[infobox]Este texto é da autoria do filósofo André Barata, foi originalmente publicado no Jornal Económico e integra o livro O Questionamento do Mundo e a Questão do Humano editado em 2020 pela Documenta. Republicamo-lo com autorização do autor e dos editores como referência à reportagem um Vírus no Sistema, presente na primeira edição da Revista Shifter, que parte da leitura do livro em questão para uma reflexão sobre a crise pandémica.[/infobox]
O skater não tem um grande discurso a fazer, uma teoria verdadeira a reivindicar, um rótulo a defender. Tem uma prática, que é um estilo de vida e a exigência do direito à expressão dessa escolha no espaço público. Visto de fora, é possível e importante dizer mais, sobretudo num tempo de simulacro do real — tempo de aceleração, digitalização e desmaterialização.
Hoje, há uma nostalgia cultural pela matéria das coisas, pelo espaço que ocupam e o tempo que demoram, e que nos leva a abrandar, a preferir de novo vaguear e tocar nas coisas, voltar aos discos de vynil e às salas de cinema. O teórico crítico inglês Mark Fisher, que já nos deixou, falava desta relação nostálgica com a materialidade, característica do nosso tempo, talvez o canto do cisne antes do online nos levar todo o significado das vidas, deixando à materialidade apenas a banalidade da sobrevivência do corpo.
O “skate”, entendido como o conjunto dos traços de sociabilidade mais característicos entre aqueles que juntos andam de skate, não tem que ver com isso. Nele não há nostalgia. E, contudo, tem tudo que ver com isso. Neste nosso tempo, o skater é uma espécie de resistência da realidade e do prazer da sua materialidade contra as muitas formas de subtracção do mundo, contra a hiper-medialização que cada vez mais nos abstrai. Tendo em conta a nossa convivência gravítica com o mundo, podemos dizer que o skater, o tracer e poucos mais, se tornaram outsiders.
Mas o skater faz diferença.
Primeiro, porque o skate é uma escolha integral, inconfundível com um hobby ou com um desporto. Não apenas pelo prolongamento do próprio corpo no skate, mas sobretudo pelo seu prolongamento, através do skate, nas ruas e nas praças, nas suas escadarias e corrimões, nos seus materiais conhecidos pelo contacto, como a intimidade do toque com o cimento, o betão, o alcatrão, por vezes até às feridas abertas. A roupa de algodão confortável, tudo flexível, sem partes duras que manifestem ameaça, no calçado apenas o compromisso da aderência à lixa da tábua.
A ausência de regras, apenas o conhecimento dos truques, os seus nomes, e a boa energia, a cordialidade. O modo de expressão só acessoriamente é pela palavra, usada apenas no que tem de ser. A expressão dominante é a dos gestos, a subtileza emocional comunicada pelo controlo sobre o próprio corpo, tanto nos truques como no simples estar com os outros que querem estar assim.
Segundo, é uma comparência integral, grupos que não se dispersam pelos “portais para o ciberespaço” de que falava Mark Fisher, antes desligam os smartphones ou trocam-nos por telemóveis tecnologicamente medíocres. Comparência ainda na vontade de testemunhar a habilidade conseguida por outro, consegui-la com outro e partilhá-la com outro, mas, acima de tudo, de estar nos sítios que prolongam o corpo, de conhecê-los como lugares de um corpo imenso e estésico, que é a cidade, com a sua fisionomia de bairros e os outros que neles vão encontrando.
O skate é uma forma e um método de conhecimento material da sociedade urbana e de sociabilização dentro da cidade. Por isso não faz sentido o seu confinamento em parques dedicados, nem o valor de tais parques pode assentar numa intencionalidade segregadora. O direito a andar de skate é para o skater uma modalidade do direito à mobilidade, não menos fundamental, e em continuidade com reivindicações de acesso aos transportes públicos e de partilha do espaço público urbano. Talvez não haja na cidade contemporânea mais apurada consciência da importância do acesso à cidade e da partilha das ruas públicas do que os skaters a que a cidade, não sem irónica incompreensão, não raro prefere chamar outsiders, excluídos, se não mesmo vândalos, enxotados como bicharada insistente.
Terceiro, a imaginação integral do espaço e do tempo, invenção de formas de os tornar concretos e depois praticá-las até se tornarem tão familiares como uma segunda pele. Imaginação que não parte da nostalgia de uma materialidade perdida, como quem regressa ao uso dos tais discos de vinyl, mas que inventa novos usos expressivos além dos usos estabelecidos. Apropria-se da pedra, da laje e do ferro ao deslizar por eles, para através deles criar expressão. A sinergia que prolonga o contacto com a matéria.
E cada novo contacto, cada novo spot, é como gozar o improviso de uma variação entre todas as possibilidades que o equipamento urbano, proporciona. A cidade toda é uma quase infinita possibilidade de gozo jazzístico para os skaters. Imaginação que não pode ficar refém da normalização de lugares de fazer skate, pois os parques esquematizam e codificam nas simples expectativas que supõem no seu desenho e construção.
