Ler era aquela actividade que ia mesmo conquistar-nos e entreter-nos durante o período de quarentena. Íamos passar a usar o tempo da comuta para nos dedicarmos à leitura como nunca, despachar uns quantos livros da estante, dar uma nova hipótese àquele clássico que já começámos pelo menos três vezes. Dissemo-lo a nós próprios e disseram-no todas as publicações sobre produtividade que foram surgindo desde que soubemos que íamos ter de ficar uma temporada grande em casa.
Mas, sinceramente, sentes que tens lido mais do que o normal? Tens lido, de todo? Este tema surgiu no Shifter, em conversas de redação, e percebemos que somos vários os que têm visto nos livros um objecto de frustração, porque não temos conseguido reunir concentração ou interesse suficiente para nos dedicarmos inteiramente a eles. E isso aconteceu com mais do que um de nós, mais do que uma vez, com mais do que um livro. Mas porquê?
Um grupo de psicólogos de Bangalore, na Índia, respondeu às nossas perguntas — a causa está no elo entre o acto de ler e a nossa saúde mental. Segundo Shyam Bhat, médico psiquiatra, “a ansiedade reduz a nossa capacidade para ler e para nos concentrarmos, e as pessoas sem um hábito de leitura bem estabelecido podem achar especialmente difícil ler nesta fase.” Ao mesmo tempo, a nossa incapacidade para ler também pode ser prejudicial para a nossa saúde mental, o que torna todo o problema numa espécie de bola de neve, e nos deixou desejosos de saber como resolver esta questão.
Bhat falou à Quartz India neste artigo, que refere ainda o trabalho da psicoterapeuta norte-americana especializada em traumas, Alyssa Williamson. Williamson associa a falta de concentração necessária para ler com a chamada reacção “fight-or-flight” do nosso cérebro — uma reacção fisiológica que ocorre em resposta a algum momento de ameaça, agressão ou que ponha em causa a nossa sobrevivência, neste caso desencadeada pelo sentimento de ansiedade. O que acontece neurologicamente é que, quando confrontado com tal momento ou evento, o nosso cérebro vê-se obrigado a tomar a decisão de ficar e lutar (fight), ou desistir (flight).“O corpo não acredita que está seguro, independentemente de cognitivamente sabermos que estamos”, disse Williamson aqui.
No contexto que vivemos, essa reação estará intimamente ligada à pandemia de Covid-19, que representa uma ameaça real e tangível. Muitas das vezes, isso acaba por significar tentar ajudar o nosso cérebro a pensar noutra coisa por um bocado, e à medida que a leitura se torna difícil, aumenta a tentação de assistir a filmes ou séries online, por exemplo. “Há uma tendência de consumir media, como programas em plataformas de streaming, por exemplo, porque são conteúdos mais passivos e não envolvem os nossos cérebros da mesma maneira que quando lemos”, explica Bhat.
Também aqui o resultado pode ser um ciclo vicioso — as pessoas assistem a mais televisão porque estão stressadas, mas podem ficar stressadas se assistirem a demasiada televisão: “Infelizmente, esse tipo de hábito aumenta o stress a longo prazo (…) Claro que entretenimento em quantidades moderadas também pode ajudar com a ansiedade”.
Mas ler pode ser terapêutico precisamente por envolver o nosso cérebro de forma mais activa. No artigo da Quartz, Bhat fala de uma prática chamada biblioterapia que, tal como o nome indica, refere o uso de livros para melhorar a saúde mental. Para tal, é mesmo preciso um esforço para criar conscientemente um hábito de leitura, e sobre isso há várias coisas a ter em conta.
Pensa em ti na hora de escolher um livro
Deves tentar encontrar o livro certo para ti. E essa escolha deve passar por algo fora do que tens visto partilhado nas redes sociais ou nos tops das livrarias que frequentas. E o mesmo amor que deves dedicar à escolha, deves dedicar depois ao acto da leitura, apenas pelo puro prazer de ler.
