Surgiu nos Estados Unidos da América há uns meses mas só agora completou a travessia para o Atlântico, ganhando destaque em França, onde o Liberátion fez uma reportagem sobre o assunto, e entre os apoiantes da extrema-direita nacional, como se pôde ver nos registos das conversas obtidos do grupo Resistência Nacional, no Telegram. Chama-se Parler, apresenta-se como uma rede social inovadora, um espaço primordial para a liberdade de expressão e a manifestação de crenças, mas olhando para o outro lado do mundo já é possível ver a sua outra face.
O Parler surgiu em 2018 e notabilizou-se, como um punhado de outras redes sociais, como resposta a um sentimento partilhado pelas falanges mais radicais de direita, especialmente norte-americana, que sistematicamente apontam para um alegado progressive bias – até na audição de Zuckerberg no congresso se ouviu enunciado este ponto. Dizem os influenciadores políticos deste lado do espectro que as redes sociais estão dominadas por “esquerdistas” – assim lhes chamam normalmente – que impossibilitam a total liberdade de expressão. Para o ilustrar, queixam-se muitas vezes de tweets banidos, conteúdos apagados ou sinalizados como falsos, ou, genericamente, dos seus posts – muitas vezes com teor abertamente racista – serem apagados ou restritos. É neste espaço de dúvida que app nasceu, se promoveu e cresceu. John Matze, o seu fundador e CEO, descreveu-a desde sempre como uma espécie de anti-Twitter; e pouco depois do seu início, o Parler processou a Google exigindo uma indemnização por monitorizar as sessões privadas de utilizadores.
Contra tudo e contra todos, o Parler estabeleceu-se com uma ilha na internet para onde é impossível espreitar sem ter uma conta registada. Para promover o êxodo em direção à sua rede social, Matze criou mesmo o mote #Twexixt, apelando a um abandono do Twitter, e um concurso com um prémio monetário de 20 mil dólares para um dos maiores influenciadores progressistas que se mudasse para a sua plataforma, a definir pela equipa de gestão e a comunidade de utilizadores. Neste objectivo encontrou-se com pesos pesados do lado conservador norte-americano que secundaram o repto e seguiram na sua direção, entre eles Devin Nunes, republicano com 1 milhão de seguidores no Twitter, Benny Johnson, colunista com 326 mil seguidores, Rand Paul, senador com 2,8 milhões de seguidores, ou Nikki Haley, republicana e antiga representante dos Estados Unidos nas Nações Unidas. Em comum nas suas notas de despedida – temporária – do Twitter, todos ou quase todos davam nota de estar fartos da plataforma do pássaro azul ao fim de uma década de utilização e apontavam o @Parler_app como o paraíso da liberdade de expressão. A epítome deste sentimento foi expressa num artigo no Wall Street Journal onde se revelava que a equipa de Trump procurava activamente uma nova rede social.
Parler will set you free! https://t.co/Zt6mQQGOfy
— Devin Nunes (@DevinNunes) June 24, 2020
It’s about time y’all joined me on @parler_app . What’s taking the rest of you so long?!
— Senator Rand Paul (@RandPaul) June 24, 2020
Se os apoiantes de Trump seguiam para fazer do Parler uma rede social Great Again, Matzer tentava equilibrar a perspectiva aliciando os “liberais progressistas” como lhes chamou no concurso acima referido. Contudo, foi impossível para o fundador travar a deriva em que a rede social acabou por entrar. Acabou mesmo por ser um dos mais vocais apoiantes deste movimento associado a Trump, Jack Posobiec, um dos primeiros a afirmar que “Actualmente, o Parler parece uma concentração do Trump”.
Com os dois grupos a aderir ao apelo, rapidamente a aplicação ganhou uma base de utilizadores considerável. Em Junho, John Matze reportava em entrevista à CNBC um crescimento de 1 milhão de contas para 1,5 milhões em apenas um mês, e dava os primeiros sinais da concentração que por ali se ia formando. Actualmente estima-se que tenham 2,5 milhões de utilizadores. Foi então por essa altura que as atenções da imprensa começaram a centrar-se na aplicação e as suas falências começaram a vir ao de cima, nomeadamente no que toca à definição de liberdade de expressão. Para Matze, este conceito baseia-se no entendimento norte-americano, a famosa 1ª Emenda da Constituição, tornando-se um valor quase absoluto – a rede rapidamente se tornou em terreno fértil para discurso racista e ofensivo, propagado em modo eco. A MAGAficação (de Make America Great Again) da rede social tornou-a uma câmara de eco para os apoiantes de Trump e um lugar seguro para dizer aquilo que noutros sites viola os termos de serviço. Matze, de apenas 27 anos, percebeu o problema, lançou o concurso de 20 mil dólares mas nem por isso os desígnios mudaram. As suas regra, apesar de dúbias, também não.
