Esta semana tem sido atribulada e entre os vários acontecimentos marcantes regista-se, infelizmente, uma ameaça feita por um novo grupo de extrema-direita a uma série de figuras associadas à luta antirracista e antifascista. No total foram 10 os alvos de um e-mail anónimo com uma ameaça expressa sobre as suas vidas e as dos seus familiares. A condenação, mais ou menos tímida, com ou sem “mas”, chegou de quase todos os partidos políticos, mas o timbre por que afinam as vozes das principais figuras do estado merece uma cuidada reflexão — para o efeito recorrerei a uma comparação com o mediático caso da invasão a Academia de Alcochete.
O popular caso que acabou com os arguidos mais mediatizados em liberdade — Bruno de Carvalho e Mustafa — foi um dos que mais agitou a comunicação social, provocando um clima de altercação social generalizada. Rui Pereira, antigo Ministro da Defesa, e comentador da CMTV foi dos primeiro, se não o primeiro, a avançar com a tese de que se tratava de terrorismo. A ideia acabou por singrar no seio da investigação chegando até ao julgamento, onde caiu por terra por não haver indícios que a comprovassem. A designação de terrorismo permitiu dar um carácter de especial complexidade e prioridade ao processo, serviu de justificação à imputação da autoria moral do crime com base em pouco mais do que algumas publicações de Facebook, e acabou por se revelar infundada. Como sugeriu a jurista Inês Ferreira Leite em espaço de comentário na SIC, este caso foi um dos em que mais flagrantemente o canal de comunicação entre justiça e a sociedade se perverteu. A explicação é simples, e tinha sido dada pela própria, ainda antes do julgamento — o crime de terrorismo caracteriza-se por uma ameaça a um grupo de pessoas que ponha em causa a ordem do estado, como se pode ler na Lei n.º 52/2003, em Diário da República: “Considera-se grupo, organização ou associação terrorista todo o agrupamento de duas ou mais pessoas que, actuando concertadamente, visem prejudicar a integridade e a independência nacionais, impedir, alterar ou subverter o funcionamento das instituições do Estado previstas na Constituição, forçar a autoridade pública a praticar um acto, a abster-se de o praticar ou a tolerar que se pratique, ou ainda intimidar certas pessoas, grupos de pessoas ou a população em geral”.
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No caso de Alcochete, a sua mediatização, ou talvez as imagens filmadas no local do crime, fizeram com que à partida para a investigação se propusesse a possibilidade de um dos crimes mais graves. Foi por aí que alinharam as vozes do estado a repudiar o caso. Marcelo Rebelo de Sousa revelou incómodo por ter de se sentar ao lado de Bruno de Carvalho, na altura na senda para se tornar arguido do processo como autor moral, e Ferro Rodrigues disse mesmo que o ataque punha em causa o “país”, pedindo às autoridades para que investigassem os dirigentes desportivos, sugerindo tacitamente uma associação entre Bruno de Carvalho e o crime, antes de qualquer investigação ou julgamento, mas corroborando a tese que mediaticamente se montaria e na barra do tribunal cairia por terra.
Já face à escala de manifestações abertamente racistas, feitas por anónimos, com inspiração nos movimentos violentos norte-americanos, ou mesmo face às ameaças com prazos de execução feitas à vida de pessoas, entre elas figuras de representação do povo — os deputados — a reação é completamente diferente. Marcelo diz, e bem, que não se pode instrumentalizar este tipo de casos sob pena de se proporcionar uma escalada no tom e uma radicalização ainda mais acelerada nas sociedades. Mas, agora pergunto, se Marcelo ainda não reparou que essa aceleração começou há algum tempo.
Ferro Rodrigues comentou as ameaças racistas numa nota deixada no site da Assembleia da República. Já sobre Alcochete falou de viva voz aos jornalistas e em tom visivelmente alterado. Marcelo equiparou as ameaças racistas a deputados a outras figuras quais, já quando foi o caso de Alcochete o valor dos atacados parece ter tido um peso primordial — convém lembrar aqui que invasões semelhantes já aconteceram, por exemplo, ao Vitória de Guimarães, em janeiro de 2018. Para além disso, o Presidente da República revelou, crendo na imprensa, um incómodo por ter de se sentar ao lado de Bruno de Carvalho a quem se imputou responsabilidade pela escalada do tom… Aqui novamente pergunto, neste caso não há ninguém que o incomode?
Voltemos à definição de terrorismo. É clara quando diz que se considera terrorismo uma atitude que vise prejudicar “certas pessoas, grupos de pessoas, ou a população em geral”. Ora, se perante o caso de uma invasão a um centro de treinos esse grupo é restrito, neste caso não. Aqui incide-se sobre um grupo de pessoas indeterminado com uma característica em comum apenas, o seu perfil ideológico antifascista e antirracista, e não sobre um grupo de profissionais de futebol de um determinado clube. É esta característica que revela o contexto discriminatório da ameaça, e em tese, deve agravar o seu enquadramento, à luz da norma constitucional que dita o direito à não-discriminação de etnias, géneros, religiões ou ideologias — contudo, neste particular recordemos as palavras de Catarina Sengo Furtado, mestre em Direito e autora de uma tese sobre terrorismo ao Público: “A sociedade atribui ao crime de terrorismo uma intenção meramente ideológica ou religiosa, porque é o mais comum. No entanto, da letra da lei não resulta que seja necessário praticar o crime com esse intuito”. Se no caso da invasão a uma academia de futebol não é credível dizer que a ameaça se pudesse alargar aos demais sportinguistas, não será exagerado dizer que as ameaças nestes termos visam condicionar quem se dedica a estas áreas de acção, configurando, no sentido lato, uma verdadeira intimidação, como refere a lei sobre o terrorismo.
E é por aqui que se deve exigir uma resposta institucional forte, para que, tal como diz Marcelo Rebelo de Sousa, não se instrumentalize o caso. Ao contrário do que diz o Presidente da República, não creio que uma resposta firme do Estado perante um caso desta natureza tenha de ser vista como uma instrumentalização. Antes pelo contrário. A instrumentalização destes fenómenos dá-se quando o Estado se recusa a agir ou atropela as suas próprias convenções — como o princípio da presunção da inocência no caso de Bruno de Carvalho. A instrumentalização dos fenómenos dá-se quando as instituições não são capazes de responder. Achar que ser vocal sobre ameaças deste grau pode conduzir à instrumentalização do mesmo — eventualmente por o tornar mais mediatizado — e não assumir que foi o que se fez no caso anteriormente falado, revela pouco discernimento na hora de falar sobre a justiça portuguesa e as reais ameaças ao bem estar nacional. sobre o que põe realmente em causa “o país”, como dizia Ferro Rodrigues. É caso para perguntar, quantos milhões têm de valer os deputados, activistas, cidadãos, para que as mais vis demonstrações de racismo possam merecer a mesma dureza das afirmações que uma virtual acusação de terrorismo?