Para a maioria das pessoas, Wirecard não deve ser um nome propriamente familiar. Esta empresa tecnológica surgiu na Alemanha, apresentando-se como um processador de pagamentos, semelhante a um MbWay ou a um Paypal, mas a sua expressão mediática não faria prever o que agora se sabe — uma história que envolve a empresa, reguladores e jornalistas e que revela de uma forma paradigmática o funcionamento do sistema financeiro, servindo de lição a quem melhor o quiser compreender.
As suspeitas sobre a empresa Wirecard, fundada em 1999 e cotada na bolsa de Frankfurt, começaram no ano passado. Uma equipa de investigação do reputado Financial Times achou estranhos os números reportados pela empresa alemã e resolveu seguir-lhes o rasto, acabando por fazer chegar a público e aos reguladores os ecos das suas suspeitas. Resultado dessa investigação, os jornalistas descobriram documentos internos da empresa onde era mencionada a falsificação de documentos e de outras provas contabilísticas que permitiam à empresa manter a sua actividade. A Wirecard dizia ter sede na Irlanda e Alemanha, e sucursais nas Filipinas, Singapura e Dubai, e foi para descobrir onde estaria o dinheiro reportado nos relatórios e contas que os jornalistas começaram a investigação. Apesar de a empresa ter uma licença bancária na Alemanha, reportava o depósito de todo o dinheiro, à data 1,9 mil milhões de dólares, numa conta fiduciária.
Dias depois da publicação da primeira reportagem o escritório da Wirecard em Singapura foi mesmo alvo de buscas policiais mas quando tudo parecia apontar para uma investigação à empresa, na Alemanha, o regulador dava sinal contrário. A BaFin, entidade reguladora do mercado financeiro alemão, suspendeu a venda de acções da empresa, impedido o chamado short-sell, e mais tarde processou os dois jornalistas do Financial Times que assinavam a peça sobre a empresa. No geral parecia haver uma suspeita do regulador de que quem levantava suspeitas sobre a empresa estaria a tentar interferir no sistema financeiro alemão, corroboradas pelas declarações da BaFin que dizia suspender a transação de acções para proteger a empresa pelo seu papel no sector financeiro.
Apesar do processo, o Financial Times continuou a sua investigação, e as descobertas foram-se sucedendo. Depois das suspeitas de falsificação de documentos, os jornalistas reportaram que parte do serviço da empresa seria, de facto, prestado por terceiros e na sequência de uma investigação detalhada a cada uma das sucursais da empresa descobriram que afinal, a morada do escritório nas Filipinas, era afinal a casa de um pescador reformado, apanhado de surpresa por ser confundido com uma empresa financeira de dimensão internacional.
O contra-ataque
Por esta altura, Março-Abril do ano passado, a Wirecard voltou a contra-atacar. Primeiro processou as autoridades de Singapura pelas investigações aos seus escritórios e depois anunciou um aumento de capital na ordem dos 900 milhões de dólares, promovido pelo conglomerado de investimento Japonês, Softbank. Ao mesmo tempo, a EY corroborava as contas da empresa relativas ao ano anterior e as suspeitas pareciam amainar — menos na redação do FT. Em Julho de 2019, foi a própria Wirecard a acusar o FT de colaborar com os vendedores de curto-prazo (short term sellers) ao receber as questões da revista sobre mais uma peça que publicaria, desta feita sobre a sucursal de Dublin da empresa alemã, baseando-se num alegado áudio de uma chamada em que se ouvia um investidor a aconselhar outro mediante a iminência de mais um “artigo crítico no Financial Times”.
Meses mais tarde a empresa voltava a público, numa operação financeira para diluir o investimento da Softbank por outros investidores mais pequenos e ao mesmo tempo chegava aos tribunais a acusação sobre a revista acusada de “má utilização de segredos de negócio”. Nem um mês depois, mais um artigo do Financial Times vinha a público, denunciando que os lucros reportados pela Wirecard no Dubai e em Dublin eram inflacionados de modo fraudulento e que, para além disso, alguns dos clientes presentes nos relatórios nem sequer existiam. Neste momento adensavam-se as suspeitas e a necessidade de uma conclusão para esta história, demasiado confusa até então.
