Emmy Awards batem recorde de representatividade negra, mas “o que é preciso para MJ Rodriguez ser nomeada?”

Emmy Awards batem recorde de representatividade negra, mas “o que é preciso para MJ Rodriguez ser nomeada?”

7 Agosto, 2020 /
POSE/Netflix

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Pelo segundo ano consecutivo, as atrizes que moldam as narrativas principais da série 'POSE' - Mj Rodriguez (Blanca), Indya Moore (Angel), Dominique Jackson (Elektra), Angelica Ross (Candy) e Hailie Sahar (Lulu) – ficaram de fora dos Emmy Awards.

Foram recentemente divulgados os resultados das nomeações para os Emmy Awards, que decorrem no dia 20 de setembro, se tudo correr como planeado. O maior número de nomeações vai para Watchmen, série de Damon Lindelof transmitida pela HBO, mas destacam-se na extensa lista de nomeados outros nomes menos óbvios, e talvez pouco mediatizados, mas não por isso menos importantes. Exemplo disso são We’re Here, transmitida em Portugal pela HBO, que acompanha Bob the Drag Queen, Eureka O’Hara e Shangela, três drag queens, numa viagem por diferentes lugares remotos nos EUA e o confronto nos mesmos com a intolerância para com a comunidade LGBTQI+, e POSE, a série de Ryan Murphy, Brad Falchuk, e Steven Canals, que resgata os primórdios da cultura do Ballroom. 

Para POSE, a única nomeação para um Emmy da área da interpretação é para Billy Porter, que dá vida a Pray Tell, e que já foi vencedor na mesma categoria (Outstanding Lead Actor In a Drama Series) em 2019. Sobre Pray Tell e a sua representação, pouco ou nada há a questionar, mas também pelo segundo ano consecutivo as atrizes que moldam as narrativas principais da série – Mj Rodriguez (Blanca), Indya Moore (Angel), Dominique Jackson (Elektra), Angelica Ross (Candy) e Hailie Sahar (Lulu) – ficaram de fora.

O descontentamento tornou-se público pela voz de Indya Moore e Angelica Ross que, através das suas redes sociais deram a ver porque é que a falta de nomeações representa um vazio: “Preciso que vocês entendam que estou tão cansada, porque aqueles que me conhecem sabem que eu não estou a trabalhar apenas em frente ao ecrã ou atrás das lentes. Estou a trabalhar dia e noite para que a nossa sociedade valorize vidas trans e vidas trans negras. E ouçam, eu sinto o que sinto porque sinto que não há nada que possamos fazer”, disse Ross num vídeo em direto que fez na sua conta do Instagram.

O que o casting de POSE esperava não era – como disse Indya Moore num tweet – obter nomeações a prémios Emmy apenas por ter cinco mulheres trans no elenco principal, a fazer o papel de mulheres trans. Moore explica que tem que ver com “algo sobre pessoas trans não serem homenageadas num programa sobre pessoas trans que criaram uma cultura para nos honrar porque o mundo não o fez” e acrescenta ainda que não pode dizer a ninguém que merece o que têm para oferecer, porque não inventou “a academia [Television Academy] ou quaisquer outros prémios” e “se eles acham que o [meu] trabalho não é merecedor”, não há problema.

Steve Canals, um dos criadores da série também lançou o debate no seu Twitter, ao perguntar “o que é que a MJ Rodriguez tem de fazer – além de entregar o seu coração e pôr a sua alma em cada cena – para ter uma nomeação de melhor atriz?”

A categoria é… POSE

POSE surge em 2018 como uma pedrada no charco das produções mainstream. Pela primeira vez, e pela mão de Ryan Murphy, o elenco de uma série mainstream interpretava-se a si mesmo — homens gay a fazer de homens gay, mulheres trans a fazer de mulheres trans. Desde o começo que POSE, pela sua existência, alerta para a importância de ter atores e atrizes não-cisgénero na tela e na televisão.

