Desde que estamos fechados em casa o consumo cultural dos portugueses, de uma forma geral, parece ter aumentado. Mais música, livros, filmes e séries passaram a fazer parte de um dia-a-dia com umas horas extra agora que não havia necessidade de deslocações até ao trabalho nem possibilidade de saídas para convívio. Teatros e cinemas também passaram para o online, em exibições programadas através de plataformas de streaming. E os museus? Como tem sido a sua adaptação?
Por serem espaços com coleções numerosas, e sistemas complexos que articulam diferentes de obras de arte, os museus têm-se vindo a digitalizar ao longo do tempo, num processo de longa duração que agora fomos auscultar. Em Portugal, apesar do esforço ser recente, a disponibilidade online de obras é vasta mas as divergentes políticas referentes ao seu acesso continuam a ser um entrave a uma fruição completa por parte de todos os públicos. O caso português não é único e é, de certa forma, paradigmático de uma transição digital que se faz aos poucos num esforço de coordenação de instituições com diferentes chefias, missões e visões. Luis Ramos Pinto foi consultor na área das práticas digitais para museus e monumentos nacionais, assessorando a Direção da Direção-Geral do Património Cultural, e falou ao Shifter sobre o ponto da situação nacional deste sector.
Na conversa com o consultor que já passou pela rede europeia, Europeana, exploram-se as várias dimensões da digitalização dos museus, desde o licenciamento até à investigação académica, passando por diversos outros tópicos que se cruzam no universo da divulgação e fruição da cultura online, desde a importância de empresas privadas como a Google a projectos comunitários como a Wikipédia.
Tendo em conta o teu envolvimento com a digitalização da cultura em Portugal, como resumirias o estado actual deste processo? Em que ponto estamos e como nos comparamos com outros países?
Quando falamos de cultura, gostava de me referir especificamente ao mundo dos museus que é a área em que trabalho profissionalmente. Recentemente, a nível nacional têm havido alguns grandes avanços relativamente a campanhas de digitalização. O projeto Portugal Arte & Património veio a disponibilizar online mais de 3.000 imagens em altíssima resolução e dezenas de exposições virtuais, que de uma forma cativante permite que as pessoas estejam em contacto com os nossos museus online. Tanto quanto sei, projectos desta dimensão num só país são poucos, em particular em termos de digitalizações em altíssima resolução (em gigapixéis com o Art Camera).
Créditos: DGPC|Google Arts & Culture via GIPHY
No entanto Portugal ainda está numa fase inicial comparativamente com o resto da Europa no que diz respeito à adopção de políticas que visam permitir a reutilização e democratização das digitalizações das coleções dos nossos museus online, através da aceitação e reconhecimento do domínio público e uso de licenças abertas. Em 2011, a Comissão Europeia (CE) publicou uma série de recomendações ligadas à digitalização e preservação digital. Entre várias das boas práticas, a CE recomenda em relação ao material cultural: ‘acesso tão amplo quanto possível ao material digitalizado no domínio público, bem como uma realização tão vasta quanto possível desse material para fins comerciais ou não comerciais’. Em 2019, a CE publicou um relatório de uma análise da evolução da implementação das recomendações nos diferentes países da CE. Neste relatório, consta-se que Portugal era o único país onde não tinha adoptado nenhuma das seguintes medidas: estratégias para a digitalização de objetos culturais (nacionais ou regionais), a criação de grupos de trabalho ou programas de financiamento disponíveis para a digitalização (nacional e regional).
Num processo deste género quais são os principais objectivos? A ideia passa por tornar o património cultural acessível a mais público, para sua fruição, mas não só, certo? Referem, por exemplo, a possibilidade de utilização em promoção turística, de investigação, etc… Quais os eixos que podem ser beneficiados com a digitalização dos conteúdos?
