O estádio de desenvolvimento das sociedades em que vivemos tornam as relações entre os vários agentes altamente complexas e difíceis de perceber para o cidadão comum. Uma das áreas onde esse fenómeno mais acontece é na finança; quanto mais altos são os valores mais difícil é compreendas as lógicas por que eles se regem. Excelente exemplo disso é a Uber, que apresentou recentemente o resultado do segundo trimestre de 2020, apresentando novamente perdas, apesar de todo o sucesso que lhe é apontado.
Na primeira metade do ano 2020 a Uber já anunciou perdas na ordem do 4 mil milhões de dólares, um número abaixo da linha dos resultados financeiros da empresa que no ano passado, 2019, registou 5,1 mil milhões de prejuízos. Mas, apesar do que podemos aferir de imediato sobre estes resultados, a verdade é que para a empresa até podem ser visto como previsíveis; com as perdas a serem vistas mais como um investimento do que um prejuízo de facto – um ponto que nos permite perceber um pouco melhor como funciona o financiamento das empresas.
É que, num mercado globalizado e para uma aposta a longo prazo, os analistas e acionistas da Uber não consideram propriamente os seus prejuízos como perdas: chamam-lhe “queimar” dinheiro com vista a uma estratégia de longo prazo, como de resto se pode ler no comunicado da empresa. Contudo há quem há muito critique esta estratégia e exponha as suas debilidades. É o caso de Huber Horan que esta semana publicou o seu 23º artigo em que sugere que a Uber nunca será lucrativa e que, portanto, parte desse dinheiro pode nunca voltar a ser recuperado.
A estratégia de empresas como a Uber, e tantas outras em diferentes escalas, é muito simples. Criam uma boa marca com que consigam atrair investidores que acreditem na ideia, a partir daí começam a sua expansão pelos sectores de interesse, investindo somas avultadas em marketing, em estratégias que permitam a penetração nesses mercados, e em inovação ou aquisições para que possam precaver evoluções repentinas dos sectores onde actuam. Sem uma necessidade de ter contas positivas, por ter fácil acesso ao crédito, as empresas continuam as suas operações independentemente dos resultados regendo-se apenas pela crença dos investidores.
Assim a Uber crescerá até que os seus investidores parem de lhe dar dinheiro, numa lógica que, legitimamente, subverte o princípio básico da procura e da oferta. Em boa verdade, o investimento estratosférico obtido por estas empresas afasta-as do curso da lei basilar da economia. Em vez de depender de clientes e de resultados económicos positivos, a empresa depende apenas de manter a promessa feita aos investidores – e nesse sentido quanto mais crescer melhor, num percurso que, contudo, pode não terminar da melhor maneira.
Ano após ano, e já lá vão quatro, o mundo espera por ver se é neste que a Uber consegue inverter a tendência constante de perdas. Sobre este ano havia uma especial expectativa que terá sido brutalmente travado pela pandemia de coronavírus. Apesar de a empresa ter apostado noutros serviços, como a entrega de comida, a realidade não parece estar muito favorável.
Sobre esse serviço em concreto, Hubert Horan, especialista em mobilidade, chama a atenção para a competitividade do sector e para a dificuldade dessas empresas custearem realmente o serviço ao ponto de se tornarem sustentáveis. Já sobre as viagens, Horan alerta que não existe nenhuma previsão que a queda que se sentiu à boleia do coronavírus possa recuperar muito rapidamente.
Perante isto, surge a questão de como continua a Uber a prosperar, a inovar, a dar descontos, se continua consecutivamente a perder dinheiro. A resposta é simples e recorda-nos, por exemplo, os míticos episódios da série Shark Tank. Apesar de a empresa continuar a sua escalada de valorização à medida que se expande por vários mercados, se torna mais conhecida e reconhecida, a verdade é que os seus proveitos não aumentam na mesma ordem, causando um descolamento entre o valor percebido e o valor real – algo que ficou patente no facto de na Oferta Pública de Aquisição ter tido um valor mais baixo daquilo que era esperado pelas contas da empresa, apesar da enorme procura. A empresa esperava entrar em bolsa com uma valorização na ordem dos 120 mil milhões, que lhe tinha sido atribuída por avaliações bancárias, e acabou por ficar pelos 75-80 mil milhões.
Fundamentalmente, o caso da Uber recorda-nos a importância de ter dinheiro não só para gerir como para gastar. Ano após ano a empresa continua a registar perdas mas a somar clientes, serviços e parceiros, o que dentro de alguns anos pode, em tese, significar um retorno do investimento. A importância de queimar o dinheiro relaciona-se directamente com o estádio de complexidade da sociedade e a forma como as empresas nela se comportam.
Na era da pós-verdade em que os gabinetes de marketing e comunicação, os slogans e as imagens de marca ganham um peso maior do que algum dia tiveram, até para, por exemplo, provocar mudanças na lei – recordo o texto que aqui publicámos – a capacidade de investir sem necessidade de retorno é a grande mais valia de uma empresa – seja em que sector for e com que escala for. É essa disponibilidade que distingue o seu ritmo de inovação, a sua margem para estratégias promocionais e os avultados investimentos em campanhas de posicionamento; simultaneamente é também essa disponibilidade que afasta a empresa dos mercados em que actua, aproximando-a cada vez mais daqueles que garantem a sua sobrevivência e prosperidade, os investidores; um processo que explica que a deterioração das normais laborais se dê em algumas das empresas que são vistas como um exemplo para toda a sociedade.