SpaceX: um grande passo para um homem, qual o sentido para a humanidade?

SpaceX: um grande passo para um homem, qual o sentido para a humanidade?

1 Junho, 2020 /
SpaceX via Unsplash

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Nove anos depois, os EUA voltam a protagonizar uma missão tripulada e, pela primeira vez na história da humanidade, foi uma empresa privada quem garantiu a boleia para a viagem – e se isso não é uma determinante moral sobre o feito, é paradigmático sobre o contexto em que ele surge.

Apesar de a tecnologia ter evoluído muito desde as primeiras viagens espaciais e estas serem uma realidade cada vez mais acessível, cada vez que o Homem atravessa a atmosfera em direção ao espaço faz-se história. Apesar de ser algo que já aceitamos como possível, continua a ser difícil e, de certa forma, arriscado, pelo que toda a humanidade se regozija a cada lançamento bem sucedido. Neste caso, o lançamento do SpaceX não foi excepção e até teve direito a transmissão em directo nos principais canais nacionais. Nove anos depois, os Estados Unidos da América voltam a protagonizar uma missão tripulada e, pela primeira vez na história da humanidade, foi uma empresa privada quem garantiu a boleia para a viagem –  e se isso não é uma determinante moral sobre o feito, o seu tratamento é paradigmático sobre o contexto em que ele surge. 

Era perto da hora de começo do habitual bloco informativo das 20h em Portugal, Sábado, 30 de Maio, quando nos EUA o SpaceX Demo-2 levantava voo para uma viagem inédita até à Estação Espacial Internacional. A missão espacial resultante da parceria entre a NASA e a SpaceX, uma das empresas de Elon Musk, foi transmitida em directo nos principais canais informativos e assunto tanto para apologia como para debate nas redes sociais, ressuscitando não só troca de ideias sobre o papel dos EUA e de outros países na exploração espacial, como sobre o papel e a preponderância do sempre controverso Elon Musk.

Embora seja de senso comum que o Homem já vai ao Espaço com alguma frequência, a verdade é que das suas últimas viagens nos sobram poucas recordações na memória colectiva. Depois da euforia dos primeiros tempos de descoberta e exploração espacial, a questão amainou e só volta ao centro das atenções quando volta e meia se fala sobre turismo espacial. Ou quando o assunto é a SpaceX.

Elon Musk faz parte de uma nova geração de empresários de sucesso em solo norte-americano e transportou para o sector da astronomia o perfil que nos habituámos a ver noutros sectores tecnológicos. Com carisma e uma personalidade cativante, apesar das sucessivas polémicas em que se envolve, Musk mudou em parte a visão americana sobre a exploração espacial e voltou a tornar a corrida ao espaço num fenómeno mediaticamente apelativo. Começando uma empresa de exploração do zero, Musk corporizou o chamado “american dream” e voltou a sonhar com o espaço numa assunção que molda a narrativa deste lançamento.

SpaceX via Unsplash

Jim Bridenstein, um dos https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistradores da NASA que acompanhou o lançamento, numa entrevista paralela em directo para o Youtube, tornou-o claro dizendo que “se isto [lançamento da Space] puder inspirar um jovem para ser o próximo Elon Musk, Jeff Bezos ou Richard Branson, é isso que interessa”, uma afirmação que ecoa a apologia do sistema norte-americano aos multimilionários produto da sua cantera e volta a abraçar a corrida ao espaço no centro do seu imaginário. Trump foi pela mesma via, expressou todo o seu fascínio num discurso em que começou por agradecer a alguém que representa o american ethos, Elon Musk, por ser um “empreendedor da internet” e em 2002 ter começado a “pôr dezenas de milhões de dólares do seu dinheiro na investigação de um novo foguetão” e inaugurou “uma nova era da ambição norte-americana” em que os EUA deixam de depender de outros países, numa afirmação que nos remete para a história.

Apesar de a missão da SpaceX ter tido um acompanhamento mediático memorável olhando para os dados recentes, facilmente percebemos que não foi um caso único de viagem ao espaço. Apesar de desde 2011 os Estados Unidos da América não terem assistido a nenhum lançamento, as missões russas – algumas delas tripuladas por norte-americanos – têm ocorrido a um ritmo médio de 3 por ano, tendo a última ocorrido a 9 de Abril deste mesmo ano, levando 2 astronautas da ROSCOMOS e 1 da NASA a bordo. O programa Soyuz foi desde 2011 e até agora a única rampa de lançamento para chegar à Estação Espacial Internacional (ISS), e marcava o contexto actual da exploração, a par do programa de exploração chinês, conhecido como Shenzhou, sem ligação à ISS. 

