A primeira obra de James Baldwin traduzida e editada em Portugal demorou mais de 40 anos a cá chegar. Se Esta Rua Falasse (If Beale Street Could Talk, em inglês) foi publicado pela primeira vez em 1974 e lançado pela Alfaguara em 2018. Na altura, a editora anunciou a edição, para o ano seguinte, de Se o Disseres na Montanha (Go Tell it on the Mountain), o romance de estreia do escritor, de 1953, considerado a sua obra prima e um dos melhores 100 livros de sempre – chegou a Portugal 65 anos depois de ter sido escrito.
Baldwin é considerado um dos maiores nomes da literatura norte-americana e uma das vozes mais influentes do movimento pela igualdade dos Direitos Civis nos Estados Unidos da América, das décadas de 1950 e 1960. Romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta e crítico social, negro e homossexual assumido, James Baldwin nasceu em Harlem, Nova Iorque, em 1924, e fez da luta contra o racismo e a discriminação social a sua missão de vida, em nome da defesa dos direitos dos negros e dos homossexuais. Essa missão foi também travada na sua escrita, tendo publicado, até à data da sua morte, em dezembro de 1987, mais de 20 livros, nos quais dissertou ainda sobre a sua relação com a religião – do seu papel na igreja com 14 anos ao ateísmo -, sobre o processo de descoberta da sua identidade sexual e a sua aceitação como homem homossexual. Partiu para França em 1948, para fugir do racismo e da homofobia do seu país de nascimento, tendo desde então vivido entre os dois países até ao dia da sua morte, com passagens ainda pela Suíça e pela Turquia.
Se a história de Portugal e das colónias pode explicar de alguma forma o atraso na divulgação da sua obra por cá, não deixa de ser difícil perceber como é que uma sociedade global tão focada na cultura norte-americana esperou tantas décadas para publicar a obra de alguém com a relevância de Baldwin, cujo pensamento e trabalho tanto contribuiu para os debates em torno do racismo, colonialismo e imperialismo.
A chegada da obra de Baldwin a Portugal aconteceu menos de um ano depois da estreia do documentário Eu não sou o teu Negro, inspirado por um dos manuscritos do escritor chamado Remember This House, no qual o realizador Raoul Peck se inspirou para criar um filme que traça uma viagem à história negra norte-americana, ligando o passado do movimento dos Direitos Civis ao actual movimento Black Lives Matter. Com o nome de James Baldwin de novo na actualidade, estreou ainda Se Esta Rua Falasse, filme inspirado no livro homónimo, com realização de Barry Jenkins (do oscarizado Moonlight).
Agora, a morte de George Floyd nos Estados Unidos e os consequentes protestos à escala mundial contra o racismo e a força policial no país, voltaram a trazer o nome de James Baldwin à tona, como porta-voz pelos direitos das pessoas negras, contra a segregação racial nos EUA e por direitos iguais para todas as pessoas.
James Baldwin é uma presença assídua nas inúmeras listas de literatura, pertinente para se acompanhar e perceber este momento histórico, e questões sociais que com isto regressaram à agenda mediática, e é um daqueles autores cujo trabalho é intemporal e cujas palavras têm um poder transformador inegável. Porque a sua obra é essencial, agora e sempre, reunimos numa lista algumas obras para te iniciares na leitura de Baldwin – uma sugestão consciente da dificuldade de encontrar os seus livros traduzidos em Portugal. Tendo isso em mente, começamos pelos seus dois testemunhos editados pela Alfaguara.
