Como profissional que diariamente escreve sobre o que se passa no mundo e como pessoa especialmente atenta e preocupada com os fenómenos que vão cruzando o nosso país e a forma como eles são assimilados pelas diversas comunidades, tenho por hábito acompanhar, mesmo que sem grande interesse pessoal, como se desenrolam certos debates. Não é um exercício fácil, nem nada que se confunda com científico, mas perco umas horas a saltar de bolha em bolha nas redes sociais para me confrontar o mais possível com percepções divergentes sobre o mesmo facto. Esta semana não foi difícil escolher o meu objecto de estudo.
Depois da entrevista do Expresso ao Primeiro-Ministro António Costa que, digo desde já que ainda não li como deve ser, surgiram na internet os polémicos sete segundos em que o Primeiro-Ministro, já perante os microfones em baixo, extravasa com o entrevistador a sua opinião sobre a actuação dos médicos que a pedido da Associação de Saúde se deslocaram a Reguengos. Do pouco que se ouve e se percebe na gravação, destaca-se o adjectivo. António Costa num momento de clara descompressão retórica cataloga assim os médicos, alguém gravou indevidamente o som e a imagem nessa altura — em que a entrevista já havia terminado — e, supostamente, alguém terá filmado alguém que reproduzia o vídeo no seu computador para tratamento jornalístico. Foi assim às cambalhotas que tudo se tornou público; o Expresso reagiu denunciando a publicação não consentida do seu material, prometendo mesmo uma acção legal contra os culpados, mas quanto à divulgação propriamente dita não havia nada a fazer.
Um caso como este, em que o jornal deixa fugir parte dos brutos do entrevistado, configura uma clara violação — por dolo ou negligência — de um dos princípios basilares do jornalismo, a proteção das fontes. O adjectivo utilizado por Costa é claramente infeliz, diria até impróprio, mas a forma como o contrato de confiança basilar da profissão do jornalismo se quebra — tal como na esfera da justiça em Portugal a sua quebra se tornou uma norma — deve ser o ponto central da nossa reflexão. Ao invés de uma publicação assinada por um jornalista, corroborada pela estrutura de edição do jornal que assim se responsabilizaria e assumiria que, para si, aquela informação era de interesse público, neste caso a gravação sai sem que ninguém assuma a sua publicação, nem mesmo sob a capa de um pseudónimo.
Assim, parte de uma conversa, considere-se semi-privada, do Primeiro-Ministro chega à internet, sem que ninguém assuma considerá-la de interesse público, sem que ninguém assine e corrobore esta categorização. No fundo, sem que ninguém assuma ser o jornalista que filtrou e trouxe esta informação até ao público, garantindo cumprir os tramites a que obriga a profissão. É por isso que, como se viu em várias publicações nas redes sociais, comparar com o caso de Snowden ou até o de Rui Pinto é um exercício desonesto e revela uma profunda incompreensão do trabalho jornalístico, e do mundo que o jornalismo, de uma forma genérica, pode ambicionar. Tanto Snowden, como Rui Pinto, fizeram com que as suas informações passassem por equipas de jornalistas, The Guardian e Der Spiegel, respectivamente, para que o conteúdo tornado público não fosse escolhido com base num critério laço, como a força de um adjectivo. É essa diferença que consubstancia a jusante uma diferença ainda maior, é que se cobardes é um simples — e reitero, infeliz — adjectivo, o conteúdo revelado nos outros dois leaks supra-citados é objectivo. A crer no consórcio de investigação responsável pelo caso, Rui Pinto não revelou adjectivos sobre os casos que investigou — tornou acessíveis aos jornalistas documentos, facturas, contratos, tudo elementos factuais e objectivos que permitem estabelecer um sentido lógico da história, para além de saber a sua impressão pessoal sobre a cobardia dos intervenientes.
Comparar o adjectivo com o que é objectivo revela o caos comunicacional em que a nossa sociedade se encontra ou a aceleração com que para lá caminhamos. Se é certo que a afirmação de Costa pode ter consequências políticas, é o primeiro ministro e sabe melhor que ninguém os seus deveres de parcimónia discursiva – convenhamos que não estava propriamente em casa com a mulher e os filhos. É factual que um leak de 7 segundos de uma gravação à segunda derivada contém escandalosamente menos informação de interesse público que qualquer um dos outros leaks que têm sido usados como ponto de comparação. Embora a quantidade de informação não seja um critério muito debatido, é uma determinante do interesse público de um dado discurso ou documento. Rejeitá-lo é assumir que toda e qualquer devassa da vida privada tem legitimidade sob a égide do interesse público – sem assumir que do ponto de vista do funcionamento das sociedades algo material (objectivo) tem um potencial modelador muito maior do que algo simbólico (adjectivo).