Matze define a política da sua rede dizendo que “Se se pode dizer nas ruas de Nova Iorque, pode dizer-se no Parler” e estabelece a linha vermelha à participação de organizações terroristas, linguagem violenta (“fighting words”), chantagem, pornografia ou spam. Para evitar dúvidas, no Parler existe um sistema de verificação de contas de figuras públicas (a dourado) e de contas de paródias (a roxo). De resto, o jovem diz que o Parler nunca teve como intenção tornar-se numa plataforma pro-Trump e garante que o único objectivo da sua empresa, com cerca de 30 colaboradores, é promover o debate saudável. Contudo, os grupos que frequentam a sua rede social e a ambivalência das suas regras não têm dado a melhor reputação à sua proposta.
Em França, foi a meio de Julho que o grupúsculo de extrema direita, Génération Identitaire, começou a promover esta rede social, depois de ver várias das contas dos seus principais membros excluídas do Twitter por violação das regras plataformas – o Twitter não avançou explicação mas a imprensa francesa dá conta de que eram óbvios os seus apelos ao ódio, sintetizados no slogan “Defender a Europa”. Já em Portugal, depois de referências entre os youtubers portugueses de extrema direita, foi no grupo Resistência Nacional que voltou a ressurgir o convite – que também se encontra pelos feeds das redes sociais. Pesquisando Portugal no motor de pesquisa da app percebe-se facilmente o padrão de utilizadores que a app colheu até agora. Para além disso, recorrendo à mesma pesquisa, encontram-se várias referências do panorama português. A página de apoio ao partido Chega é uma das mais activas na plataforma, reunindo quase 1000 seguidores.
Entre os comentários e as partilhas percebe-se que o objectivo de Matze está longe de ser cumprido. É que o fundador da rede social rejeitava a ideia de se tornar uma câmara de eco para qualquer grupo ideológico, algo que se verifica muito rapidamente após feito login. O CEO responsável pela rede social diz-se apartidário e, para além disso, teme não conseguir financiamento que torne o seu projecto rentável se mantiver o viés ideológico. Para além disso, a proliferação de contas falsas na plataforma é evidente – passados 15 minutos de um registo sem fotografia, a publicação automática que surge no perfil criado conta já com 3 comentários, entre eles de uma conta verificada, associada à Team Trump, apelando ao clique para que me juntasse ao movimento de candidatura.
Na base desta moderação, ou falta dela, estão os termos de serviço da aplicação sobre as quais John Matze já teve oportunidade de falar, demonstrando a sua interpretação. Para o CEO, as redes sociais não podem definir o “indefinível” e é nessa afirmação que se escuda para justificar que a sua aplicação não elimine conteúdos racistas ou homofóbicos. Ainda assim, Matze assume falhas nas guidelines — um pdf de apenas 6 páginas — que garante estarem a ser revistos e que merecem ser objecto de análise.
Os termos da comunidade do Parler são mais simples de ler do que os de qualquer outra rede, contudo infinitamente mais ambíguos. No documento não se encontra mais do que uma série de considerações do que um utilizador deve evitar fazer – não há qualquer referência a racismo ou homofobia, mas existem vários pontos ambíguos que sugerem que o utilizador deve evitar o recurso a linguagem ou imagens sexualizadas, ou mórbidas, entre outros. Em suma, o Parler não define regras para os assuntos sensíveis, assentando sobre um critério ambíguo e subjectivo que ganha força nos termos e serviços, onde a empresa diz que pode remover qualquer conteúdo e impedir o acesso ao seu serviço a qualquer altura e por qualquer razão que os moderadores considerem ilícito. Segundo a equipa responsável pelo site, a aplicação destas políticas tem sido difícil, tanto que na sua conta própria pediu a moderadores voluntários que se juntassem à operação – algo que, convenhamos, pode aumentar ainda mais o viés ideológico já premente na rede social. De resto, importa lembrar que, na rede social que começa as suas ‘regras da comunidade com um aviso contra o Spam, não foi preciso mais de 5 minutos online para receber um comentário automático de uma conta pro-Trump que preencheria todos os requisitos para figurar nesta categoria de conteúdo proibido.
O futuro da rede social é difícil discernir. Com o seu público tão ideologicamente demarcado, Matzer garante que não tem sido fácil arranjar financiamento nem publicidade. De resto, neste particular, o empreendedor propõe um método descentralizado em que cada marca pode escolher os influenciadores que quer “apoiar” com as suas inserções publicitárias, algo que, de certa forma, pode fazer com que algumas marcas saltem para o vagão ideológico, vendo nestes dedicados nichos potencial de mercado. Por agora, o Parler parece uma espécie de Ello para a alt-right e ideologias extremistas. O seu conteúdo tem pouca interação e os seus utilizadores comunicam sobretudo entre si num circuito fechado. Ainda assim, a rede social merece a nota a partir do momento em que se torna plataforma de eleição para reunião dos grupos que por violações sistemáticas das regras das diversas plataformas se vêem constantemente obrigados a mudar. Se em tempos víamos a extrema direita a migrar para o russo VK, agora parece ser o Parler a ganhar tração.
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