Especialistas citados pelo Quartz referem que poderá ser uma boa altura para dares uma primeira chance a um livro antigo que anteriormente te tenha chamado a atenção — se já houve um primeiro momento de entusiasmo, pode ser o livro certo para ti. Da mesma forma mas em sentido contrário, se calhar não deves insistir em livros que já tentaste ler várias vezes. Vidur Kapoor é o responsável pelo Fictional Book Club, um clube do livro quinzenal que realiza reuniões em Mumbai e Nova Déli, e fala sobre a importância de não nos esquecermos do porquê de termos feito determinada escolha literária. “Não existem livros ‘maus’, mas existem livros que não funcionam para todos. Quando comecei a pôr de parte os livros que não funcionavam para mim, a culpa que sentia por isso era um pouco difícil de superar. Mas tentava lembrar-me da minha razão para ler e isso ajudava-me a seguir em frente”, explica. “Não devemos sentir-nos culpados de deixar livros a meio, não lidos – isso é um bloqueio que limita muitos leitores.”
Não há certamente uma ciência que nos diga o livro mais indicado para nós ou para determinado momento das nossas vidas, mas perder tempo a pensar nisso, a reflectir sobre o que nos faz falta ou nos deixaria mais satisfeitos faz parte do ritual. Haverá certos preceitos comuns à maioria de nós, como o facto de um livro de teoria sobre o colapso da economia, por exemplo, poder não ser a melhor opção durante uma pandemia por poder induzir mais ansiedade em quem o ler. Optar por uma obra de ficção durante este período pode ser uma boa decisão e um método simples para manter o hábito de leitura. Ou até um livro histórico, que nos transporte para uma outra era, pode ser uma boa forma de escapismo mantendo a ansiedade sob controlo.
Cria um ritual de leitura
Como te dissemos aqui, onde te mostrámos várias formas de lidar com a ansiedade durante o período de isolamento, criar um hábito é um mecanismo útil para sentires que estás em controlo da tua vida. O mesmo acontece com a leitura. Pode ser uma tarefa difícil no início mas há pequenos hacks que podem ajudar-te a criar consistência suficiente para que a rotina floresça numa disciplina natural. A ideia é que, além do ritual de escolher um livro, acima referido, cries um no momento de o ler.
A Quartz Índia dá o exemplo de Chiki Sarkar, co-fundadora de uma das maiores editoras online da Índia, a Juggernaut Books, e leitora ávida que, como muitos de nós, se viu a braços com um défice de atenção iminente, desde que começou a saga vírus/pandemia/isolamento. Chiki reserva, por exemplo, um momento de cerca de 40 minutos todas as noites para ler — confessa que demora até deixar de mexer no telemóvel e outros gadgets, mas que, uma vez que percebeu o que a deixava mais confortável para levar avante esse momento, tem sentido que ler a ajuda a dormir melhor. Entre outros truques, acompanha o ritual com uma caneca de chá ou um copo de whisky. Refere que pormenores como uma caneca mais bonita, o facto de despachar a higiene pré-dormida antes do ritual, ou a escolha das almofadas mais confortáveis ou da luz certa a fazem sentir mais aconchegada e pronta para o seu momento a sós com o livro. Podes também definir um dia certo por semana para ler, provavelmente numa fase mais avançada desta jornada, quando já estiveres mesmo embrenhadx no teu livro.
Mais uma vez, cada pessoa terá o seu cenário ideal — o que importa é garantir, precisamente, que é confortável e que está tudo alinhado para que o ritual seja um êxito ao ponto de o quereres repetir. Uma vez encaminhado, o hábito de leitura pode ser dos mais proveitosos da tua vida. Eventualmente, a tua memória muscular da leitura vai entrar em acção e estas dicas parecerão cada vez menos deliberadas, à medida que percorres as pilhas até então intocadas de livros de uma forma que faça sentido para ti.
Em baixo, relembramos um artigo sobre como podes tirar o máximo proveito de um livro. O objectivo não é tornar o teu processo de leitura numa actividade trabalhosa ou desinteressante — não há nada como conhecer um livro na sua forma mais livre e espontânea —, mas sim ajudar-te a organizar o teu pensamento e a alargar os horizontes da tua imaginação, isto se quiseres, claro, obter algo mais de um livro além da sua mera leitura.
https://shifter.sapo.pt/2019/07/como-tirar-maximo-proveito-livro/