O que em grande parte do mundo é um simples diagnóstico, no Brasil de 2020, pode tornar-se em uma guerra de versões. O anúncio de que Jair Bolsonaro teria testado positivo para a Covid-19 gerou mais incertezas do que respostas. O facto de o Presidente ter vivido sem grandes medidas de segurança diariamente nos últimos meses levanta a questão: como agora? Com a dúvida, um grande número de desinformações surgiu, assim como populares teorias de conspiração. Ao mesmo tempo, uma polémica coluna de opinião a sugerir que a morte de Bolsonaro seria o melhor para o país causou enorme discussão.
Bolsonaro positivo para a Covid-19: duas confirmações mas poucas certezas
O próprio anúncio não aconteceu sem polémica. O Presidente falou a jornalistas sem nenhum distanciamento, e chegou a tirar a máscara para o comunicado. Disse que pensava que já havia sido contaminado anteriormente. Em março, 23 pessoas de uma comitiva que viajou com o Bolsonaro para os Estados Unidos testaram positivo para Covid-19. A seguir, criou-se uma comoção geral para que Bolsonaro divulgasse o resultado de seus exames, sempre com relutância do palácio de Planalto.
A Fox News chegou a divulgar a confirmação de que Bolsonaro teria a doença, o que teria sido dito à rede por um dos seus filhos, mas logo foi contrariada. Em maio, três exames com resultado negativo foram divulgados por ordem do Superior Tribunal Federal (STF), mas em nenhum deles havia o nome de Bolsonaro, apenas alcunhas trocadas, o que levantou ainda mais dúvidas. Enquanto isso, o Presidente continuava a reunir-se com autoridades, muitas das vezes sem máscara, e cumprimentava diariamente apoiantes. Muitos na opinião pública partiram do pressuposto de que Bolsonaro havia sido um doente assintomático, o que explicaria a sua imunidade nos meses que se seguiram.
Por outro lado, o anúncio do teste positivo levou a uma sensação para muitos de que, enfim, Bolsonaro havia achado o que procurava. Um dos encontros mais recentes sem máscara foi no passado dia 4 de julho, quando se reuniu com o embaixador dos Estados Unidos para a celebração da data que marca a independência norte-americana. Após a divulgação do teste, o diplomata encontra-se em isolamento. O El País estima que Bolsonaro possa ter contaminado pelo menos 76 pessoas com o vírus da Covid-19.
O jornal ressalta que Bolsonaro usou a situação para propagandear a sua grande aposta no combate à doença: a cloroquina. Logo após o anúncio, o Presidente postou nas suas redes sociais um vídeo a dizer que havia melhorado por conta da medicação. A situação levantou dúvidas legítimas, já que a tese da cloroquina como cura é cada vez mais descartada no cenário internacional, e Bolsonaro poderia ter criado a situação para promovê-la. Os custos da aposta já começam a aparecer. Dados revelam que o país possui stock para 18 anos de tratamentos usuais com a cloroquina depois de o Exército ter produzido a medicação, comprada a um preço acima do habitual na Índia.
Ao mesmo tempo, teorias da conspiração ressurgiram. Às dúvidas acima mencionadas juntaram-se acusações absurdas, como a de que a facada que Bolsonaro sofreu em 2018 seria uma farsa, algo extremamente popular, ainda que distante dos factos. As dicussões foram oportunas para o Governo, já que assuntos incómodos como a ausência de ministros da Saúde e Educação foram deixadas de lado. Os dois últimos nomes sugeridos na segunda pasta foram rejeitados, inclusive com um desgastante escândalo por falsificação de currículo. Ao mesmo tempo, as investigações sobre corrupção na família avançam, o que gera uma particular indignação em parte relevante de quem o apoiou em 2018.
O caso ocorre pouco depois de um artigo publicado na revista Nature Medicine ter identificado que o nível de anticorpos em assintomáticos diminui rapidamente em até três meses, o que pode ter sido o caso de Bolsonaro, como o mesmo assume, poucos meses após a infeção. Num cenário incerto como o da Covid-19, cada novo paciente pode representar novos paradigmas sobre a desconhecida doença.
As consequência do “consequencialismo”
Pouco após o anúncio de Bolsonaro, o jornal Folha de S. Paulo publicou a coluna “Por que torço para que Bolsonaro morra”, escrita por Hélio Schwartsman, um influente jornalista. No artigo, a ideia é a de que, pesem as objeções morais decorrentes de desejar a morte de alguém, o “consequencialismo” do Presidente ser vitimado pela doença seria positivo, já que assim vidas poderiam serem poupadas com uma gestão melhor da crise.
Quase imediatamente, o assunto foi uma das principais discussões da internet, a causar enorme revolta, em especial entre os apoiantes de Bolsonaro. O ministro da Justiça demonstrou interesse de enquadrar o jornalista na Lei de Segurança Nacional, o que é pouco provável de avançar, mas é simbólico sobre o quadro político do país. No dia seguinte, em editorial, o Folha de S. Paulo afirmou que “torce pela pronta recuperação de Jair Bolsonaro”, e que espera, assim como ocorreu com Boris Johnson, que a contaminação sirva para que o Presidente se prepare para uma política mais responsável.