Para muitos portugueses estar fechado em casa seguindo as indicações do governo e das autoridades sanitárias por tempo indeterminado tem sido um desígnio dificílimo. Desde o primeiro dia que se ouvem queixas e que pela internet se multiplicam desafios, lives e propostas que se propõem a ocupar o tempo e a acalmar a ânsia de quem foi empurrado para dentro de casa pelo vírus do momento. Por estarmos habituados a um ritmo de vida frenético, com estímulos variados e o permanente contacto social, estarmos obrigados a estar em casa parece, desde o princípio, um custo tremendo numa equação que não contempla os demais.
Neste raciocínio comum esquecem-se aqueles que realmente se sacrificam, tendo que dia após dia enfrentar sem escolha o mundo exterior, pondo em risco não só a sua saúde como a de todos aqueles com quem partilham a casa, e a vida. Podíamos falar dos médicos, enfermeiros e todo o pessoal afecto à saúde, sector que foi — justamente — aplaudido no princípio da pandemia mas, na realidade, este sacrifício não se fica por aí, nem se resume àqueles que escolheram para a sua vida viver num sector de especial risco com a missão de salvar os outros.
Trabalhadores de sectores considerados essenciais, como o alimentar, o dos transportes ou da comunicação são alguns dos exemplos que completam a lista dos que não tiveram escolha. Nem todos estão em lugares de visibilidade, como o/a funcionário/a caixa de um supermercado, mas por serem essenciais nas cadeias de produção e distribuição que mantém o país activo, a comida na prateleira dos supermercados, as comunicações activas, ou os laboratórios funcionais para despiste desta e de outras doenças, todos continuaram no seu posto de trabalho. Segundo os dados da Marktest, avançados pela revista Sábado, 30% dos inquiridos numa amostra de 501 pessoas revelou continuar a trabalhar no seu local de trabalho, protegidos apenas por planos de contingência desenvolvidos, ou desenrascados, pelo empregador mas sujeitos a toda a exposição que sair de casa e ter de se deslocar até ao local de trabalho exige, na directa medida das condições desta deslocação. Desde as pessoas que varrem as plataformas das estações ferroviárias, até aos responsáveis de vendas de grandes empresas de produção e distribuição alimentar ou operários fabris, são muitas as pessoas que sem darem a cara dão o corpo por este momento; num perfilar que reflecte o privilégio de cada um, articulando um conjunto de intersubjetividades — como enuncia José Gil no artigo do Público — num momento tão solene para todos nós.
Não é só o facto de se trabalhar mas o local em que se trabalha, a deslocação que isso implica e, até, a casa onde se habita, que neste universo restrito por força das recomendações da Direcção Geral de Saúde ganha uma importância maior, como se se tornassem um confronto entre nós e a nossa condição. Uma condição ainda mais grave no caso daqueles que por força do estado de emergência se vêem confinados a casa, vendo pela janela os seus pequenos negócios ruir vítimas das portas fechadas.
Desde o princípio falámos com pessoas em todas as condições e fomos tomando pulso às suas reacções para perceber como estão a viver o momento, como reagiram as empresas onde trabalham, como se improvisam medidas e como se sente esta excepção. Um operário fabril, uma técnica de laboratório, uma operadora de call-center, uma responsável de marketing de uma empresa de distribuição alimentar, numa artigo que se propõe a iluminar as zonas sombreadas duma sociedade onde a viralidade e a reputação relegam para um plano menor muitos dos essenciais. Por insegurança dos entrevistados e zelo pela sua privacidade contaremos as suas histórias com recurso a nomes fictícios.
“Shifter: Continuas a trabalhar?
Luís: Infelizmente sim, ainda não decidiram fechar aquilo”
Se uns sentem um certo espírito de missão ou simplesmente agradecem o facto de poderem continuar a trabalhar como se, de certo modo, fosse garantia de que o seu posto de trabalho não está em causa, outros são mais reticentes e há até quem se revolte por sentir que podia fazer o mesmo a partir de casa. Os exemplos são vários e o espírito varia de pessoa para pessoa, como as medidas de proteção e os planos de contingência variam de empresa para empresa.
A Maria, trabalhadora de um call-center, foi peremptória nas respostas que deu às questões que lhe colocámos – queixa-se sobretudo de que o seu trabalho poderia ser feito a partir de casa, utilizando como exemplo outros call-centers que de imediato o fizeram e de, mesmo perante suspeitas de casos positivos entre os colegas nenhum plano de contingência severo ter sido posto em prática — depois de algum tempo em trabalho em condições incertas, parte dos colaboradores do seu sector foram postos em lay-off e a outra parte pôde continuar a desempenhar as suas funções a partir de casa. Em sentido inverso, a Carla que trabalha como responsável de marketing numa empresa do sector alimentar destacou que a sua empresa faz o que pode por manter os espaços de circulação desinfectados, bem como estabelecer horários que diminuam o fluxo de pessoas nos espaços comuns, até que optou por enviar os seus trabalhadores para o regime de teletrabalho. Se no primeiro caso o aviso seguiu numa e-mail breve e tardio, no segundo dá-se conta de uma sensibilização aos trabalhadores pelas boas práticas de higiene.
“Somos dezenas de pessoas a trabalhar na mesma sala, a partilhar os mesmos elevadores, utilizando o mesmo refeitório que inúmeros outros departamentos, inclusive aqueles onde já foram confirmados casos positivos, sem que nenhuma informação tivesse sido passada que nos garantisse que as medidas certas estariam a ser tomadas para a nossa segurança.”
