Para quem não está pelas redes sociais é provável que o assunto lhe tenha passado ao lado, por isso inicio este artigo por uma breve explicação. “Aborto e beijo gay em animação da RTP2 chocam pais” foi o título que ontem, pela manhã, se lia nas páginas do Correio da Manhã; o jornal sensacionalista ecoava o alegado sentimento de um país, e sustentava as suas afirmações na informação recolhida junto da ERC de que tinha recebido muitas queixas — como se o número de queixas na ERC fosse suficiente ou justificativo para a generalização abusiva que servia de engodo para o artigo. Em causa estava o episódio 19 da mini-série de animação francesa, Destemidas, sobre Thérèse Clerc, homossexual e ícone da luta feminista e activista pelo direito ao aborto.
A partir daqui o assunto evoluiu como tantos outros, baseando as interações nesta falsa dicotomia entre os que estavam a favor ou contra o episódio. O assunto tornou-se numa espécie de viral e, como sempre acontece, ninguém quis ficar de fora, mesmo que em muitos dos casos essa fosse a atitude mais prudente e ponderada. Jorge Wemans, provedor do espectador da RTP foi desses que falou fora do tempo, apressando-se, mais do que a comentar o assunto, a aconselhar a sua retirada das plataformas onde estava disponível. Lê-se no Sapo 24: “Recomendei às responsáveis pela programação infanto-juvenil da RTP2 que a) retirassem da RTP Play o referido episódio, b) em futura repetição da série escolhessem outro horário mais apropriado para adolescentes e não incluíssem o referido episódio. Elaborei esta recomendação porque a linguagem e a narrativa não são adequadas à comunicação para um público adolescente dos temas a que Thérèse Clerc dedicou a sua vida”. Wemans fez questão de dizer que discordava da crítica ao teor marxista da série mas corroborou as críticas sobre uma linguagem alegadamente desapropriada.
Depois do conselho do provedor seguiu-se a retirada dos conteúdos como sugerido e o caso voltou a subir de tom novamente. Mais uma vez, exaltavam-se as reações de quem estava contra ou a favor da exibição do episódio, na sua maioria, arrisco dizer, pessoas que não tinham conhecimento da série até ao sensacional artigo do Correio da Manhã sobre as “várias” queixas ao regulador.
A notícia da CM sobre as queixas ao regulador serviu de rastilho para instigar um processo de moderação apressado do espaço público que, tanto quanto é possível perceber, decorria nos trâmites e nas instituições legais. Até então, a informação surgia apenas no site Infocul, apontando para uma reclamação num comentário de Facebook traçando toda uma teoria conspirativa, assinada por Senza Pagare, um blogger de inspiração e promoção católica com mais de 100 mil seguidores; e no site atelevisão.pt, que se baseava na mesma publicação, embora neste caso não identificasse o autor, tornando impossível perceber o substracto religioso da crítica.
Em mais um caso, como em demasiados casos de moderação democrática em Portugal, é o circuito mediático pervertido que, tentando acelerar as instituições, gera um caos comunicacional, divisionista e retrógrado. Mas a quem serve esta dinâmica?
Descontando ao assunto toda a agitação apaixonada, esquecendo o caos mediático do dia de ontem, a série voltou a estar disponível e na materialidade dos factos muito pouco ou nada mudou. O provedor aconselhou uma revisão de linguagem que, dentro das lógicas por que se rege o canal, deverá acontecer mas, segundo Teresa Paixão nada mais se alterará, nem será proibido, suspenso ou censurado. O episódio já pode inclusivamente ser visto aqui — tendo sido apenas retirado do site do ZigZag, secção infantil da RTP que, em todo o caso se dirige a crianças até aos 14 anos, ou seja, acima da idade aconselhada para visionamento do episódio. Assim, como escreveu no Twitter, no seu habitual tom irónico, Rogério Casanova, o maior resultado da discussão acabou por ser a própria discussão, numa espécie de ciclo que não leva a lado nenhum perante a evidência de que censurar o episódio não seria uma resposta destes tempos. Contudo, a discussão gera um efeito e a sua geração não é despropositada.