Se Esta Rua Falasse
É, segundo a editora, um romance “sensual, violento e profundamente comovente”, uma “bela canção de blues, de toada doce-amarga, com notas de raiva e ainda assim cheia de esperança”. Foi publicado pela primeira vez em 1974 e é considerado um “romance-manifesto” contra a injustiça do sistema judicial, sobre uma história de amor actual e comovente até aos dias de hoje. Se Esta Rua Falasse narra a história de amor de um casal que se vê forçado à separação quando o rapaz é preso sob uma falsa acusação de violação, motivada pela cor da sua pele. O livro acompanha os impactos de uma sentença injusta na vida de um casal jovem, e as suas tentativas de retornar à normalidade e conciliar um futuro incerto, constantemente frustradas pelo racismo e desigualdade. Foi um livro incómodo aquando da sua publicação na década de 1970, e continua a ser um retrato demasiado actual, num país que ainda hoje acumula histórias idênticas. Na altura do seu lançamento, Joyce Carol Oates, do The New York Times, escreveu: “Uma história comovente, dolorosa, tão vividamente humana e tão fiel à realidade que se torna intemporal.”
Se o Disseres na Montanha
É o primeiro e o mais ambicioso romance de James Baldwin. É inspirado na juventude do próprio autor, e narra a vida de John Grimes, um rapaz de 14 anos de Harlem, Nova Iorque, e o seu caminho para se encontrar. À semelhança da história de Baldwin, a família e a comunidade esperam que John venha a seguir os passos do padrasto, ministro da Igreja Pentecostal. É uma história sobre família, igreja, e a vida dos negros num contexto religioso. Sobre repressão, inspiração e auto-determinação – emocional, moral e sexual. Sobre comunidade, sobre Harlem e sobre ser-se negro. Uma semi-biografia que transforma a história individual do autor na odisseia colectiva de um povo marcado pela segregação.
‘You think your pain and your heartbreak are unprecedented in the history of the world, but then you read.’
James Baldwin, born #onthisday in 1924.#ThursdayThoughts
— Penguin Books UK (@PenguinUKBooks) August 2, 2018
The Fire Next Time
Lançado em 1963, é indiscutivelmente o trabalho mais conhecido de Baldwin. Consiste em dois textos ensaísticos, intensamente pessoais, dirigidos ao seu sobrinho adolescente sobre racismo e segregação na América, histórica e presentemente. É uma obra essencial para se entender o passado do racismo no país (e um dos livros de cabeceira do antigo Presidente norte-americano, Barack Obama). Foi best-seller quando apareceu, galvanizando uma nação e dando voz ao então emergente movimento dos direitos civis. Os ensaios foram originalmente publicados nas revistas The New Yorker e The Progressive e, juntos, são ao mesmo tempo uma evocação poderosa do início da vida de Baldwin no Harlem, e uma condenação firme do terrível legado de injustiça racial na América. A primeira parte, Letter From a Region in my Mind, pode ainda hoje ser lida no site da revista. Foi desse seu exercício social que saiu uma das suas mais famosas frases: “Whatever white people do not know about Negroes reveals, precisely and inexorably, what they do not know about themselves.”
Além da versão original em língua inglesa ser de fácil acesso, online é fácil encontrar uma versão em português do Brasil chamada Da Próxima Vez, o Fogo. Está ainda disponível em Portugal uma versão da Taschen que acompanha os textos (em inglês) de Baldwin das fotografias vitais de Steve Schapiro, num testemunho ainda mais completo e poderoso de uma das mais importantes lutas da sociedade norte-americana.
Notes of a Native Son
Foi o primeiro livro de não-ficção do autor, publicado em 1955. O volume reúne dez ensaios de Baldwin, originalmente publicados em revistas como a Harper’s Magazine, a Partisan Review ou a The New Leader. Os ensaios iniciam a sua jornada pelas questões raciais na América e Europa e são uma valiosa introdução ao seu pensamento. Escrevendo como artista e como activista, Baldwin investiga a complexa condição de ser negro na América. Notes of a Native Son foi o livro que estabeleceu a voz de Baldwin como crítico social, e mantém-se até aos dias de hoje como um dos seus trabalhos mais admirados, mostrando aquilo que o distingue: como um dos poucos escritores sobre questões de raça que tratou o tema com uma poderosa mistura de indignação com a violência física e política contra cidadãos negros, e com empatia e entendimento pelos seus opressores, o que ajudou a despertar a atenção de uma audiência branca, até então conivente com situações extremas. Não existe traduzido, mas é fácil de encontrar na língua original, em vários revendedores.