No Laboratório, conta-nos Margarida, reforçaram-se as medidas de higiene e segurança que fazem parte do quotidiano de um espaço do género, e na fábrica, conta-nos o Luís, os termómetros digitais passaram a fazer parte do ritual de entrada ao serviço e os cartazes sobre como diminuir ao máximo a possibilidade de contágio parte da decoração das paredes. Nestes casos reconhecem a impossibilidade de desempenhar as tarefas a partir de casa e portanto relativizam essa possibilidade, bem como o perigo do vírus. Margarida fá-lo com espírito de missão, Luís com alguma preocupação mas sem dramas que se comparam àqueles de quem ficou em casa e faz de cada saída às compras uma viagem a uma cidade em modo purga — faz o que tem a fazer para garantir o seu emprego.
“Ao ser decretado estado de emergência o laboratório terá que manter os serviços mínimos, estando aberto todos os dias. Foi acordado entre equipa e entidade patronal, que faríamos equipas mais pequenas de modo a alternar os dias de trabalho, minimizando as deslocações e o contacto com terceiros.”
Ouvir estas histórias ou outras, como a da senhora, de idade avançada, que todos os dias sai de casa para trabalhar nas limpezas das estações ferroviárias, agora quase desertas, ou dos responsáveis de loja das telecomunicações que improvisam planos para atender os clientes garantindo a segurança de todos, é olhar com uma outra perspectiva sob um problema que regra geral assusta todos.
Se todos percebemos o risco da propagação da doença, do contágio do vírus, podermo-nos proteger escolhendo ficar em casa, algo que é visto como um sacrifício, transforma-se instantaneamente num privilégio. Se a esse cenário juntarmos as nuances que distinguem o habitat de cada um, revelam-se as diferenças entre as vidas, revela-se em cada qual o seu privilégio. O mesmo se verifica se pensarmos nas dezenas de pessoas que diariamente nos trazem as compras dos supermercados ou, mais grave, respondem aos nossos desejos gastronómicos com entregas de comida ou outras coisas que tais, como continuação da sua actividade ou num perverso aproveitamento da crise para, assumindo os riscos, compensar as perdas financeiras que esta possa representar.
Partindo da premissa de base de que o vírus é um agente natural, que infecta sem discriminar género, idades ou raças, é importante considerarmos a ideia de que a mitigação quase total deste risco através de uma estratégia de quarentena ilumina subjectividades outrora imersas no contínuo da normalidade. José Gil, num ensaio publicado no jornal Público, refere-se à subjectividade digital como elemento diferenciador dos indivíduos neste contexto, mas muitas outras subjectividades que lhe são precedentes se tornam agora por demais evidentes.
A precariedade laboral e o medo de perder o emprego afloram levando trabalhadores a assumir o risco sem reivindicação possível. Torna-se evidente que no universo laboral são os que têm posições contratuais mais frágeis e uma menor rede de sustento aqueles que se vêem sem alternativa a não ser o conviver, naturalmente, com o risco. A gentrificação das cidades que empurrou pessoas para casas com cada vez menores condições confrontam-nos com a dimensão da nossa existência social, restringindo-nos a espaços que variam, quase sempre, na directa proporção das nossas posses e mostram como até o direito à habitação onde fazer confinamento é subjectivo e desigual – situação que se agrava de sobremaneira no caso dos sem-abrigo como o DN explora neste artigo.
Outro dado importante é iluminado hoje pelo trabalho da Universidade do Minho, citado no jornal Público, em que ficamos a saber que, segundo os dados apurados, aqueles que podem continuar a desempenhar a sua função em regime de teletrabalho têm menos propensão para ter de lidar com sintomas de ansiedade ou depressivos. O mesmo acontece com quem dispõe de um jardim. Duas características quase antagónicas mas que acabam por confluir numa sensação comum — a da estabilidade.
Estes dados, sem permitirem uma análise exaustiva que nos dê conclusões definitivas, sublinham a ideia de que nem todos passamos o tempo da mesma forma desde logo porque nem todos gozamos das mesmas condições para o fazer. A segurança no trabalho e as condições de habitação são desde logo os factores mais determinantes a considerar nesta travessia e na difícil missão de a concluir com a mínima tranquilidade; com estes se relaciona, como denominador comum, a ideia de estabilidade, primeira vítima de uma mente ansiosa. Numa altura como esta é especialmente difícil usufruir do presente considerando a instabilidade que torna o futuro perfeitamente imprevisível. Uma situação que distingue, sem excepção, aqueles que vivem sobre um privilégio adquirido ou aqueles para quem cada dia é uma conquista, reflectindo, em múltiplos contextos, a fragilidade do tecido laboral em Portugal e a pouca resiliência da nossa economia. Perante a emergência descobrimos as fragilidades, redefinimos os privilégios, repensamos o progresso e, se houver coragem, redesenharemos políticas públicas que nos impactem a todos.
Se há coisa que percebemos perante uma situação extrema é que o cenário será dantesco por mais positiva que seja a nossa ilusão sobre resiliência: mesmo os músicos de sucesso, as startups do momento ou a padaria que prolifera revelam a verdadeira face do seu privilégio – seja acesso a capital de risco, a crédito barato ou a uma fama precária – quando a malha aperta e a continuidade se assevera, reiterando uma verdade universal: que viver é o nosso principal trabalho.