[Artigo actualizado a 27 de outubro com informações sobre a confirmação de Amy Coney Barrett como juíza do Supremo, adicionadas no final.]
Foi há mais ou menos uma semana que Donald Trump nomeou a juíza Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, para ocupar a vaga deixada em aberto pela morte de Ruth Bader Ginsburg. Uma escolha do género nunca é feita ao acaso, principalmente quando se abre uma oportunidade de virar o espectro político daquele que é o maior órgão judicial do país. É que o Presidente norte-americano escolheu substituir aquela que foi uma das magistradas mais icónicas do Supremo pela forma como transformou a lei em defesa dos direitos humanos, um símbolo feminista que desafiou convenções sociais e ganhou o apreço e reconhecimento do público, por uma juíza que é o seu oposto ideológico. A juntar a isso, esta é a terceira nomeação de Trump para o Supremo Tribunal, e a que pode vir a transformar o corpo de juízes, tornando-o maioritariamente conservador – são seis contra três liberais. E é precisamente nas diferenças entre Bader Ginsburg e Amy Coney Barrett que o Presidente espera concretizar as suas jogadas políticas mais polémicas.
Nos dias após o anúncio, as notícias concentraram-se nessa dicotomia entre o trabalho e as ideias das duas juízas e nos aspectos biográficos de Amy Coney Barrett que melhor serviriam a agenda de Trump. “Há decisões que vão ser tomadas nos próximos anos pelo Supremo Tribunal que decidirão a sobrevivência da Segunda Emenda, da liberdade religiosa, a segurança pública e muito mais (…) não há ninguém melhor do que Amy Coney Barrett para cumprir”, disse o Presidente na cerimónia de apresentação. Mas porquê? E para cumprir o quê?
Quem é Amy Coney Barrett?
Nasceu em Janeiro de 1972 nos subúrbios de Nova Orleães. É a mais velha de sete irmãos, filhos de um advogado da Shell Oil Company e de uma professora de francês. Tem, também ela, sete filhos, dois deles adotados no Haiti, com Jesse M. Barrett, seu colega na Universidade católica de Notre Dame, no Indiana. A sua educação foi, aliás, marcada pela religião, tendo estudado no liceu Dominicano de St. Mary, só para mulheres, e no Rhodes College, afiliado à Igreja Presbiteriana.
Foi professora de Direito durante 15 anos, e é juíza apenas desde 2017, altura em que foi nomeada para o Tribunal de Recurso do 7.º Circuito, em Chicago. Assume-se como católica devota, mas garante que nunca deixaria as suas crenças pessoais interferirem no seu desempenho como juíza — algo que terá assegurado na audiência que confirmou a sua nomeação como juíza de recurso em 2017, e agora, no momento em que Trump a apresentou aos Estados Unidos como aquela que pode vir a ser a juíza mais nova de sempre no Supremo. “O Presidente nomeou-me para servir no Supremo Tribunal e essa instituição pertence a todos nós. Se for confirmada [no Senado], não assumirei esse papel no interesse das pessoas do meu círculo e certamente não no meu próprio interesse, assumirei esse papel para vos servir”, disse, dirigindo-se aos norte-americanos.
Apesar da sua (ainda) curta carreira judicial, Amy Coney Barrett já conhecia os corredores do Supremo Tribunal por ter trabalhado cerca de um ano como assistente do juiz Antonin Scalia, falecido em 2016 e uma figura conhecida do Supremo por ser politicamente muito conservador, que, diz a juíza de 48 anos, foi “como um mentor”. Analistas e jornalistas políticos sublinham que será a herança ideológica de Scalia a reger o trabalho de Coney Barrett, que assume “a felicidade” de ter trabalhado com o juiz e o eco das suas lições. Diz que, tal como Scalia, acredita que “Um juiz deve aplicar a lei como foi escrita. Os juízes não fazem política, devem ser resolutos e afastar as opiniões políticas que possam ter.” Ainda assim, são as suas posições sobre bandeiras republicanas como o aborto, o porte de armas e a religião que mais fazem mexer a opinião e suspeita democrata, de que a balança do Supremo penda de forma decisiva para o lado conservador.
