BATIDA: “Fomos programados e educados de forma a limitar as nossas opções”

BATIDA: “Fomos programados e educados de forma a limitar as nossas opções”

8 Julho, 2020 /
© André Carrilho

Índice do Artigo:

Falámos com o músico para perceber melhor os ingredientes de The Algorithm is not African!, as suas ideias e como pretende materializar as suas reflexões.

Pedro Coquenão nasceu em Huambo, Angola, mas cresceu nos subúrbios de Lisboa. Como BATIDA, cria um universo artístico que não conhece nem limites, nem fronteiras, e o tem levado a correr o mundo. Desta vez sobe ao palco para interpretar uma performance criada em Maio, a convite dos The Roots. O espectáculo acontece no Teatro S. Luiz, em Lisboa, reinterpreta um outro que em Maio teve transmissão em directo para todo mundo através do Youtube, seguindo no alinhamento o icónico Questlove. “The Algorithm is not African!” foi agora reinterpretado e preparado para este regresso aos palcos a convite do MusicBox enquadrado no Ciclo Takeover #1, dando o mote para uma reflexão altamente dançável sobre o mundo em que vivemos, neste caso aludindo directamente ao papel central dos algoritmos nas sociedades contemporâneas.

O espéctaculo acontece dia 11 de Julho no Teatro São Luiz, resultado de uma parceria entre o Music Box e o teatro lisboeta. Como descreve, “The Algorithm is not African!”, “é o resultado de um artista Luso-Africano confinado em casa, a partilhar música, tecidos, tecendo comentários sobre a imagem refletida de África no mundo ou sobre como o algoritmo traduz o continente”, na ressaca de um tempo que evidenciou ainda mais a dependência social dos algoritmos. Pedro Coquenão aka BATIDA é um dos artistas de destaque na cena que brota de Lisboa com os olhos e os sentidos postos em África, num espírito próprio, experimental e com espaço para a descoberta pessoal, para o erro criativo, fazendo de cada performance um momento único de expressão mais do que a réplica infinita de um alinhamento pré-definido. Falámos com o músico para perceber melhor os ingredientes deste seu cozinhado prestes a subir ao palco, numa tentativa de perceber as suas ideias e como o músico espera materializar as suas reflexões.

Quando sugeres que o algoritmo não é africano; referes-te aos diversos algoritmos, por exemplo, das redes sociais ou a uma assunção mais conceptual de algoritmo enquanto lógica maior que rege uma sociedade hiperconectada?

Refiro-me a ambos porque parte da performance tem que ver com pesquisas concretas e seus resultados. Costumo fazer isso quando quero perceber o que é o clichê quanto a certos temas e divirto-me com isso, apesar de alguns serem mesmo aterradores. Interessa-me perceber, não para seguir, mas para sentir o pulso tanto ao que faz os resultados serem o que são, como aperceber-me das limitações dos próprios algoritmos e das suas conclusões robóticas e desajeitadas. Recorda-me o assistir a imagens de robots nos noticiários, cada vez que havia um novo. Desta vez é mais assustador porque sabemos que, apesar das limitações, este algoritmo ajuda a que tenhamos de volta o que procuramos de forma literal. Esta resposta literal ao que pedimos inclui o colocar imbecis no poder. A parte mais conceptual está no assumir do título como um statement que quer provocar coçadelas de cabeça e perguntas. A grande maioria não passa da caption, do título ou da primeira página da pesquisa. O título ocupa esse espaço. A representatividade é ainda muito limitada e enganadora, tanto quanto a nossa memória e história.

Como artista com uma identidade muito relacionada com África, sentes essa descriminação do algoritmo no teu dia-a-dia em casos concretos? Ou como se manifesta para ti essa manifestação da não-africanidade de um algoritmo? 

Gostava mesmo que a sala esgotasse. O meu valor nas pesquisas e no algoritmo, precisa dessa palavra associada: esgotado. Desta vez gostava que fosse relativa a bilhetes, porque somos avaliados por números, em vez de mentalmente esgotado e com um ou mais “burnouts”. Acabei de escrever “Batida Esgotado” e a única referência que tenho vem de Inglaterra onde esgotei um disco. O resto, em Portugal, refere-se a outros artistas. Venham ver e as respostas são dadas no palco. Como no futebol mas com menos possibilidades de falhar e de dar um mau espectáculo, e por menos dinheiro.

Pesquisa por “Batida Esgotado” no Google

Este trabalho surge na ressaca de uma altura de confinamento onde acabámos por utilizar a internet como portal para o mundo, foi esse constrangimento que forçou esta reflexão?