todas as histórias sobre remoção de conteúdos só servem para produção de conteúdos sobre a remoção de conteúdos que afinal não foi, todas, sempre, nunca falha uma
— Rogério Casanova, uma alma serena e contemplativa (@RogerioCasanova) June 25, 2020
A RTP2 ficou debaixo de fogo de um e de outro lado, nas redes sociais, revelando alguma falta de agilidade e resiliência na hora de agir. O episódio exaltou uma pequena facção, a notícia deu dimensão a esse grupo, a retirada exaltou os restantes e pouco se discutiu sobre o conteúdo — as acções e reações tornaram-se sujeito único do debate. Vendo o episódio é fácil compreender o que pode ter, de certo modo, ferido as susceptibilidades dos sensíveis e porque, graças aos tempos, todos temos os mesmos direitos, a sua indignação ou expressão pública é tão legitima quanto este artigo. Passando à fase seguinte é preciso que nos indaguemos concretamente sobre os motivos ou critérios que levaram à suspensão do episódio? Espremendo com veemência esta altercação, sobra-nos um: a mediatização.
O episódio que “choca o país”, as “várias” queixas na ERC, foram como que personagens para uma história mobilizadora na inversa razão da sua relevância num país democrático e laico. Tal como acontece em casos de justiça, foi um órgão de comunicação social a trazer para a discussão pública um assunto que, sendo de interesse público, não se debate em redes sociais de ânimos exaltados e em posts de Facebook — debate-se nos circuitos próprios como o provedor do espectador ou a RTP e no ritmo próprio que exige a ponderação.
Vermos o episódio de Thérèse Clerc é ver o reflexo de um país civilizado, democrático e laico, que sem apologias nem propagandas, fala sem temor de direitos conquistados há muito e perfeitamente consagrados na lei. Pode sugerir-se uma maior atenção à linguagem, é certo, e isso teria de se pedir sobre todos os conteúdos acessíveis a crianças nomeadamente no Youtube, mas fazê-lo de modo retroactivo e pondo em causa a disponilidade do episódio abre um perigoso precedente. Pode não ser o episódio que mais agrada a uma facção mais conversadora, retrógrada, a certos sectores ligados à religião, e esse é um direito que lhes assiste, tal como o da exibição da série, que se enuncia assim, sem medo, sem temor. São cerca de 5 minutos a meio da manhã transformados no debate da nação por um dia mas… e se aplicássemos o mesmo critério para tudo o que passa na televisão? Chegamos aos desavergonhados.
Diariamente se reportam nas redes sociais reportagens chocantes, práticas deontológicas muito dúbias, e se dá conta de mais uma denúncia sobre este ou aquele canal, e este ou aquele jornal. O mundo dos media em Portugal não está nos seus melhores dias e a inércia da ERC é outro dos pontos ecoados pela crítica, até entre elementos do próprio sector. Contudo, esta discussão nunca gera tracção. Ao contrário da raridade que é vermos a história de uma mulher destemida, vermos homens desavergonhados tornou-se uma normalidade a que já não reagimos, toldando todo o critério porque poderíamos, a partir do espaço público, tentar debater a moderação do canal do estado.O mesmo aconteceu, se quisermos, com o caso de Rosa Grilo, que sendo atípico face ao padrão de violência doméstica, se tornou num ícone promovido pelas TVs.
As Destemidas é uma série que nos dá a conhecer a vida de mulheres que, apesar dos tempos difíceis levaram vidas de coragem, para fazer e falar do que quiserem. A polémica em torno das Destemidas deve inspirar-nos a compreender a forma altamente volátil e tóxica como estamos a moderar a nossa democracia. Se quando a uma série, à vista de todos, a generalização de um órgão de comunicação social gera suspensão antes da deliberação da ERC, é fácil imaginar a facilidade desse mesmo circuito em gerar suspeitos e criminosos a seu bel prazer. De resto, nem é preciso imaginar, basta ver os episódios anteriores.