Nos subúrbios de Nova Iorque, em Harlem, nos anos 80, a cultura do Ballroom fervilhava e antes de Madonna se apropriar do Vogue, género de dança que pisca o olho às poses que top models faziam nas capas da revista de moda centenária, o mesmo nascia e crescia nos Ballrooms. Nesses bailes encontravam-se sobretudo negrxs e latinxs da comunidade LGBTQI+, que se organizavam em casas lideradas por uma mãe ou um pai, que simbolicamente representavam a família que os seus elementos nunca tiveram ou se viram obrigados a abandonar. É neste ambiente, já levado para o cinema em 1991 por Jennie Livingston com o documentário Paris is Burning, que POSE vive.

Na série de Ryan Murphy, Brad Falchuk e Steven Canals, disponível em Portugal através do Netflix, a narrativa central em torno da cultura do Ballroom desdobra-se em narrativas paralelas que moldam o contexto de cada personagem. No guião sensivelmente escrito por quem se relaciona, direta ou indiretamente, com os temas tratados, não existem personagens-tipo, estereótipos alongados, nem uma romantização de temas fraturantes. Pela diversidade de personagens e histórias, POSE mostra ao longo de duas temporadas o que foi fazer parte destes bailes e as complexas camadas da vida dos seus intervenientes, e convida quem não se revê diretamente neste lugar de fala a juntar-se, tomando uma posição empática — de escuta. Ainda que seja uma série ficcional que relate momentos históricos, o que POSE acrescenta é mais do que um conteúdo educacional: um lugar que possibilita a compreensão e que relembra a importância da representação e da representatividade.

A cultura do Ballroom surge como escape aos pesadelos da vida real e torna-se de imediato um lugar de pertença. Através de diferentes categorias e a representar a casa a que pertencem, xs participantes competem entre si para ter a melhor pontuação e serem xs grandes vencedorxs. Faziam-no lá por sentirem que não havia outro lugar onde pudessem obter reconhecimento, em concursos de beleza ou no meio do espetáculo. Esta noção convocada por POSE é levantada a certa altura em Paris is Burning, alguém diz que “os balls são o mais perto que alguma vez estaremos de toda aquela realidade de fama, fortuna, estrelato e ribalta”, como a Vogue cita nesta peça sobre voguing. E é também por isso que uma nomeação para um Emmy não é apenas uma nomeação para um Emmy.

Trans a interpretar trans: o papel da representatividade

O primeiro ano de nomeações para os Emmy representou uma conquista para o elenco de POSE, que viu um marco ser conquistado. De um ano para o outro, ficou a esperança de receber mais nomeações e ver os nomes de pelo menos uma das atrizes principais, todas elas mulheres trans, na lista final. Raquel Willis, ativista pelos direitos das pessoas trans e responsável pelo Transgender Law Center nos Estados Unidos, alarga a crítica para a “disparidade entre homens gay cisgénero e mulheres trans”. “Isto vai além de cerimónias de prémios. Está por todos os media, nos nossos locais de trabalho, nas nossas comunidades, e mais. Não falamos mais disto porque as experiências queer são muitas vezes colapsadas”, disse num tweet.

Laverne Cox foi a primeira pessoa assumidamente trans a ser nomeada e a vencer um Emmy na categoria de interpretação, em 2014, pelo papel de Sophia Burset em Orange is the New Black. Um ano depois venceu o prémio de Outstanding Special Class Special enquanto produtora executiva de Laverne Cox Presents: The T Word, um documentário que acompanha sete jovens transgénero na América. Em entrevista à Indie Wire, a propósito de mais uma nomeação no ano passado, a atriz disse que “tem de haver uma razão maior pela qual fui nomeada, e talvez essa razão seja dar a ver o talento inacreditável de pessoas trans que estão a trabalhar na televisão neste momento” e que gostava de “encorajar o júri dos Emmy a considerar outros talentos trans”. “É uma honra mas também traz uma responsabilidade acrescida, que eu tenho esperança que consiga elevar o trabalhar o trabalho dos meus pares trans”, disse na mesma entrevista em que destacou o casting de POSE.