Eu gosto de trabalhar. Gosto muito do que faço. A minha cabeça precisa disso muito mais do que o meu ego. Não preciso de constrangimento para trabalhar. Sou motivado pela minha vontade e necessidade de pagar contas. Esta peça é um raciocínio que já usei noutras (a da pesquisa) mais focada nela, pelo convite dos Roots e pela natureza do que me propus. Já estava na ressaca antes do confinamento e o confinamento não me alterou muito o processo criativo. Só o limitou na mobilidade e na receita. Pessoalmente entristeceu-me constatar a pequenez do nosso meio artístico e o valor que temos e damos à Cultura em Portugal. Investi muito mais do meu tempo a ser pessoa do que a ser um artista Português. Em Angola a coisa é mais directa. Precisamos de água na torneira, um pouco mais do que fubá e educação para todos.

Apesar de ser um tema relativamente comum em circuitos como as tecnologias os algoritmos não são alvo comum de um pensamento critico na esfera cultural – exceptuando alguns bons exemplos – consideras que há um papel a fazer na consciencialização para estas novas formas de funcionamento da sociedade e a forma como replicam preconceitos antigos?

Sim. A arte pode relacionar-se com a realidade normalmente, sem ter de ter essa missão. O normal é ser escapista, ser entretenimento, banda sonora de romance, mas falta-lhe amor na maior parte das vezes, falta-lhe empatia com o que nos rodeia. É incrível observar como consegue fazer o oposto de forma tão natural: o processo criativo passa mais por deixar-se levar pelo Algoritmo e tentar ir atrás dele, ser abraçado por ele, do que seguir o seu caminho próprio e contribuir para um Algoritmo mais interessante e rico. A extrema simplificação das coisas, a limitação da primeira página de pesquisa, dos tops, da palavra mais pesquisada, do título mais eficaz, da imagem com mais cliques, tudo isto é aterrador, avassalador e, num dia mau, derrota-nos e vamos ao tapete. Merda mais os números. Como em tudo há uma consciência e há o que fazer com ela. Para mim é impossível virar a cara, como é o não escutar e o observar. Auto nomeamos a nossa espécie de Homo Sapien Sapiens. Tenho de, pelo menos, tentar honrar esse nome pretensioso. Vou falhar nos números mas a tentativa ninguém ma tira.

© Humberto Mouco

Como se traduz isto para a música? Como se inclui uma reflexão que pode ser tão profunda quanto abstracta em algo que se possa escutar e eventualmente dançar?

Não consigo ver a coisa sem dança. É como ver o que quer que seja sem comida, sem água ou sem natureza. Gosto de pensar que nós sabemos como fazer isso. Estamos muito esquecidos. Fomos programados e educados de forma a limitar as nossas opções: a começar pela nossa orientação sexual que nos castra uma parte essencial da nossa vida e da forma de nos expressarmos. Qualquer imagem anterior à religião como a vemos, está repleta de música, dança, comida e catarse em conjunto. Esta pergunta pode ser traduzida para tudo o que fazemos. Como traduzir para a comida e a forma como comemos? Como traduzir para a finança e a forma como somos sustentáveis? Não é focando a solução em mandar Ingleses viajarem para Sevilha e apanharem um autocarro para nos trazerem Libras. Isso é muito pragmático/limitado não é? Eu não quero explicar como se traduz. Eu faço o que faço porque não consigo fazer de outra maneira. Adorava conseguir dormir descansado a ser mais literal e a corresponder à identidade que vende e que compramos quando falamos da “Nova Lisboa”, por exemplo.

Ter sido convidado pelos icónicos The Roots para um momento levou-te a querer pensar mais alguém e em algo que pudesse fazer sentido globalmente, daí a opção por aquilo que une as várias pontas do mundo, o algoritmo?

Tenho duas nacionalidades, sou filho de separações, mudei vezes de mais de casa e fui forçado a emigrar artisticamente. As editoras com que trabalho são 3 Inglesas e uma Belga. Este convite veio de Nova Iorque, onde já actuei 3 vezes, a convite. Tentar unir pontas e interagir com outros tem sido a minha vida. Perceber o que é o normal e como posso sentir-me mais normal, tem sido uma luta pela minha sobrevivência, não é uma necessidade do meu espírito. O unir sim. Não percebo como podemos achar que existimos sem os outros, as outras pontas.

(A entrevista que se segue foi ligeraimente editada por uma questão de clareza.)

Actualização 13:20h: Correção sobre os detalhes do espéctaculo: onde se lia “será transmitido” lê-se agora “foi transmitido, em Maio”

Autor:
8 Julho, 2020

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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