People of Praise: The Handmaid’s Tale e o conservadorismo católico
Ainda que a juíza sempre se tenha identificado como católica, e se saiba que frequenta uma pequena paróquia conservadora em Indiana, nunca falou publicamente sobre a sua participação no grupo cristão People of Praise, que se assume como distinto de todos os outros pelo facto de os seus membros terem assinado um pacto – ou um “voto” – para se apoiarem uns aos outros “financeiramente, materialmente e espiritualmente”. Mas a sua associação é conhecida e comprovada, de acordo com o The Guardian, por fotografias suas em revistas de circulação interna e pelos dados que mostram que fez parte da https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistração de uma escola afiliada ao grupo religioso. Além disso, o seu pai é um conhecido membro do grupo, desempenhando um papel de relevo e liderança no seu estado natal de Louisiana — há, ao todo, 22 filiais do People of Praise espalhadas pelos EUA, Canadá e Caraíbas.
Pouco se sabia acerca da história de Amy Coney Barrett com o grupo antes do seu nome ter chegado aos holofotes. Com isso veio o escrutínio e a revelação, feita pelo The Guardian aqui, de que a juíza morou na casa de um dos fundadores do grupo enquanto era estudante de direito em South Bend, Indiana, uma residência de nove quartos propriedade de Kevin Ranaghan. O jornal britânico avança ainda que há dados que mostram que o marido de Coney Barrett também lá terá vivido, nos anos que precederam o casamento entre ambos em 1999. Os documentos analisados pelos jornalistas mostram ainda que outros membros do People of Praise casaram após temporadas a viver na propriedade de Ranaghan. Este artigo do The Guardian cita depoimentos de antigos membros que, agora críticos da organização, sugerem que o grupo tem “tradições de namoro e casamento bem desenvolvidas” e que são seguidas à risca. Um deles, Adrian Reimers, terá revelado em textos sobre a sua experiência na comunidade, que as pessoas nela envolvidas não namoram até que o seu líder espiritual “ajude a tomar decisões” sobre o futuro do casal.
O cariz secreto do People of Praise faz com que pouco se saiba de concreto acerca do que é afinal pregado pelos seus líderes. Restam os relatos dos ex-membros para perceber a estrutura, alguns deles que foram mesmo vocais contra a escolha de Coney Barrett para o Supremo, acusando-a de pertencer a uma “seita em que as mulheres são completamente obedientes aos homens e os pensadores independentes são humilhados, interrogados, envergonhados e rejeitados”. A maioria dos antigos membros critica o grupo por aderir a uma estrutura autoritária e rigorosa, incluindo a expectativa de que as mulheres sejam subordinadas aos maridos, que são considerados seus “chefes”, não podendo negar relações sexuais ou controlar a sua própria capacidade reprodutiva porque “as mulheres casadas devem ter tantos bebés quanto Deus quiser”. Dentro do grupo, as mulheres eram conhecidas como “handmaiden”, termo que levou a comparações óbvias com a série distópica The Handmaid’s Tale, obrigando a Igreja a mudar o termo.
Sabe-se também que os membros do People of Praise devem doar 5% dos seus ganhos ao grupo e que podem ainda ser obrigados a abrigar outros membros. Outros documentos públicos mostram que o grupo apoia firmemente o “casamento tradicional” e que se opõe ao casamento do mesmo sexo e ao aborto.
Importa referir que o grupo religioso apagou entretanto vários documentos do seu site oficial que aludiam ao envolvimento de Coney Barrett e incluíam fotos suas e da sua família e dados concretos que mostravam a sua afiliação à Igreja. Vários membros e porta-vozes do grupo têm também vindo a público negar as acusações recentes feitas na imprensa, referindo “mal entendidos” e “falhas de interpretação” dos seus ensinamentos.