Cox tem sido um dos rostos da luta trans no meio audiovisual: co-produziu e apresentou TRANSform Me, uma série televisiva do VH1, tornou-se a primeira pessoa trans a ter um papel numa série televisiva (com Cameron Wirth em Doubt, transmitida pela CBS), e co-produziu, junto a Sam Feder, o documentário Disclosure, lançado este ano pelo Netflix. Em Disclosure, Laverne Cox e Sam Feder convocam intervenientes do mundo audiovisual e historiadores para analisar a representação e a representatividade trans no cinema e na televisão ao longo dos últimos 100 anos recorrendo a exemplos como Judith of Bethulia (1914) de D. W. Griffith, Dog Day Afternoon (1975) de Sidney Lumet, Ace Ventura (1994)  de Tom Shadyac ou The 40-Year-Old Virgin (2005) de Judd Apatow, mas também em talk shows.

No cinema é recorrente a representação da pessoa trans agressiva, transtornada e trabalhadora do sexo, e é também recorrente haver uma cena de vómito quando o homem heterossexual descobre que a mulher com quem andava a sair é trans — no caso particular de Ace Ventura, por exemplo, há um vómito coletivo, que começa em Ace (Jim Carrey) e se alastra pelos agentes da polícia, todos eles homens. Em talk shows, por muito que o pretexto para uma entrevista seja profissional, a pergunta que surge logo no começo é “mas já fizeste a operação?”. Perante estes exemplos que se manifestam vezes sem conta na tela e no ecrã, ainda que de forma decrescente, fica uma sensação de não-pertença para jovens e adultos trans que não se encontram, por não se reverem, nesses produtos.

Numa entrevista à TIME a propósito do documentário, Sam Feder disse que “nós [pessoas trans] precisávamos de contar a nossa história desta forma para que pudesse ser apropriada” e que espera que “pessoas trans se sintam encorajadas ao verem a sua história, a sua dor e as suas complexidades contados por outras pessoas trans”.

Olhando para filmes que tiveram na sua narrativa central personagens trans nos últimos anos, e cujos atores que as interpretaram conquistaram prémios da indústria cinematográfica, percebemos que eram pessoas cisgénero a dar vida a personagens trans. Os casos apresentados em Disclosure são The Danish Girl (2015) de Tom Hooper e Dallas Buyers Club (2013), de Jean-Marc Vallée. Em The Danish Girl, Eddy Redmayne interpreta Lili Elbe, a primeira pessoa na História a submeter-se a uma cirurgia de redesignação sexual, e a sua prestação valeu-lhe nomeações nos Óscares, Golden Globes, BAFTA, Critic’s choice awards e SAG Awards. Já em Dallas Buyers Club, Jared Leto deu vida a Raymond “Rayon”, que lhe valeu prémios na categoria de melhor ator secundário nos Óscares, Golden Globes, Screen Actors Guild, Critic’s choice awards, Satellite Award e Independent Spirit Awards, mas que já na altura tinha sido alvo de críticas à forma caricaturada com que se apresentava Rayon.

À luz de Disclosure, não é difícil entender porque é que é tão importante que cerimónias de prémios como os Emmy ou até como os Óscares repensem as suas métricas de avaliação e tenham critérios como a representatividade em conta: porque tal como o mundo e o pensamento avançam, as estruturas e instituições nele vigentes podem acompanhar essa mudança. Exemplo (positivo) disso é o número recorde de nomeações de pessoas negras, correpondendo a 34,3% num total de 102 nomeados em categorias de representação, um possível reflexo da consciencialização trazida pelo movimento Black Lives Matter, que se manifestou durante a fase de votação.

Num ano marcado por momentos conturbados para pessoas trans nos Estados Unidos da América e manifestações a relembrar que as Vidas Trans Negras importam, mantém-se, para xs elementxs da comunidade trans, a esperança de que no próximo ano os muros sejam derrubados também nas estruturas mais clássicas.

Quando a Marcha do Orgulho não sai à rua, mas continua na vida

Autor:
7 Agosto, 2020

Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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