No Name in the Street
De 1972, No Name in the Street é um dos mais pessoais trabalhos de James Baldwin, aquele em que o autor mostra a sua fúria e desespero mais profundamente do que em qualquer outro livro. Com vários detalhes, relembra a sua infância e a forma como moldou a sua consciência precoce, os eventos posteriores que o marcaram, como os assassinatos dos seus amigos Martin Luther King e Malcom X, as suas estadias na Europa e em Hollywood e o seu regresso ao sul dos EUA, para encontrar uma América violenta. Tal como Notes of a Native Son, não foi editado em português, mas é relativamente fácil de encontrar em inglês, online ou em livrarias portuguesas.
Não há uma ordem certa para se ler Baldwin. Além dos seus 63 anos de vida, as suas palavras e filosofia viajaram milhares de quilómetros para longe da 110th Street em Harlem, onde nasceu. A sua imagem pública tem estado desde então numa jornada de mediatismo, desde a sensação literária do seu romance de estreia em 1952, até ao seu foco no doloroso trabalho de não-ficção nos anos 60, que o viu reverenciado como um dos intelectuais mais importantes da América.
To be a Negro in this country and to be relatively conscious is to be in a rage almost all the time. –James Baldwin #TrayvonMartin
— Dwayne Rodgers (@DiggsWayne) July 15, 2013
Mais de trinta anos desde a sua morte em 1987, o interesse revigorado em Baldwin e nas suas ideias mostra o carácter premonitório do seu trabalho em vida. Citações suas ressurgem a cada nova morte de um negro por força policial nos Estados Unidos, pintam cartazes e publicações online. Tudo o que Baldwin disse e escreveu nas décadas de 1940, 1950 e 1960 ainda expressa o que é ser negro nos EUA, o que é ser homossexual nos EUA, o que é ser alguém que ninguém quer ouvir nos EUA.
James Baldwin's prophetic, timeless words. True then. True now. #Baltimore #FreddieGray pic.twitter.com/rKBaYCd34s
— Rahiel Tesfamariam (@RahielT) April 28, 2015
Todos os documentos mencionadas neste artigo merecem uma oportunidade, dos filmes aos documentários, aos vídeos de entrevistas ou discursos, passando, obviamente, pelos livros e textos. Talvez começar pelos ensaios e terminar nos romances funcione como um bom catalisador das suas ideias – começar com os problemas, as questões, as teorias, terminar com essas ideias enquadradas numa história. A sua bibliografia é extensa e abrangente e outros títulos merecem atenção: Blues for Mister Charlie (1964) ou The Devil Finds Work (1976) na não-ficção, Giovanni’s Room (1956) ou Another Country (1962) nos romances.
Não é possível ler Baldwin sem uma sensação estranha de adivinhação do futuro. As problemáticas sobre as quais discorria, como as complexidades que sentia, embora não totalmente assumidas, nos anos 1950 e 1960, sobre a sexualidade e sobre a distinção de classes raciais nas sociedades ocidentais, em particular nos Estados Unidos, são tão actuais quanto à época. É ainda recorrente ver o seu trabalho ser recuperado também por outros autores que procuram afirmar a sua relevância na actualidade como na altura, salientando a necessidade de se ler Baldwin para compreender os EUA de hoje, de Donald Trump.
Além da crítica social e do contributo académico, ao longo da sua vida literária, James Baldwin transformou também em ficção (histórias e argumentos) as suas dúvidas e dilemas pessoais, relacionados com as pressões sociais e psicológicas que impossibilitavam a integração de tanto negros como homossexuais e bissexuais na sociedade – relatos úteis em 2020, quando igualdade e equidade continuam a ser conceitos que urge discutir. Ler Baldwin é aprender história e muito mais sobre o mundo em que vivemos todos os dias.