“Isto este ano é como o 25 de Abril.” Esta frase, com aquela ou outra variação, tem sido repetida nesta época de exames que para alguns já terminou e para outros está quase, aludindo à confusão que se terá gerado no ensino como efeito co-lateral da revolução e que foi ficando na memória. Depois de um período de aulas à distância por força do Covid-19, que obrigou alunos e professores a adaptarem os seus métodos de trabalho, o maior desafio chegou, no entanto, na altura de avaliação. Para os alunos do secundário, os exames nacionais deixaram de ser totalmente obrigatórios e têm tido perguntas facultativas; para os que já frequentam a universidade a avaliação foi feita, sobretudo, online na plataforma Moodle.
Comecemos pelos exames nacionais atípicos. Na 1ª fase que termina esta semana, foram quase menos 90 mil os alunos inscritos nas provas que têm como objectivo estabelecer um critério nacional de avaliação. Isto aconteceu porque, este ano, os estudantes só são obrigados a fazer os exames se estes contarem como prova de ingresso no curso superior que desejam. De resto, este ano os exames não servem para aumentar a média – o que deixou alguns alunos frustados –, pois as notas finais das disciplinas dependem exclusivamente das notas internas, dadas pelos professores. Para Luís Pereira dos Santos, presidente do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE), isto “pode ter alguma influência positivas nas médias”.
De qualquer modo, o Ministério da Educação disse que vai reforçar a inspecção às notas dos alunos para detectar escolas e professores que possam inflaccionar artificialmente notas dos aluno. “Seria muito danoso para o sistema se oportunisticamente alguém pudesse tirar partido das circunstâncias”, comentou Tiago Brandão Rodrigues.
As avaliações nos ensinos básico e secundário foram feitas ao longo do período de aulas, através de trabalhos específicos, questões ao longo das aulas e testes com consulta. Num vídeo publicado no YouTube, um estudante do 10º ano na área de Ciências Sócio-Económicas partilhou que este tipo de avaliação lhe permitiu acompanhar a matéria leccionada ao longo do tempo em vez de ter de estudá-la para um determinado teste. No YouTube outros estudantes publicaram as suas experiências durante um período de aulas invulgar, como esta aluna também do 10º ano.
Na Universidade as coisas têm sido diferentes. Uma antiga aluna de Estatística, já com mestrado concluído e uma boa nota na tese, foi contactada durante o período de exames para dar explicações. Quando procurou junto do contacto mais informação, percebeu que aquilo que procuravam era alguém para fazer o exame por si. Na mesma casa, a mãe, professora de Matemática, fazia horas pela noite dentro a criar múltiplas versões do mesmo exame, de modo a dificultar as cópias. Não foi um esforço em vão, mas houve fraudes na mesma. “Eles têm grupos de WhatsApp e contas Gmail comuns para partilhar as resoluções dos exercícios e trabalhos. E perguntam uns aos outros”, diz com consciência de que, apesar de haver suspeita de cópia, muitas vezes é difícil prová-lo.
Em última instância, os alunos fraudulentos safam-se. Este período de avaliação representou um esforço acrescido para os professores, depois de um semestre de aulas já difícil. As aulas online exigiram mudar processos e criar novos conteúdos; uma adaptação em tempo recorde de modo a minimizar o impacto da pandemia no ensino. Através do leccionamento por Zoom e da partilha de materiais no Moodle, o semestre de aulas correu dentro da normalidade possível. A professora de Matemática ouvida pelo Shifter já tinha experiência no ensino à distância. Entre auxiliar colegas menos aptos com as novas ferramentas e garantir tudo a tempo para os alunos, foi forçada a prescindir de fins-de-semana consecutivos e a fazer horas extraordinárias. O cansaço acumulado ao longo do semestre, diz, não ajudou na época de exames. Se antes tinha sido difícil, esta fase de avaliações foi verdadeiramente desafiante.
Vários professores recorreram à plataforma Moodle para criar os seus exames. Para alguns, como para essa professora, o Moodle permitiu criar exercícios diferentes e interactivos recorrendo a algumas linhas de código simples. Ponto assente para a grande maioria dos docentes foi a cronometração de perguntas, provas com exercícios aleatórios de uma enorme base de dados, mais questões de resposta curta e rápida, e a resolução sequencial da prova, restringindo o tempo que os estudantes têm em cada exercício e impedindo-os de voltar atrás. A ideia é, no fim de contas, desincentivar a fraude, mas isso levou também a alguma oposição por parte de alunos, que reclamavam liberdade para poder avançar e recuar no exame à vontade, e para gerir o seu próprio tempo.
A tecnologia deu também uma ajuda neste controlo. Através de ferramentas como o Respondus, os alunos não podiam mudar de janela nos seus computadores ou abrir documentos enquanto realizavam os exames. “Acho que o uso do Respondus correu bem tirando não funcionar bem em tablets e demorar a abrir em certos computadores. Mas a maioria dos professores deu tempo extra por causa disso e mantinham um chat no Zoom caso houvesse problemas”, refere um aluno da universitário ao Shifter. Uma reportagem do Observador reporta histórias de alunos que usaram chats de Discord ou WhatsApp para falar uns com os outros, mantendo um olho no computador e outro no telemóvel enquanto realizavam exames.
