Os tempos que vivemos são atípicos. Não sei se pelo efeito catalisador da pandemia, que denunciou e expôr e impôr desigualdades, se pelo acumular de acontecimentos e estruturas com que a contemporaneidade nos brindou sem uma preparação prévia — recordemos a juventude da democracia, do capitalismo ou da própria globalização à escala de tempo da humanidade. A verdade é que os discursos estão cada vez mais extremados e os extremismos têm cada vez mais palco; as opiniões são cada vez mais superficiais, e as acções cada vez mais mediatizadas. Exemplo perfeito desta nova configuração global, que começa no universo no digital, foram os recentes protestos contra o racismo, embalados pelo movimento #BlackLivesMatter e as reações que lhe geriram.
Com esta nova configuração do espaço público, com o surgimento e a proliferação das redes sociais, geram-se novas dinâmicas no seio da sociedade. E se é verdade que uma instituição não deve ser avaliada pelas acções que vão tendo mediatismo, a sua gestão desta relação é um importante vértice na manutenção do contrato social que regula a vida pública.
Depois de um caso específico nos Estados Unidos da América, o mais que legítimo espírito reivindicativo propagou-se que nem o vídeo viral que o retratava; seguiu-se, entre outras reações, uma acção encentada pela indústria musical que fez com que quadrados pretos invadissem as redes socais e, no passo seguinte, num balanço sensível entre o fear of missing out (FOMO) gerado pelas redes e a adesão genuína à causa anti-racista, saíram às ruas por todo o mundo as maiores demonstrações contra o racismo de que há memória. Lisboa não foi excepção, com um número surpreendente de manifestantes a sair às ruas numa causa que, até se concretizar, era de todos. Em comunicado, a PSP foi pronta a reiterar a sua adesão ao movimento #BlackLivesMatter mesmo que, em última instância, o movimento incidisse sobre a violência sistémica da polícia de outro país sobre um indivíduo de uma facção oprimida. A brutalidade do acto conjugada com a distância do evento tornava o repúdio numa atitude óbvia à luz do senso comum e longe da necessidade de gerir sensibilidades ou estabelecer compromissos com a sociedade civil — recordem-se as reações díspares em situações análogas.
Contudo, não foi preciso muito tempo para que os frutos desta reputação fossem postos em causa por uma série de acontecimentos públicos que nos levam a reflectir sobre as prioridades e a noção de segurança pública. Refiro-me à identificação anunciada ao portador de um cartaz com a expressão “polícia bom/polícia morto” e à força com que suportaram uma tentativa de desocupação começada de forma ilegal de uma propriedade privada ocupada com fins humanitários, numa lógica que não procurar comparar os assuntos, mas reflectir sobre o que são as prioridades para a segurança pública de um país quando os fenómenos estão à vista de todos.
#BlackLivesMatter
Seguindo por pontos, exploremos o caso de forma cronológica, começando por reflectir sobre o apoio expresso demonstrado pela PSP ao movimento de origem norte-americana. Num vídeo publicado na página de Instagram da instituição, agentes da força de segurança de diversas etnias intercalam-se com figuras públicas numa mensagem simples, um rotundo: diz não ao racismo. Os comentários de crítica a esta atitude não tardaram a chegar, com dezenas de internautas a apontar a tendência da força de segurança pública nacional para embarcar em “modas americanizadas da internet” e não lidar concretamente com os problemas do país — entre eles a denúncia que tem vindo a ser feita da captura de sectores desta mesma força por uma corrente ideológica de extrema direita, que culminou, por exemplo, com a denúncia feita pelo então Vice-Presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Policia, Manuel Morais, que acabou demitido deste sindicato por pressão dos demais associados. Esta não é a primeira vez em que esta importante instituição exibe uma dupla persona, expressando online ideias que não se revelam de modo inequívoco na prática quotidiana de que vamos tendo conhecimento. Num outro caso, de menor importância mas alto simbolismo, a P.S.P comentava uma fotografia de Piruka, em que este surge sentado em cima de um carro da polícia, com um simpático “É claro que uma viatura nossa dá mais ‘cenário’ a qualquer foto. Compreendemos”, que contrasta com o que nas ruas se ouve em situações semelhantes.
