Vivemos uma pandemia. É natural que, com o avançar do tempo, acabemos por integrar este facto no nosso modo de vida com crescente normalidade. Apesar das adversidades, e com limitações graves, temos vindo a sair de casa, retomar alguma atividade económica e social, revisitar os amigos e familiares.
Se há algo que este vírus já demonstrou, em diversos pontos do globo, é a sua persistência e virulência, disseminando-se muito rapidamente e levando a situações de descontrolo em poucos dias. A metáfora da “mão sobre a mola”, que Marcelo Rebelo de Sousa popularizou, é a este propósito muito elucidativa: a COVID-19, no enquadramento epidemiológico que existe (pelo menos) até ao final do ano, não ficará mais ou menos controlada por mecanismos de natureza passiva (“parece que as coisas já estão a melhorar”), mas sim pela aplicação sistemática, rigorosa e permanente de medidas ativas de supressão e controlo das redes de contágio. É da natureza da mola o impulso para se libertar da tensão que sobre ela se aplica, do mesmo modo que é da natureza do vírus a sua expansão e disseminação.
A mão sobre a mola, prosseguindo a imagem, consiste nas conhecidíssimas medidas de saúde pública: distanciamento físico, uso de máscara, higienização das mãos e superfícies, ventilação dos espaços. É do interesse público e coletivo que se consiga controlar a pandemia, com o objetivo de: poupar vidas e doença, poupar recursos, poupar a economia nacional, acelerar o processo de retoma da dita normalidade social.
Mas está claro que a luta contra o vírus não é um bem absoluto, e deve ser ponderada numa ótica de risco-benefício. O Avante é uma festa política que mobiliza milhares de pessoas, com uma história rica e marcante, que é o reflexo permanente, ano após ano, do posicionamento do PCP na vida política nacional. É, no melhor dos sentidos, uma “prova de vida” fundamental à organização partidária. Para os trabalhadores e o povo, oprimidos pelo pior que há no sistema capitalista vigente, é uma oportunidade anual de comunhão e partilha, cujo valor não me cabe julgar ou criticar.
Os aspetos positivos e proveitosos, que o PCP promove no exercício inalienável da sua liberdade de ação política, devem ser, todavia, colocados na balança da realidade circunstancial que vivemos.
Num momento em que o fascismo e o populismo anti-científico se reerguem dentro das nossas fronteiras, seria uma demonstração de bom senso, respeito pela comunidade e pelo conhecimento científico, o cancelamento desta iniciativa.
É também na arena do respeito pela ciência e pelos profissionais de saúde que se tem de marcar a fronteira entre os democratas e os populistas autoritários. Basta observar o desastre americano ou brasileiro no confronto com este vírus para entender como nos devemos posicionar. E estar atento à Rússia de Putin, com a recente alegada vacina, alheia às melhores práticas de investigação, partilha e produção de saber científico, completa o quadro de forma vívida.
Não tenho quaisquer dúvidas sobre a capacidade de disciplina do PCP no cumprimento escrupuloso das orientações técnicas que forem emanadas pela DGS a propósito deste evento. Mas mesmo na hipótese de uma festa sem mácula, o risco da sua convocação é inegável e irrecuperável, quer na propagação do vírus, quer na imagem pública do partido.
Vale a pena referir ainda que muitos dos argumentos apresentados contra a celebração do Avante, frequentemente inspirados por ideologias anticomunistas, falham o alvo da racionalidade política ou técnica.
Por um lado, o Avante é um festival político, não sendo equiparável, aos olhos da lei, a um comum festival de música. Para além disso, a avaliação técnica sobre estes eventos é sempre feita de forma específica, caso a caso: um evento num recinto fechado não é igual a um evento em amplo espaço aberto; um evento com gritos e consumo de álcool não se compara com um evento silencioso e pacato; um evento numa região do país com muito poucos novos casos não se pode comparar com um evento realizado numa região em crise aguda.
Acima de tudo, o Avante permite uma lição paradigmática sobre como conduzir um juízo decente e informado acerca da realização de eventos em tempo de pandemia. Ponderar riscos e benefícios, analisar o contexto específico, não estabelecer comparações falaciosas e, mais importante, decidir qual a imagem pública e o posicionamento que cada indivíduo, associação ou partido deseja assumir mediante o conhecimento científico e técnico.