Enquanto estátuas de Cristóvão Colombo são derrubadas nos Estados Unidos, a sul do continente notabilizado pelo suposto genovês, essa discussão já vinha adiantada — em 2013, um importante monumento em sua homenagem foi retirado para dar espaço ao de uma mulher indígena. Em Buenos Aires, uma estátua de Juana Azurduy, militar que derrotou os colonizadores espanhóis durante as independências na região, num dos principais pontos da capital argentina levou a uma disputa entre relevante políticos, e levantou uma série de questões.
Localizada próxima à Casa Rosada, sede da Presidência argentina, a estátua de Azurduy fica à frente do Centro Cultural Kirchner. A decisão de colocar ali o monumento, justamente onde ficava a homenagem a Colombo, foi tomada em 2013 pela Presidente à época, Cristina Kirchner. Foi então que começou um debate entre as competências federais e as locais, relativas à cidade autónoma de Buenos Aires.
O então autarca de Buenos Aires, Maurício Macri, defendia a permanência do navegador no local, chamado Parque Colón. Um dos motivos era o facto de a estátua ter sido um presente da importante comunidade italiana na cidade. Com construção ordenada em 1910, a peça era um presente em virtude dos 100 anos da Revolução de Maio, que marca o início do processo de independência argentino. Para Macri, o governo federal não possuía jurisdição sobre o espaço, processo que teve de ser resolvido na câmara de Buenos Aires.
A homenagem a Azurduy também foi um presente. Boliviana nascida em Cuquisaca, cidade próxima de uma das principais extrações de prata durante a colonização, a representação da indígena em Buenos Aires foi um patrocínio de Evo Morales, ex-presidente boliviano e primeiro de ascendência indígena a assumir o poder. O legado de Azurduy foi extensamente lembrado durante a presidência de Morales, que chegou a criar o “bono Juana Azurduy”, uma espécie de “bolsa família” do vizinho Brasil para mulheres grávidas e em vulnerabilidade.
Nascida em 1780, Azurduy era filha de um espanhol e de uma mulher indígena. Lutou em importantes batalhas, como na libertação de Buenos Aires na Revolução de Maio, que viria a ser concretizada com em 1816, com a oficialização da emancipação argentina. A boliviana liderou tropas contra espanhóis na independência de outros países na América do Sul, como o Peru. Em 2009, Kirchner outorgou-lhe o título de general do exército argentino, enquanto na Bolívia foi nomeada Marechal e Libertadora.
O grande herói das emancipações na região, Simón Bolívar, que também conta com uma importante estátua em Buenos Aires, na região de Caballito, chegou a dizer que Azurduy era quem deveria ter dado o nome à Bolívia, em virtude de sua relevância nas batalhas. No entanto, o seu destino foi trágico, fluente em quechua e aimará, duas línguas nativas importantes. Esquecida, morreu na indigência em 1862, na hoje Sucre, na Bolívia.
Membro da elite à época, há a defesa de que Azurduy na verdade não era uma heroína indígena. No La Nación, Rolando Hanglin defendeu mesmo que ela seria uma “senhora de classe”, o que é justificado pela educação recebida, incomum para mulheres no período, muito mais para as de origem nativa.
À época, o chefe de gabinete de Buenos Aires, Horacio Rodriguez Larreta, acusou Kirchner de “roubo” da estátua de Colombo e cogitou: “Se deixarmos isso ocorrer, na próxima levam o Obelisco”, em referência ao principal monumento da cidade. Larreta, aliado de Macri, é hoje autarca da capital, e um dos mais relevantes nomes na oposição ao peronismo. Kirchner acusava Colombo de ser “genocida”.
Com custo à época de 1 milhão de dólares americanos, pagos pelo governo boliviano, a estátua de 25 toneladas, nove metros e feita em bronze, foi inaugurada em 2015. À frente do CCK, o monumento ocupa um dos grandes pontos turísticos da cidade, a antiga sede dos correios, e hoje o maior centro cultural da América Latina, comparado com frequência ao Pompidou, em Paris. Já a estátua de Colombo, com suas 38 toneladas e 6,25 metros de altura, em mármore carrara, foi transladada para o porto de Buenos Aires, local com grande simbolismo para os italianos, em 2019.
A homenagem a Azurduy não chega perto das recebidas por quem é visto como grande herói da independência argentina, José de San Martín. Bem próxima à Casa Rosada, está a Catedral de Buenos Aires, onde os restos mortais do general são guardados por soldados que controlam os constantes turistas. No Museu Histórico Nacional, até mesmo o sabre do libertador é exibido com presença constante de guardas.
Além da carga simbólica entre colonizadores e indígenas, o processo trouxe à tona o distinto tratamento entre imigrantes europeus e de outros sul-americanos no país. De chegada mais recente, bolivianos com frequência questionam a recepção na Argentina. Outro emblema da questão é o bairro da Boca, famoso pela equipa que carrega o seu nome pelo mundo. Hoje apresentado como uma região de classes menos abastadas, em especial de imigrantes sul-americanos, o bairro já foi visto como uma zona “cool” frequentada pelos europeus. A alcunha dos apoiadores do Boca, “xeneize”, é justamente uma referência ao número abundante de genoveses na região há mais de um século, a suposta cidade de origem de Colombo.