A par da celebração da evolução tecnológica promovida pela equipa coordenada por Musk, celebra-se neste caso o regresso dos EUA às missões especiais depois do Space Shuttle, numa iniciativa que acompanha e reflecte os tempos. Este lançamento concretiza uma tendência que deu os primeiros grandes passos no início do século. Desenhado por Burt Rutan, e financiado por um dos co-fundadores da Microsoft, Paul Allen, a SpaceShipOne foi a primeira aeronave tripulada a fazer um voo espacial num equipamento construído por iniciativa privada e reutilizável. Em 2004 fizeram duas viagens em apenas 5 dias, algo que lhe valeu um prémio de 10 Milhões, o Ansari X Prize, por se considerar finalmente viável o investimento em turismo espacial. Paralelamente, a NASA começava a perceber o potencial da iniciativa privada neste sector, anunciando pacotes de incentivo. Em 2005 lançou o COTS, Commercial Orbital Transportation Services, em que pretendia financiar investigação de privados sobre transporte de mercadorias no espaço, atribuído um ano depois à Space X e à Orbital ATK, e que terminaram em 2013 com a missão dada como completa. E em 2010 o CCDev, Commercial Development, que acabou por ser atribuído, em 2014, à SpaceX e a Boeing, com o objectivo de garantirem a infraestrutura possível a viagens tripuladas ao espaço. É desse último programa que resulta este lançamento, tendo o da Boing sido adiado para o ano 2021, um de um total de 6 lançamentos que cada uma das empresas tem de executar para completar o programa. 

A tendência do governo para dividir a responsabilidade com empresas privadas começou no Governo de George W. Bush, com o COTS. Mas a mudança de perfil das iniciativas totalmente privadas, mais viradas para o turismo espacial enquanto fim a atingir, para parcerias público-privadas, acentuou-se com Barack Obama, responsável por lançar o programa CCDevs que agora levou os 2 astronautas até à Estação Espacial Internacional. Obama cancelou o projecto em decurso até então, o Constellation Program, e propôs uma alteração ao modelo de funcionamento da NASA, estabelecendo que o governo pagaria pelas viagens feitas em equipamentos e desenhados por empresas privadas.

Satélite SpaceX via Unsplash

Este tipo de iniciativa surge assim como mais um passo numa estratégia que traz, para um sector habitualmente dominado por estados, algumas empresas, com o seu aval e financiamento — a SpaceX terá recebido algo como 510 milhões de dólares como pagamento pela resposta ao programa CCDev. A introdução de empresas privadas no segmento dos voos tripulados para o espaço surge quase como uma extensão natural de uma mudança global que temos vindo a verificar.

Em 2018 também na China se deram passos no mesmo sentido, com a OneSpace a tornar-se a primeira empresa privada a fazer uma viagem espacial a partir da China – tendo feito apenas um voo na baixa órbita. De resto também o envio de satélites, mais acessível, sofreu uma modelação semelhante. Em 1962 era lançado o primeiro satélite para órbita para prover sinal de televisão, e desde então que os lançamentos comerciais não têm abrandado, num progresso que tem mudado o aspecto do céu criando novas “estrelas”. A SpaceX, por seu turno, tem também um projecto nesta área. O projecto Starlink da SpaceX já enviou para órbita um conjunto de satélites que pretendem que sejam os intermediários de uma nova rede de comunicação. A quantidade destes satélites e a órbita de alguns deles fazem com que se tornem visiveis a partir da terra, nomeadamente no Brasil, e que com tenha sido criticados por perturbar as observações de astrónomos como explica a Vox.

No caso concreto das viagens tripuladas, a competição para se juntarem ao grupo restrito tem sido mais que muita. Para além da Space X e da Boeing, também Jeff Bezos está a desenvolver aparelhos tripulados, na sua Blue Origin. Richard Branson, outro dos citados por Jim Bernstein, persegue o mesmo sonho desde 2004 na sua Virgin Galatic. Do que se conhece dos objectivos destas empresas este voo terá sido apenas o começo de uma viagem que pode ser vista como uma espécie de descobrimentos em direção ao espaço, com todas as contigências e questões que um momento desses incita. Ainda há pouco tempo demos conta dos planos de Trump para ‘privatizar’ a lua, e da sua criação de uma força militar espacial, este momento não pode ser visto sem a sua contextualização nesta realidade.

De resto, após o lançamento, Moscovo felicitou os Estados Unidos da América por estabelecer outra ponte com a Estação Espacial Internacional, mas Vladimir Ustimenko disse-se surpreendido com a histeria em torno do lançamento. Não obstante aos feitos é preciso sublinhar que este lançamento marca a fim de um dos elos de ligação entre russos e norte-americanos, com o fim da dependência dos segundos impulsionado pela excentricidade, goste-se ou não, de um homem que levou o plano de que muitos se riram avante. Um feito que, com certeza, que pode não ter consequências directas mas com certeza alterará peças importantes na geopolítica mundial que cada vez mais também se discute no espaço.

Autor:
1 Junho, 2020

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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