A inesperada reforma antecipada de Allen Halloween mudou-me os planos para esta crónica. Com a saída de cena deste bandido que já nasceu velho, perdemos um dos maiores cronistas de uma parte de um vasto território ocupado que as estatísticas não representam e que os noticiários só usam como pasto fértil para alimentar o monstro insaciável dos pesadelos e mitos que entretêm e sustentam a chamada classe média. Um território (ou territórios) invisibilizado e ignorado, mas densamente povoado, que vive debaixo do tapete, distante da gente elegante exibida em praça pública e das preocupações oficiais que insistem em fazer-nos crer ser comuns. O desemprego, o salário de merda, a ausência de presente e de futuro, toda a imundice quotidiana de quem percorre a vida um dia de cada vez: o país que ninguém ouve e ninguém vê, o país onde habita a maioria e que só aparece como contraste a essa classe idealizada e imaginária, mais definível por aquilo que não é do que por uma suposta coesão socioeconómica ou por qualquer traço comum entre aqueles que por ela são categorizados. Mais do que um território, é um país que é varrido para debaixo do tapete, o lugar para onde se empurra o que ninguém quer enfrentar.
Não é de negar que a transversalidade da popularidade de Allen Halloween se deva, também, a essas fantasias de um mundo sem rei nem roque que satisfaz alguns dos mitos fundacionais da «nossa» sociedade: para alguns, as suas letras oferecem uma janela para um mundo onde a criminalidade serve a sobrevivência e é usada como a corda possível para fugir ao negrume de um poço cujo fundo parece não existir. Mas, contrariamente a tantos outros rappers, não há qualquer romantização da criminalidade (nem qualquer condenação moralista), não há glamour ostentatório nem tentativas de afirmação badass. Está lá a carga que poderíamos chamar gangsta, mas pesada, crua e taciturna, sem carros a brilhar enquanto deslizam por uma cidade luminosa com miúdas em pouca roupa. Nas palavras do próprio, numa entrevista concedida a um blog (nunofaulha.blogspot.com), em 2009, bem antes da sua explosão, «kriminal não significa ser um gangsta ou um delinquente, kriminal significa sobrevivente e é isso que eu sou». Narrar a sobrevivência é o que Allen faz e fazê-lo é contar a vida de «homens que deram tudo até não terem nada» (in “O Grande Gentio”), sem procurar a beleza no lixo, até porque, por muito que o reviremos, não é lá que vamos encontrar a superação catártica que regozija a plateia. «Não há paz onde não há justiça» (in “O Grande Gentio”).
O universo de Allen oferece-nos um drama complexo e contraditório, com toda a fealdade e absurdo da existência, mas sem catastrofismos e fatalismos trágicos. A melancolia e auto-reflexividade das histórias que nos conta, sem máscaras que sirvam a culpa e a vergonha, não nos afagam com maniqueísmos fáceis de heróis e coitadinhos. Não há vitoriosos nem derrotados, nem nos espera a luz no fundo do túnel. Há «uma noite que não acaba nunca» (in “Bairro Black”) e é nessa noite que há que fazer o caminho. A fusão da voz empastada e de cadência modorrenta com beats melódicos mas lentos e lúgubres é o ambiente perfeito para estes contos de um sobrevivente. Longe do cânone do rap, o som dialoga com ambientes familiares a diferentes registos musicais, o que torna difícil classificar Allen musicalmente. É conhecida e assumida a influência do grunge no trabalho de Allen, notória não só numa certa angst que perpassa o som e as letras como, também, nos berros que irrompem em algumas músicas (uma influência que se nota ainda mais no recente Unplugueto). Talvez seja o primeiro e único artista de grunge rap, mas mesmo isso parece pouco para classificá-lo.
Allen não é um artista politizado ou de «intervenção», movido por uma agenda ou por qualquer espírito de missão. Se é cronista, como o classifiquei atrás, é, em parte, involuntário. Não pretende falar por ninguém, dar voz ou ser a voz de alguém, nem se arvora em mensageiro de uma certa «realidade». «O Halloween não é um bravo nem um G[angster]/ é uma alma perdida que vagueia na street” (in “No Love”), cuja onda que navega «não vai a lado nenhum/ antes de chegar à praia sou um homem afogado» (in “Fly Nigga”). Se uma certa realidade transparece nas letras, é sempre através da sua experiência, como se de um diário se tratasse, num imaginário que não obedece a convenções de estilo e onde convivem figuras tão contraditórias quanto as suas crews e a Mary Poppins. Para usar as suas palavras, em Allen encontramos «as folhas perdidas de um diário, (…) o quotidiano suicida de quem vive num bairro»: do branco de terceira, do cigano (in “SOS Mundo”) e, especialmente, do «homem africano, imigrante, desempregado/ Um indivíduo considerado um inimigo do estado» (in “Raportagem”). Um mundo que parece não ter lugar para a poesia mas que encontrou um poeta neste «rei [de um] rio que não chega ao mar» (in “Debaixo da Ponte”).
Dizem que não há ateus nas trincheiras. Outros tantos, que por elas passaram, dizem que foi aí que viram Deus ficar mais longe. Por isso, a fórmula é discutível. Mas, neste quarto sem luz de onde nos escreve Allen, agitado por contradições e fantasmas, qualquer luz que surja a brilhar no escuro é algo que não se nega a ninguém. Allen anunciou, recentemente, o fim da sua carreira como rapper para se dedicar a servir Jeová, presença frequente nas suas letras. Duvido que mil igrejas a arder iluminassem tanto quanto o que partilhou. Mas o que nos deu ninguém nos tira. Em “Ódio”, há uns anos, escrevia: «Deus abandonou-me/ Deus já não me ouve mais/ Mas não é tarde/ um dia a gente faz as pazes». O anúncio de despedida terminou com o pedido para «que ninguém fique triste porque eu estou feliz». Por isso, se fizeste as pazes e tornaste mais suportável esta noite que não acaba nunca, eu fico feliz por ti, Allen. Obrigado.
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Texto de Diogo Duarte
(Nota: este texto foi originalmente publicado no Jornal Mapa, jornal de informação crítica, editado em papel, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.)