Nesta comparação torna-se particularmente importante pensar na possibilidade de instrumentalização do trabalho do jornalista para fins políticos e nas voltas que algo deste género pode dar. É na mitigação do potencial de instrumentalização que se centra o critério do jornalista que quer transmitir os factos mais interessantes mas de uma forma objectiva, isto é, recorrendo a factos, mais uma vez. O caráter instrumentalizável do discurso, seja ele qual for, reside na sua ambivalente mutabilidade – na forma como perante o mesmo pedaço de informação diversas pessoas podem ter diferentes perspectivas, que variam apenas e só em função do tempo, do espaço e da mente de cada um. Assim chegamos ao último exemplo que esta semana também correu pelas redes sociais. Uma publicação de Instagram denunciava o escândalo sexual dos anos 80 envolvendo o arquitecto Tomás Taveira, afirmando que era graças a esses vídeos que se popularizara a expressão “Dói? Estudasses”. Nos comentários várias pessoas aplaudiam o despertar de consciência e as partilhas pela rede social espalhavam a mensagem.
Se é certo que o escândalo sexual é deplorável e condenável, e que nada do que foi filmado deveria ter sequer acontecido, é preciso perceber que a divulgação das imagens, feita pela revista Semana Ilustrada não foi a normalização dos acontecimentos. Antes pelo contrário, foi a sua denúncia. Se pode ter criado alguns hábitos na tradição oral portuguesa – algo de que francamente duvido mas não disponho de estudos pelo que não afianço relações tão fortes sobre duas palavras – a verdade é que esse hábito surgiu do elemento da denúncia e não da prática propriamente dita; pelo que, em última instância, creio que todos concordamos em considerá-lo um mal menor. É neste carácter subjectivo que a informação quando descontextualizada acaba por cair, permitindo problematizações retroactivas que eliminam toda a envolvente de um acontecimento, postulando afirmações sem fundamento como verdades absolutas.
Para ser totalmente franco, conheço os vídeos de que se fala e não me recordo da expressão que tantas vezes ouvira, especialmente desde que entrei no mercado de trabalho, e preocupa-me que o despertar de consciência se dê perante adjectivos ou análises profundamente subjectivas. Enquanto alguém que tenta fazer sentido do mundo, custa-me que acreditem que é possível fazer sentido com tão pouco e que despertar para o futuro é problematizar duas palavras de um escândalo amplamente divulgado no passado. É certo que vivemos tempos hipercomplexos mas mesmo por isso devíamos pensar duas vezes antes de agir, duas vezes antes de afirmar, e não o digo pelos visados. Digo-o pelas vítimas, pelas vítimas que a problematização de algo superficial e sem interesse real no presente escondem sob a ditadura do visível, do partilhável ou do googlável.
A normalização da violência sexual, das relações tóxicas, dos comportamentos neuróticos e obsessivos é um problema sério, mais sério do que uma expressão casual por muito que em algumas cabeças recorde um escândalo sexual deplorável. Como a plutocracia que distancia os líderes democráticos dos seus povos é mais séria do que um “cobardes” atirado ao vento. É por reconhecer a seriedade dos problemas que devemos exigir seriedade nas soluções e reconhecer humildemente que em princípio não seremos nós a mudar o mundo com um vídeo de 7 segundos ou um post de Instagram. Numa mistura entre o pensamento contemporâneo de Zizek que denuncia que perante a passividade histórica das sociedades respondemos com uma hipermoralização do discurso público, e o clássico de Voltaire que no Cândido nos pedia para cuidar primeiro do nosso jardim, eu sugiro que quem, como eu, acredita que a informação e o conhecimento pode ser a tábua de salvação da humanidade, comece por pensar em como isso pode acontecer. Não será simplesmente erradicando expressões subjectivas – pensem na quantidade de expressões do Estado Novo que usamos sem saber — nem propagando ad eternum infelizes adjectivos. Como diz o filósofo francês Bruno Latour, o pai da Pós-Verdade, para dar novo sentido ao mundo temos de começar a articular os factos, criando teias objectivas de dados comprováveis e concretos, que nos permitam tomar decisões correctas e fazer sentido do mundo, para além das nossas emoções.
Para combater a alienação em que vivemos não podemos aceitar caminhar passivamente para a alienação seguinte, pronta para ser instrumentalizada por um sistema material de dominância que nos esqueceremos, mais uma vez, de questionar. Para combater a alienação em que vivemos e todas as normalizações ou romantizações que a compõe que nem um cenário de madeira e papel kraft, temos de nos comprometer não com a face final da verdade, mas com a articulação dos factos, o seu contexto, e o seu potencial material de mudar alguma coisa. Afinal, como nos mostram os tempos, é de emoção exacerbada com uma lógica racional débil que vive a retórica dos populistas — por isso, se os queremos combater, não os devíamos imitar.