Quarto, o skater não pressupõe na sua narrativa social algo que era para ter sido e que não foi — os futuros perdidos de que falava Fisher —, nem sequer se pensa e se imagina a partir da ideia de futuro. O que deixa o skater, se não fizer um compromisso com a sociedade, num beco sem saída.
O skater não melancoliza a materialidade perdida como o fazem muitos intelectuais na sua relação com a cultura e na situação como criadores de cultura. Não cria um escape simbólico para sublimar culturalmente, sem contestar na prática, os imperativos da ordem social vigente: abstrair, extrair, espectralizar, desligar. Pelo contrário, o skater milita expressivamente a materialidade humana cercada e absorvida pelo processo de desligamento. E em todos os aspectos deste processo, fá-lo por uma rejeição materialmente integral: não abstrai, não extrai, não desliga. O seu compromisso não engana.
Além disso, o skate é muito provavelmente a mais conseguida interrupção nas nossas cidades do tempo sem fissuras, interrompendo fluxos urbanos pela ocupação de espaços públicos com outros fluxos, tornando-os um segundo habitar que fissura a continuidade e que a torna um lugar de estar, conviver e conhecer. E instalando-se na fissura, os skaters interrompem também, através de um conjunto de acordos tácitos que decorrem do seu estilo de vida, qualquer valorização ou desvalorização do outro por diferença de estrato social ou por diferença étnica, racial, religiosa.
Interrompem o espírito de competição, de sucesso e sua gratificação social, a pulsão para ter razão, vencer discussões, seja por palavras ou por outros meios, escusam-se a qualquer agressividade a ponto de, se confrontados, preferirem um certo nomadismo urbano de fuga à luta pelo lugar. Não querem aceitação, assimilação, gratificação. Querem apenas reconhecimento desse direito à fissura, a criá-la e habitá-la, um espaço-tempo de abertura e de que juntos cuidam.
Esses lugares onde acontece o skate são heterotopias urbanas de suspensão[1] mas também de activação prática de sociabilidades que vão no sentido contrário do sistema sem fissuras que se arma como condição humana: a cooperação sem metas em vez da competição com a sobrevivência como meta, o gozo da conversa em vez do da discussão, sequer uma meta de persuasão por meio de razões, o encontro entre iguais sem sequer a necessidade de uma definição de igualdade. E é uma heterotopia em vez de uma utopia, porque não se trata de um futuro ou um outro lugar desejados, mais ou menos realisticamente, mas de fazer e habitar um lugar aqui, um espaço-tempo presente, na presença concreta de umas escadarias à entrada de um grande banco ou numa praça pública.
Para além da cultura não melancolizadora do skater, as manifestações culturais de nostalgia e de melancolia não desistente, de modos de vida alternativos, de rejeição da lógica de produção para consumo e de consumo para produção, enfim, de normalização industrial de todos os fazeres, incluindo o pensar e o sentir, trazem esta mesma reivindicação de materialidade.
Todas estas formas de ser lugar de contingência e acaso significam a materialidade que se vai esvanecendo no online, na uniformidade global, também offline, logo com a fruta normalizada sem mácula e os pedaços de frango em pacotes plastificados de carne sem mácula, e todos os sistemas cada vez mais eficientes e higienizados, a excluírem, com disciplina metódica, as imperfeições, as opacidades, as sujidades, em suma, as mãos e as cabeças sujas de gente. Confinamos a gritaria emocional às redes sociais, para cá fora levar impávidas existências.
A transparência dos sistemas torna-se tanto maior quanto mais automados forem, desde a fábrica até à própria democracia, aquela a livrar-se de trabalhadores esta a deslocar tudo o que importa decidir para fora de escolhas de pessoas. Idealmente, a mais pura transparência, se perfeita, não tem materialidade. Como uma gravação digital não tem ruído. A perda da materialidade e de capacidade de sermos sujeitos vão lado a lado num tempo em que o processo global nos interpreta, acima de tudo, como ruído.
O democrata e o trabalhador, as emoções de cada um deles, são tratados como ruído a canalizar para lugares em que se possam exprimir de forma inócua, sem perturbar os processos em curso e as suas metas de eficiência, metas cada vez mais intolerantes, desde logo com as crianças que não são ou não querem ser prodígios nas nossas escolas, depois com elas na rua, depois com a própria ideia de rua pública, anónima, de todos, depois com a liberdade, a do skater, mas também a do skater que há dentro de cada um.
–
[1] Leonardo Brandão exemplifica esta interpretação do skate como uma heterotopia – “Fazer de um corrimão um obstáculo e não um instrumento de ajuda para apoiar o corpo, usar escadas para saltos e não como um auxílio para se passar de um nível ao outro do pavimento são exemplos concretos e localizáveis de heteropias; isto é, de invenção de outros espaços dentro dos próprios espaços.” (Brandão, Leonardo. “Revista Rua”. Campinas, Número 20 –Volume II, Novembro 2014, p. 54)