Para evitar essas situações, a maior parte dos professores obrigou os examinados a manter as câmaras ligadas durante o exame e, através do Zoom, faziam a vigilância das provas. Dificuldade de controlar às vezes dezenas de alunos à parte, também aqui os docentes podiam ser enganados, pois um estudante podia ligar uma câmara externa que o filme enquanto ao lado, fora do ângulo de visão, outra pessoa resolvia o exame no teclado ou ajudasse nas respostas. Por isso, alguns professores exigiram também o microfone ligado para dificultar as fraudes por este método. Outros optaram por realizar orais a quem suspeitavam de fraude, outros fizeram ameaças com o intuito de desincentivar o aproveitamento do sistema.
Os docentes falam entre si e dessa forma foram também partilhando experiências e “esquemas” para diminuir as eventuais fraudes; nessas conversas que muitas vezes acontecem nos seus próprios grupos de WhatsApp, surgem também histórias caricatas. Houve quem, por exemplo, recebesse chamadas sucessivas de um aluno que estava a acompanhar com perguntas específicas; à segunda ou terceira vez que o telefone tocou, o docente suspeitou que em vez de estar a tirar dúvidas de estudo estava a ajudar na resolução de um exame de outra cadeira.
Gonçalo Velho, presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup), refere ao Observador que os alunos que tinham vontade de copiar foram mais sofisticados que qualquer método ou programa para evitar fraudes e diz que as houve em larga escala. “Temos tido notícias de algumas fraudes em larga escala e se não foram detectadas mais foi porque os professores não quiseram cavar mais sobre o que estava a acontecer”, diz Gonçalo Velho, acrescentando que houve uma grande benevolência na forma como foram vistos os trabalhos e corrigidas as avaliações.
Para o aluno que aceitou partilhar a sua experiência com o Shifter, “acho que em certas disciplinas, os testes mais acessíveis que foram feitos em comparação com outros anos deram aos professores a impressão de que todos copiavam”.
“Claro que alguns copiaram, mas também não nos podemos iludir como se não copiassem antes disto tudo. Muitos mas muitos mesmo copiam em avaliações presenciais. E realizaram o curso injustamente. Ironicamente, os professores reparam mais nos copianços à distância do que presenciais.”
“As fraudes existem desde que existem avaliações e não pensemos que vamos conseguir acabar com elas”, explica ao Observador Madalena Ramos, professora do ISCTE, que tem desenvolvido trabalhos sobre o tema. “Mas depois há um paradoxo: sabem que é fraude, admitem a gravidade, mas admitem fazê-lo. Consideram que eram capazes de copiar pelo colega, pela cábula, de assinar a folha de presença de um colega, mesmo atribuindo-lhe gravidade”, acrescenta. “A preguiça era o principal motivo num estudo anterior que fiz, agora ficou em terceiro lugar. Agora, o primeiro motivo é a necessidade de obter boas notas.”
No final de contas, quem pode ter saído prejudicado foram os melhores alunos; aqueles que estudaram e queriam aproveitar os exames com toda a liberdade que estes costumam ter, gerindo a ordem das perguntas a que respondem ou o tempo em que realizam a prova. Trocar as voltas ao sistema de avaliação tornou-se mais fácil e exigiu dos professores um trabalho redobrado que dificilmente lhes será valorizado. Eles estiveram, tal como os profissionais de saúde, também na linha da frente para garantir que o ano lectivo terminava e que os alunos podiam prosseguir os seus percursos.
Há aprendizagens boas que podem ficar deste ano lectivo mas é importante percebermos daqui para a frente o que fica desta experiência excepcional e forçada neste período/semestre de aulas fora do sistema normal a que estamos habituados, que de certa forma sublinhou áreas com que nos habituámos a conviver com banalidade.
“Acho que a maioria dos professores se portou muito bem. Adaptaram-se rapidamente ao ensino à distância. Pena não ter havido grande uniformidade na aprendizagem”, comenta o estudante ouvido, que destaca a avaliação contínua ao longo do semestre em vez de uma avaliação única no final. “Alguns professores criaram mini-enciclopédias sobre temas da disciplina e manteve os alunos a trabalhar e a acompanhar a matéria. Houve também métodos de avaliação que achei bastante bons, por exemplo, vários testes faseados ao longo do tempo, que não só nos mantinha a acompanhar a matéria como podíamos ter tempo para prestar mais atenção a cada parte isoladamente e acabar num global satisfatório da disciplina. Esses testes mesmo supondo que se poderia copiar permitia que os alunos retivessem grande parte do essencial da matéria.”
No fundo, diz, “o essencial não são os exames e os que copiam, mas manter os alunos nas aulas e a estudar”. O ensino à distância e, em particular, a época de exames evidenciaram a fragilidade de um sistema assente em avaliações finais e não na aprendizagem e no estudo contínuo; um sistema em que valem mais as notas que o que se sabe.