O que esperar: aborto e posse de armas
É à herança de Antonin Scalia que se vão buscar a maioria das suposições sobre o que será a actuação de Amy Coney Barrett no Supremo – à sua visão conservadora da Constituição, o chamado originalismo constitucional que guia o juiz a interpretar os significados originais de cada lei, ou seja, a ler a lei fundamental à época em que foi escrita. Aos olhos liberais, trata-se de um conceito demasiado rígido, que não permite que a constituição se adapte a contextos modernos, alvo de várias controvérsias. A título de exemplo, em 2019, no caso Kanter vs. Barr, o réu Rickey Kanter, condenado por fraude, não podia possuir uma arma por ter uma condenação criminal, tanto pela lei federal como pela lei do estado do Wisconsin, onde se dava o julgamento. Mas para defender a posse de armas de Kanter, Coney Barrett traçou uma defesa de 37 páginas que recuou aos séculos XVIII e XIX e às leis de porte de armas para criminosos condenados, para demonstrar que a Constituição do país e as leis deviam ser interpretadas conforme o significado que tinham quando foram formuladas.
O derrube das leis de controlo de posse de armas é apenas uma das mudanças iminentes com a chegada de Amy Coney Barrett ao Supremo e consequente maioria conservadora. Em cima da mesa está também a potencial revisão da lei que permite o aborto legal nos Estados Unidos, e do Obamacare, e o seu historial de legislar contra a imigração.
É conhecida a sua posição crítica do caso Roe vs. Wade, a decisão do Supremo de 1973 que tornou possível o direito ao aborto por solicitação da gestante. Em 2013, terá dito numa palestra sobre o tema que achava “muito improvável que o tribunal anule” tal decisão, acrescentando que “o elemento fundamental, que a mulher tem o direito de escolher o aborto, provavelmente permanecerá.” Mas em 2016, sugeriu que, dada a improbabilidade dessa anulação, seria possível que um Supremo maioritariamente conservador acabasse sim por deixar a decisão do lado dos Estados, tornando a interrupção voluntária da gravidez num processo mais difícil de realizar: “Eu não acho que o aborto ou o direito ao aborto mudariam [com uma maioria conservadora no tribunal]. Acho que algumas das restrições mudariam… A questão é quanta liberdade o tribunal está disposto a dar aos estados na regulamentação do aborto”.
De acordo com a Vox, Amy Coney Barrett votou três vezes em casos relacionados com aborto no Tribunal de Recurso do 7º Circuito, duas delas do lado das restrições, na terceira, o tribunal decidiu que os ativistas anti-aborto não podiam abordar as mulheres fora das clínicas. Actualmente há cerca de 17 casos que podem levar o tema ao Supremo e, confirmando-se a eleição de Barrett, qualquer caso que questione a constitucionalidade das restrições ao aborto pode vir a ser um veículo para derrubar a lei ou, como disse uma fonte ao The Guardian, “[a lei] está na maior situação de perigo que alguma vez esteve desde que foi promulgada em 1973”.
Donald Trump já tinha prometido nomear “juízes pro-vida” e por em diversas ocasiões previu que a decisão de Roe vs. Wade fosse anulada. Trump foi, aliás, o primeiro Presidente a participar na marcha anual anti-aborto, a March for Life, onde disse que ia fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para tornar o aborto algo “inimaginável”.
O Presidente norte-americano tem também tentado desmantelar o chamado Affordable Care Act de 2010, conhecido como Obamacare, desde que foi eleito. E a 10 de Novembro, o Supremo vai ouvir os argumentos do caso que pode rever a medida, e eventualmente revertê-la, se os juízes escolhidos por si se alinharem com quem os escolheu.
