Entre os vários artistas de hip-hop dos dias de hoje, há um segmento que acaba por marcar gerações inteiras. Nomes como Kendrick Lamar, Kanye West e Frank Ocean ficarão para a história da música. Mas entre estes grandes nomes, há pelo menos dois que são frequentemente ignorados pelo mainstream; dois nomes que surgiram pela corrente underground do hip-hop americano e que, com o seu mais recente projeto, prometem fazer virar os muitos ouvidos que até então permaneceram estáticos. Falamos dos Run The Jewels, o duo composto pelo rapper Killer Mike e pelo rapper/produtor El-P.
Individualmente já ambos debitavam música muito antes de se cruzarem pela primeira vez, mas foi quando se aliaram que fizeram espoletar uma tremenda sinergia sónica que se afigurava única no paradigma moderno do hip-hop underground; sinergia esta que a sua futura audiência não sabia que precisava. Entre 2013 e 2016, lançaram uma trilogia de álbuns (Run The Jewels, Run The Jewels 2 e Run The Jewels 3), todos eles louvados e adorados pela crítica e fãs — combinações selvagens de beats e samples afiadas, catapultando versos atrás de versos, a explodir pelas costuras com pompa e circunstância, umas vezes absolutamente ridículos e cartoonescos, noutras brandindo críticas sociopolíticas mais afiadas que bisturis.
Chegamos então a 2020 e o entusiasmo pela quarta instância de projetos dos RTJ começa a crescer devido ao lançamento do primeiro single “Yankee and the Brave (ep.4)” no final de Março. Como fãs sabíamos o que se aproximava: a qualquer momento , o quarto projeto deste duo dinâmico ia nos ser largado em cima (a data eventualmente anunciada seria a de 5 de Junho), e ia cair com a força de mil tijolos. Não sabíamos era de que forma tal aconteceria.
Chega o dia 25 de Maio: morre George Floyd. A sempre precária situação racial da América colapsa sobre si mesma com inúmeros protestos. Uma edificação suportada por bases sedimentadas desintegra-se num caos de som e fúria. O movimento, o comentário, o jornalismo e, neste caso, a arte tomam uma postura de urgência obrigatória. Sendo Artistas com A maiúsculo, a 3 de Junho, dois dias antes da data originalmente prevista para o lançamento de RTJ4, os Run The Jewels fazem o inesperado anúncio:
Os Run The Jewels não se limitam apenas a fazer música e a vendê-la; o ativismo político corre-lhes pelas veias dentro. Ambos sempre tiveram um papel bastante ativo na política e sempre empregaram a sua liberdade de expressão para denunciar os mais variados tipos de comportamentos prejudiciais ao bem-estar social das minorias e comunidades mais desfavorecidas. Na sua manifestação mais recente, Killer Mike fez um icónico discurso que apelou aos protestantes o uso de uma fúria produtiva, implorando-lhes que “violentassem” os seus políticos de forma a causar uma mudança permanente, isto através da organização pacífica, mas sempre motivada, de pessoas em direção das bancas de voto (algo que causou alguma polémica nos grupos mais radicais e revoltados, tendo até em conta alguma suavização da típica agressividade de Mike nas suas letras).
Os seus membros já haviam afirmado que o álbum estava em produção desde 2018, e ao longo deste tempo sofreu várias alterações, algumas que, como se pode testemunhar na faixa “walking in the snow”.
And you so numb you watch the cops choke out a man like me
And ‘til my voice goes from a shriek to whisper, “I can’t breathe”
Este verso refere-se às últimas palavras proferidas por Eric Garner, homem negro americano morto pela polícia, um caso que em muito se assemelha ao de George Floyd.
Um tocar na ferida que se espalha por todo o ethos de RTJ4, aquele que certamente é o pináculo criativo do duo, conseguindo banger atrás de banger atrás banger, saltando entre o escapismo explosivo e a introspecção melancólica com uma qualidade puramente acrobata de habilidade. A química entre Mike e El-P é mais notável do que nunca, as barras de cada um tornam-se progressivamente melhores e mais penetrantes à medida que se avança no projeto; os instrumentais são constantemente alternativos e frescos mas sempre com o estilo já muito característico de El-P, uma clara oposição às mundanas batidas que enchem as rádios; acima de tudo, o álbum revela-se como uma peça fulcral no nosso entendimento do baralhado puzzle contemporâneo em que vivemos, lançado gratuitamente (tal como os outros trabalhos do grupo) de forma a poder ser apreciado pelo maior número de pessoas possível.
Esta luta pertence-nos a todos, independentemente da nossa cor, género e religião. Devemos todo o privilégio que nos foi concedido à nascença para ajudar aqueles que não o têm a obter a justiça e equidade que tanto precisam. Ouçam as vozes daqueles que lutam para ser ouvidos, leiam, informem-se, observem o que vos rodeia no dia-à-dia com um olhar verdadeiramente crítico e que penetra para além da mera superfície das coisas. Consultem mais informação sobre como e quem ajudar aqui.
A nossa voz é mais forte do que pensamos portanto há que usar e abusar dela sempre que possível.
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Texto de: Duarte Cabral e Pedro Caldeira