A digitalização da comunicação policial usufrui, de certa forma, da ausência das componentes difíceis de gerir que nas ruas são o trabalho dos profissionais de segurança; num espaço de positividade e de quase total ausência de expressões realmente violentas ou ofensivas que não se dissipem com um apagar de um post, a P.S.P aproveita para mostrar o seu lado mais inclusivo, próximo e empático que muitas vezes se torna insustentável em cenários reais. Isto explica-se, sobretudo, pelo carácter superficial e puramente ‘exibicionista’ que uma imagem adquire no mundo online; um enquadramento onde uma posição contrária demanda uma articulação cuidada mas uma concordância superficial se pode basear na menos sustentada das expressões, um clique, um like, um retweet, um emoji — quantos likes não damos por ironia? O que nos custa dizer pelas redes o contrário do que pensamos? Quantos de nós não o fazemos?
O caso muda de figura quando os acontecimentos saem à rua, literalmente. Na rua não há a ausência dos elementos sensíveis, os manifestantes exprimem com o corpo as suas emoções e o fenómeno de massas alimenta um manancial de reações e motivações dispersas. Ao contrário da aparente superficialidade que um movimento adquire online, quando se observa apenas uma ou duas hashtags e a um quadrado preto sem qualquer substância, nas ruas a mensagem tanto se materializa quanto se dissipa; torna-se heterógenea e por vezes dispersa; a emoção de cada manifestante transforma-se numa frase mais ou menos original e simbólica, mais ou menos adaptada daquilo que se vê nas redes sociais, e, pelo se viu, raras vezes materializa-se em formulações duvidosas ou condenáveis; todos nos lembramos do icónico e risível “Não matem os velhinhos.”. Terá sido isso que aconteceu com um dos manifestantes no Porto e que levou a ASPP a anunciar uma queixa junto do ministério público.
Regra geral, o suporte cartaz surge com uma linguagem formatada num estilo que se apropria e aproxima cada vez mais da publicidade, convida a construções frásicas simples que, um pouco como nas redes sociais, concorrem por uma validação do seu caracter de exibição, mais do que pela profundidade do seu enunciado; tal como um iogurte que promete uma vida plena, uma bebida que promete a felicidade, vinga a tendência para uma certa síntese que elimina as suas nuances; entre as mensagens que se articulam com subtileza, surgem outras que se extremam e se concretizam no ponto máximo de uma linguagem violenta, mas com um objectivo puramente exibicionista. Como o iogurte que não contribui de especial forma para a vida plena, ou a bebida que não traz realmente felicidade, não se procura neste tipo de expressão uma lógica informativa — exprime-se uma opinião num formato tão simplificado que lhe retira qualquer veracidade ou credibilidade. Entre esses casos, ganhou especial relevo aquele que enunciava “policia bom é policia morto”, na manifestação no Porto, cujo autor foi entretanto identificado pela P.S.P. e sobre quem será apresentada, segundo consta, uma queixa de incitação ao ódio.
Façamos então o exercício de olhar para a lei e enquadrar este fenómeno. O crime de incitação ao ódio, conforme referido pela P.S.P., situa-se no art. 240 do Código Penal mas, segundo se pode ler, não contempla como crime uma expressão violenta contra um grupo profissional, muito menos quando esta não é precedida ou procedida de outros actos de concertação que vão no mesmo sentido, de incitar ao ódio. Outro possível enquadramento legal incidiria sobre o artigo 187 do Código Penal. Acontece que este artigo versa sobre a “afirmação ou propalação de factos inverídicos” pelo que, segundo a interpretação que é possível fazer, uma opinião sem qualquer adesão ou articulação factual não se insere, pelo menos cabalmente, neste contexto — de resto, outros acórdãos que sustentam a jurisprudência apontam no mesmo sentido.
Assim, face ao difícil enquadramento jurídico, de UM cartaz entre, talvez, dezenas de milhares deles, é impossível não considerar o anúncio de queixa-crime como uma medida desproporcional face ao exposto. Se é verdade que o cartaz tem um teor potencialmente ofensivo, ainda é mais óbvio que a narrativa que nos apresenta se concretiza num imaginário hiper-simplificado, onde a figura do polícia representa a máxima — ou talvez a única — expressão de autoridade do estado. Como se sabe, essa ideia não podia estar mais distante da realidade num sistema como aquele em que vivemos, de poderes repartidos, altamente mediados e burocratizados.
Nesta, se quisermos, alienação da própria mensagem — que procura individualizar, ou personificar, todo um sistema em figuras individuais, desprovendo-as tanto do seu contexto humano e individual, como sistémico e social — podemos ver uma acção violenta, é certo, mas puramente performativa, sem qualquer pretexto ou contexto que sustente, credibilize ou reforce a mensagem e que por isso possa ser merecedor de uma acção de reposição da segurança pública. Não há relatos de violência levados a cabo por esse ou por outro manifestante, nem nada que vá para além do cartaz, ou melhor, da sua exposição em televisão. Não há nada para além do espetáculo.
