identificar na sociedade ocidental comportamentos inequivocamente demonstrativos da prática anarquista e, consequentemente, da sua iminente possibilidade num contexto mais alargado. Nesse sentido, ao longo da sua obra, o antropólogo apelou sistematicamente ao questionamento global da história, não no que toca propriamente ao seu registo, mas à mitologia utilizada na sua narração. O seu pensamento desafiou por completo a narrativa liberal dominante, oferecendo uma perspectiva inteligível, credível e que é, ainda, difícil de categorizar, apesar das constantes tentativas de a balizar ideologicamente

Para Graeber, assim como para a toda a disciplina da antropologia, a complexidade de uma sociedade não se mede a par com a sua evolução tecnológica, mas sim nas suas relações económicas, humanas e políticas, na sua mitologia e na forma como esta expressa e reflecte as contingências anteriores. Foi assim que encontrou o anarquismo enquanto prática (em oposição a teoria, ou ideologia) em atitudes desafiantes de tribos de Madagáscar, e foi também assim que viu os mesmos comportamentos estarem na génese de software open source, cuja abertura e clareza servem de motor para a colaboração como forma de evolução.

O seu trabalho foi muito além de anarquismo, que, digamos, lhe trouxe mais fama do que proveito. Graeber, que enquanto autor era pautado por um humor inflamado e incisivo, pouco académico até, nunca se desviou do assunto: “Escrevi um pequeno livro chamado Fragmentos de uma Antropologia Anarquista, que desde então me condenou a ser conhecido como “o antropólogo anarquista”, embora o livro argumente que a antropologia anarquista não existe e provavelmente não poderia realmente existir” admitia num artigo por si assinado.

Na realidade, o antropólogo e filósofo dizia-se um antropólogo capitalista, como os seus pares, uma vez que a sua análise, assim como o objecto dos seus estudos, eram a sociedade em que se inseria; mesmo quando não o era e desenhava novas possibilidades, como fez ao aprofundar os estudos de Valor e os conceitos de Dádiva de Marcel Mauss, era nesse contexto capitalista que se movimentava, mais não sendo por trabalhar para universidades financiadas por essas estruturas — como foram Yale (onde as suas contribuições para a disciplina da antropologia não ficaram indiferentes, nem para o seu mentor Marshal Sallins, nem para a própria direção da universidade que o dispensaria pela polémica em torno das suas ideias) e a London School of Economics, onde acabaria por fazer o seu “exílio académico” depois de ver a carreira em suspenso e não conseguir trabalho em território americano, apesar dos seus contributos para disciplina da antropologia. Para os seus pares, o impacto que David Graeber teve na sociedade, e consequentemente na antropologia, é visto equivalente à de Margaret Mead, a antropóloga que potenciou a revolução dos anos 60 graças aos seus estudos sobre as culturas do Pacífico Sul e Sudeste Asiático, a quem foi inúmeras vezes comparado. 

Não é de estranhar que, em plena crise financeira de 2008, Graeber se encontrasse na linha da frente durante os protestos de Occupy Wall Street, numa posição de anti-liderança dinâmica, e que a partir daí o seu trabalho tenha ganho ainda mais tracção. Este momento serviu como mais uma prova de que a sua obra teórica se relacionava organicamente com a sua prática e faceta activista, numa lógica de retroalimentação. Graeber lutou não só contra as enfermidades do sistema material vigente, o capitalismo, como contra os limites do sistema simbólico aceite. Fê-lo não só com o seu pensamento por vezes desconcertante, como com a sua forma quase-casual, mas perspicaz de o enunciar, que o tornou num intelectual acessível às massas e avesso ao elitismo da academia. É, por isso, fácil encontrar vários registos da obra do antropólogo em contextos diversos, mas sempre com uma atitude dialética e empatia perfeitamente notável, característica que o previne de uma certa arrogância militante tão comum nos especialistas. Seria tão natural encontrá-lo num contexto dito intelectual, trocando argumentos com pares de forma hábil, quanto ouvi-lo em conversa com Brian Eno sem que isso levantasse um obstáculo à sua vontade de criar momentos de cooperação entre linguagens, pessoas e ideia, ou num debate sereno com Peter Thiel.

Estas ideias, assim como a sua personalidade, espelham-se na perfeição no texto que dá o título a este texto, publicado em 2014 na revista norte-americana Baffler: What’s the Point If We Can’t Have Fun?. Nele, Graeber discorre sobre o seu sucesso no caminho de uma maior liberdade através de uma perspectiva crítica sobre um acto tantas vezes futilizado e marginalizado: a diversão, a fruição. É o próprio Graeber que, numa entrevista, assume tê-lo escrito por gozo de um certo estatuto, por finalmente ter créditos para o fazer. E acaba por ser sobre essa tensão entre veracidade, credibilidade e mérito que dedica os últimos anos da sua vida e os últimos registos da sua obra: em 2015 publica The Utopia of Rules: On Technology, Stupidity, and the Secret Joys of Bureaucracy, livro sobre os mecanismos burocráticos da nossa sociedade e dos princípios falíveis e quase esotéricos em que assentam, e em 2018 publicaria Bullshit Jobs, uma consequência natural do seu antecessor e em que Graeber volta a focar-se em aspectos muito tangíveis e estruturais — como no caso das práticas de anarquismo em Madagascar —, desconstruindo um universo de complexidade (apenas) aparentemente impenetrável. Nesta última obra, Graeber deixa o alerta para as consequências de uma sociedade, e de sectores específicos dentro dela, toldada pela necessidade de sedução burocrática — a tal relação entre a credibilidade e a legitimação que assinalara a publicação do texto na Baffler.

 

É sobre essa falta de sentido na falta de um sentido lúdico da própria vida humana que Graeber reflectia, com uma lucidez e simplicidade entusiasmantes, que nos conduziam pelo seu pensamento em vez de nos expulsar com formatações excessivamente complexas. Como quem carrega muitas questões, todas muito simples, mas avassaladoras, e a única certeza de que qualquer que seja a revolução, ela tem de ser inclusiva, empática e partilhada. E sobretudo, divertida e entusiasmante.


Artigo escrito por André Forte e João Ribeiro

Autor:
11 Outubro, 2020

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