Na passada semana, David Roth assinou um artigo para a revista New Yorker onde estabelecia um paralelo entre a atual quasi-distopia americana e uma obra algo inesperada: Starship Troopers, filme de guerra sci-fi do realizador holandês Paul Verhoeven, lançado em 1997.
O autor associa o patriotismo desmedido demonstrado pela sociedade humana no filme ao frágil orgulho nacionalista que floresceu pelo solo americano fertilizado por Donald Trump; patriotismo este que, em termos práticos e objetivos, se arredonda numa forma quasi-fascista que tanto tem de violento como de subversivo.
Starship Troopers decorre no século XXIII e conta a história de um grupo de recém-graduados do liceu que se integra no exército para poder adquirir cidadania plena perante o Governo, sendo que só assim terão acesso a direitos como o de voto. A United Citizen Federation (uma América totalitarista que se expandiu por todo o território terrestre) encontra-se numa já longa guerra contra os Arachnids, uma raça de insetos alienígenas cujo planeta a UCF tentou colonizar. O ódio a esta raça é incentivado pelo Governo, quer seja pelo constante fluxo anúncios de televisão de tom derrogatório, pela comunicação social preconceituosa, ou até mesmo no sistema de educação que promove o ódio nas camadas sociais mais jovens, cujos professores são todos veteranos de guerra.
O filme é uma adaptação do livro homónimo de Robert A. Heinlein, lançado em 1959. No entanto, em vez de prestar vassalagem à obra original — Verhoeven descreveu-a como sendo “muito de extrema-direita” — subverte o seu intuito numa sátira violenta, exagerada e, por vezes, cómica. Para a New Yorker, Roth descreve isto dizendo:
“Com a possível exceção do American Psycho de Mary Harron, é difícil pensar numa adaptação cinematográfica que se foque mais em refutar e satirizar a sua fonte. O anti-Fascismo de Starship Troopers é mordaz e sem piedade, mas Verhoeven avança o seu argumento construindo cada enquadramento de forma arrojadamente, exageradamente fascista.”
Mas esta pompa bombástica hipervisual não dilui a crítica sociopolítica escondida abaixo da superfície. O filme que vai buscar folgo ao cinema nazi usado pelo regime de Hitler como forma de propaganda, referenciando por exemplo obras como Triumph des Willens (em inglês, Triumph of the Will), o famoso documentário pró-regime da realizadora Leni Riefenstahl.
Verhoeven sempre desdobrou sátiras que caminham num perfeito equilíbrio entre a crítica social informada e o cinema de classe B, trashy e excessivo, com sangue e sexo a rodos. Aquando do lançamento deste filme em 1997, o realizador holandês já tinha deambulado sobre temas como a privatização e desumanização policial no clássico Robocop, colonização corporativa e invasão de privacidade em Total Recall e a subversão total da mulher-objeto no espaço cinemático em Basic Instinct.
Com a possível exceção de Total Recall, não há nenhum filme de Verhoeven que não tenha sido alvo de aceso debate quando lançado nos cinemas, com vários dos seus críticos a acusarem-no de fazer obras vácuas e auto-indulgentes pelos seus inúmeros excessos gráficos. Starship Troopers foi acusado por alguns de ser pró-fascista, enquanto outros dizem que não passa dum filme de sci-fi extremamente violento, sem algum significado maior.
Quando eu tinha uns 11 anos, vi um clip na televisão do filme onde um dos enormes insetos rasga um jornalista ao meio com as suas mandíbulas. A violência extrema da cena chocou-me de tal forma que, quando eventualmente vi o filme na integra anos depois, estava do lado das personagens que, tal como eu, queriam ver cada um daqueles bichos morto e esmagado. Para mim, aquilo não era nada mais do que um filme sobre matar monstros asquerosos. Só no ano passado é que, ao rever o filme, me apercebi da veia fascista propositada que, de forma crescente ao longo do filme, suporta cada enquadramento, diálogo e decisão narrativa.
Ao contrário de muitos outros futuros distópicos representados no cinema ou na literatura, aquilo que vemos é uma sociedade rica, organizada e limpa, mas estéril de qualquer tipo de lei moral ou ética. Como Roth diz:
“Um dos objetivos principais de Verhoeven é o de representar uma sociedade cuja fixação na força a deixou arrogante, idiotica, e paradoxalmente fraca.”
A sociedade do filme, a América “ideal”, dispôs-se de tudo o que era empatia e amor, restando como uma concha oca infiltrada por um parasita que se apropria do ar que lá sobra. E é precisamente com esta nota que Roth culmina o seu artigo:
“Donald Trump não livrou a política americana de tudo exceto violência; ele é simplesmente o que resta disso. Ele é mais o emblema da derrota da América do que o seu autor.”
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