Seara Barbara
Avançando no tempo apenas dois dias voltamos a ter em destaque, em todos os canais informativos, uma acção considerada desproporcional da P.S.P. Neste caso, depois de uma empresa de segurança privada ter tentado, ilegalmente, desocupar uma casa ocupada para fins humanitários. A ocupação de um prédio devoluto no bairro de Arroios, detido pela Spark Capital, teria começado no dia 9 de Maio, servindo como espaço de apoio aos sem abrigo que por ali orbitam — num prédio devoluto, um grupo de mais de 50 voluntários criou condições para operar um centro de acolhimento e alimentação de pessoas em condição precária, valendo-se da lei que o permite e se quisermos, de alguma inércia motivado pelo bom senso demonstrada numa inação do executivo camarário.
Foi no dia 8 de Junho que um grupo de seguranças privados de uma empresa contratada pela Spark Capital, alegadamente armados, invadiram o prédio e tentaram proceder a uma acção de desocupação, um acto para a qual não tinham autoridade, nem permissão. O caso gerou confrontos entre os voluntários que resistiam pacificamente e os seguranças privados que tentaram fazer a lei, sem mandato, autorização nem legitimidade para tal, até que a PSP foi chamada ao local. Apesar de, segundo consta, terem sido os voluntários a chamar as autoridades ao local, para denunciar a tentativa de desocupação ilegal e violenta, a acção da polícia acabou por incidir mais sobre quem tentava resistir do que o inverso — num cenário que nos mostra, desta vez, a distância entre o que a lei protege e o que os polícias protegem ao interpretar a lei. Se é certo que a ocupação da casa pode ter fintado preceitos legais, este acto pode ser justificado como reivindicação do direito à habitação inscrito na Constituição da República Portuguesa — especialmente atendendo ao facto de o imóvel não ter qualquer utilização à data da ocupação — ou simplesmente pelo imperativo moral usado como pretexto para o aproveitamento do carácter moroso da lei.
A organização da Ocupação garante ter informado a Câmara Municipal de Lisboa bem como a PSP a 9 de Maio, pelo que a falta de acção, mesmo que no sentido de legalizar a ocupação, procurar um local alternativo para a prestação do seu serviço humanitário ou simplesmente exigir a desocupação, pode ser a grande crítica a apontar às instituições legais. De qualquer forma, e passando à frente tudo isso, sem ordem do tribunal, a ilegalidade maior seria a acção dos seguranças privados, assumindo para si funções que competem a organismos do estado ou outros, quando legalmente mandatados, numa tentativa de fazer justiça em nome próprio, sem recurso aos trâmites legais.
Perante tudo isto, urge questionar numa dimensão lata e global, o que é a segurança pública, como se define, como se caracteriza, com que critérios. Só este questionamento sério, persistente, e sem fantasmas, nos permitirá nortear numa luta que, com certeza, terá sempre mais vítimas que arguidos, pelo seu carácter sistémico, sem forjar divisionismos. Essa é a missão e a função que quem coordena o país já devia ter assumido, há muitos casos atrás.
Será que ameaça mais a segurança pública uma empresa privada que acha que pode substituir a polícia e acredita na sua legitimidade acima da letra da lei? Ou um grupo de pessoas que ocupa um prédio devoluto tentando ajudar terceiros? Ameaça mais a segurança pública um cartaz erguido por um jovem numa manifestação pacífica, ou os sinais de que dentro de uma força do estado podem vingar ideias racistas ou xenófobas?
Perante toda esta complexidade não é sensato que se parta para a rotulação catastrofista, e extrapolemos um caso concreto e restrito como uma situação homogénea de dimensão nacional… não é. Assim, e afim de evitar dicotomias, maniqueísmos e divisões no seio da sociedade em torno de uma instituição com um papel central, importa olhar para a frente, para critérios sólidos que sustentem a orientação e para isso não é preciso muito, só repetir o seu nome devagarinho, “Polícia de Segurança Pública”, exigindo a máxima significação de cada uma das palavras. Porque os que saem à rua são apenas uma ínfima parte de um sistema, é preciso fazer e repetir essa questão desde os lugares mais cimeiros das hierarquias do estado, exigindo a todos que se comprometam com uma ideia única de segurança pública, concordante com aquela que está inscrita na constituição e decorrente de um debate aberto na sociedade nacional.. Onde as garantias do indivíduo e o respeito pela liberdade de cada um se sobrepõem a exercícios de perseguição mediática ou à urgência do capital.