Foi nesta altura que entraram em cena as empresas de auditoria. A primeira a ser chamada foi a KPMG que, analisando as contas da Wirecard, reportou obstáculos ao seu trabalho e dificuldade em obter registo de algumas transações, nomeadamente entre 2016 e 2018, pelo que não poderia corroborar as contas da empresa. Ainda assim, a KPMG assumia a existência do dinheiro (cerca de mil milhões de euros) em Singapura com base nas afirmações do tal trustee da conta fiduciária que poucos meses depois acabaria por se afastar das operações da fintech alemã. Em sequência veio a público outra das grandes auditoras, a EY, assumir que poderia conduzir este processo — é Markus Braun, CEO da Wirecard, quem o anuncia.
O relatório que era para ter sido finalizado em Abril pela KPMG, atrasa-se assim até Junho mudando de mãos para a EY, sem que a empresa assumisse ou desse qualquer sinal de algo poderia estar a correr mal. A provocar o atraso estaria a crise de coronavírus que atrasou tudo, um pouco por todo o mundo. A 5 de Junho o caso muda drasticamente.
O momento final
Foi nesse dia que a polícia de Munique conduziu buscas no escritório da empresa alemã e começou uma investigação ao 3 principais líderes da empresa, numa operação resultante de uma queixa emitida pelo regulador que apenas um ano antes tinha repudiado as informações reveladas pelo FT. Mais tarde, o banco filipino BPI confirma que os documentos de prova dados à EY são “espúrios” e um dia depois é a própria Wirecard que diz que os 1,9 mil milhões estão “perdidos”. No meio disto tudo muda a estrutura de liderança da empresa, o CEO sai e James Freis, que entrara para “pôr ordem” na casa, acaba por assumir o papel de líder da empresa com o futuro incerto.
Em poucos dias iam caindo os obstáculos entre a empresa e a verdade. No dia 23, Markus Braun é preso sob acusações de fraude e manipulação de mercado, e a polícia de Munique informa o FT que outros antigos membros da https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistração da empresa estão sob suspeita, aludindo a um possível esquema de anos. A 25 de Junho a empresa declara insolvência tornando-se a primeira do mercado bolsista de Frankfurt a chegar a este ponto.
Contudo, se a insolvência da empresa podia ser o fim deste caso, a inoperância dos reguladores é a maior nódoa que fica no tecido financeiro alemão, podendo levar a mudanças drásticas. A BaFin tem sido alvo de duras críticas pela sua lentidão a responder às denúncias e por ter suspendido a transação de acções da empresa. A delegação de poderes inerente ao sistema financeiro alemão é tida como a principal condicionante a uma regulação proactiva e no rescaldo deste escândalo, Kristina Wogatzi, porta-voz do Ministério alemão das Finanças já veio anunciar um novo conceito de supervisão financeira a entrar em cena em breve.
A auditoria do mercado estava dispersa entre BaFin e FREP — uma entidade privada responsável pela fiscalização da contabilidade — e é essa divisão que deve desaparecer, depois de o governo cancelar o contrato com a FREP. Em causa está a assunção de que este esquema assentava numa lógica de auto-regulação dos próprios auditores do mercado financeiro tornando-se altamente permeável.
Quanto à empresa, depois de declarar insolvência garantiu que pretende continuar a sua actividade, o que reconquistou a confiança dos investidores, valorizando os títulos em bolsa em cerca de 200% em apenas um fim de semana. Esta recuperação deve-se sobretudo às informações avançadas pela Frankfurter Allgemeine Zeitug que afiança que grupos de capital de risco estarão dispostos a comprar activos da empresa alemã.