A política of it all
O Supremo Tribunal é um controlo vital do poder presidencial e exerce uma grande influência na sociedade norte-americana. A escolha de Barrett acontece numa altura em que as eleições estão ao virar da esquina, e assenta em temas de uma importância política conhecida em ano de ida às urnas. Mais do que isso, a escolha de Amy Coney Barrett inclina o Supremo para a direita até, pelo menos, a próxima geração, e pode vir a selar o legado de Trump, não só em termos ideológicos como na prática — há duas semanas, o Presidente previu que este Tribunal seria determinante para definir o resultado das eleições presidenciais. Segundo Trump, “penso que é melhor se [a nomeação] for antes das eleições porque penso que isto – este esquema que os democratas estão a usar – irá ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos”, sendo que “o esquema” é o voto postal, que os Republicanos têm apelidado uma fraude. “Penso que isto vai acabar no Supremo Tribunal. E penso que é muito importante que tenhamos nove juízes”, disse, justificando a pressa na escolha de Amy Coney Barrett.
A sua nomeação foi por isso altamente contestada, não só pelo conteúdo, mas pela forma. A própria Ruth Bader Ginsburg, terá dito, no leito da sua morte, que o seu único pedido era que o juiz que a substituísse fosse escolhido apenas depois das eleições de 3 de Novembro. Uma sondagem do Washington Post/ABC revelou que os americanos partilhavam da mesma opinião — 57% dos cidadãos acredita que a escolha devia ser feita pelo vencedor das Presidenciais e pela consequente confirmação pelo Senado, que acaba também ele por ser renovado após as eleições em mais de um terço dos assentos. Isto porque, tendo em conta que o novo juiz do Supremo pode vir a moldar a justiça e política dos Estados Unidos nos próximos anos — o cargo é vitalício —, caso o Governo mude de direção em Novembro e passe a ser liderado por Joe Biden, um tribunal maioritariamente conservador pode ser um entrave na aprovação de determinadas medidas. O próprio Biden reagiu à escolha da juíza de 48 anos afirmando que Coney Barrett representa “uma ameaça” à rede de saúde nacional e que ninguém devia substituir Ginsburg até depois do chamado dia da inauguração, 20 de Janeiro. Ao The Guardian, Meagan Hatcher-Mays, diretora de política democrática da organização de direitos humanos Indivisible, disse: “A juíza Ginsburg foi uma advogada brilhante que dedicou a sua vida a promover a igualdade de género e os direitos civis para todos. Amy Coney Barrett não pode dizer o mesmo. A ideia de que Amy Coney Barrett poderia substituir RBG no Supremo Tribunal é um insulto à vida e ao legado de RBG.”
Coney Barrett só estará mesmo confirmada no Supremo no fim de Outubro, altura em que é esperada uma votação no plenário do Senado, a quem cabe a decisão final. Mas os democratas têm poucas hipóteses de travar a nomeação. Os republicanos detêm uma maioria de 53-47 na câmara e apenas dois senadores republicanos expressaram até agora a recusa em avançar antes das Presidenciais. O líder da maioria do Senado, o republicano Mitch McConnell, disse até que planeia avançar “rapidamente” com o processo de instalação de um sucessor/a.
“Esta é a minha terceira nomeação [de um membro do Supremo], depois do juiz [Neil] Gorsuch e do juiz Kavanaugh, e é um momento de grande orgulho”, disse o Presidente dos EUA, no dia da cerimónia de apresentação de Barrett, ao mesmo tempo que apelou aos democratas para aceitarem a nomeação e se “absterem de ataques pessoais e partidários”. Esta terceira nomeação vitalícia de Trump para o Supremo Tribunal é um recorde que é visto como crucial para angariar o apoio entre cristãos evangélicos e outros conservadores — resta saber se a decisão não estimula também mais eleitores liberais a comparecer nas urnas em Novembro.
[Artigo actualizado a 27 de outubro]
O nome de Amy Coney Barrett foi confirmado com 52 votos a favor (todos senadores republicanos) e 48 votos contra (todos membros democratas e uma senadora republicana).