Com a evolução tecnológica e da internet tem-se verificado que as coleções online beneficiam todas as áreas de actividade de um museu. A começar pelo o ensino, onde os conteúdos acessíveis online e de acesso aberto (AA) podem ser facilmente integrados em materiais de ensino, o que é uma ferramenta importantíssima agora que todos somos obrigados a aprender à distância. De momento não existe um depósito de imagens em alta-resolução dos nosso museus que possam ser descarregadas pelos professores.
Esta situação também se aplica internacionalmente, pois muitos dos nossos conteúdos são de relevância mundial. Por exemplo: Professores no Brasil ou no Japão que queriam incorporar nos seus conteúdos de ensino imagens dos objetos de arte dos nossos museus, também estão impedidos de o fazer pela mesma razão. Acrescento ainda que os conteúdos que não estejam em AA estão excluídos de plataformas ligadas ao ensino, como o Wikipédia e a Europeana.
A investigação é outra grande área que beneficia das políticas de acessibilidade e gratuidade dos conteúdos de um museu. Ainda há pouco tempo, li um artigo do historiador de arte Bendor Grosvenor que acusou as restrições (custos e burocracias) sobre as imagens dos museus de tornarem a investigação académica da disciplina da história de arte quase impossível. Atualmente um aluno de doutoramento que queira incluir uma imagem pertencente aos museus nacionais na sua tese terá pedir essa imagem e autorização (por vezes paga) para que a possa incluir no seu trabalho, sendo que depois não poderá partilhar livremente na internet a tese com a imagem incluída.
As políticas de AA melhoram a acessibilidade à coleção de um museu pelo seu público. Especialmente agora, que estamos fisicamente impossibilitados de visitar os museus e as suas coleções. A única maneira que nos resta para visitarmos os nossos queridos museus é online. Não nos esqueçamos que os museus por norma só têm espaço para expor uma pequena fração das suas coleções. Contrariamente, de forma online, poderão (teoricamente) expor toda a sua coleção.
As imagens das colecções em AA podem ser utilizadas pelos comissários dos museus livremente para desenvolverem conteúdos e exposições cativantes no Wikipédia e Google Arts. Estes novos conteúdos, têm um custo reduzido e podem ser usufruídos tanto pelo público online, como pelo público que visita fisicamente o museu e que complementa a sua visita com esta informação já disponibilizada de forma online (ex.: ler um artigo no Wikipedia com informação mais detalhada sobre um quadro que está a ver; ou viajar numa exposição virtual sobre a temática). A grande vantagem é que todos estes conteúdos de informação estão acessíveis através de um telemóvel com internet.
Em termos de marketing e branding, aprendemos com o Rijksmuseum que viu a projecção da sua coleção aumentar significativamente após a ter disponibilizado online em AA.
Imensas empresas (muitas ligadas a indústrias criativas) criaram merchandising, cartazes publicitários etc. com recurso às imagens das obras da coleção, projetando a mesma nacional e internacionalmente, contribuindo para um aumento o número de visitas físicas ao museu.
No seu livro The Second Self Computers and the Human Spirit, a professora do Massachusetts Institute of Technology (MIT) Sheery Tukle diz que os computadores são a extensão da expressão do ser de um indivíduo e que no processo cada indivíduo aprende mais sobre ele próprio. Se calhar, um dos aspetos mais interessante que uma politica de AA traz para um museu é o facto das pessoas poderem pegar nesses conteúdos e reinterpetá-los, permitindo que estes sejam uma extensão da expressão de um indivíduo e que no processo cada indivíduo aprenda mais sobre ele próprio como é o caso do #tussenkunstenquarantaine um iniciativa viral em que as pessoas encenam as suas pinturas preferidas
Hoje em dia, equipamentos como a Art Camera do Google Arts and Culture e digitalizações em 3D permitem captar um registo detalhadíssimo das obras, o que pode servir como uma excelente ferramenta para efeitos de conservação, preservação e restauro. Na eventualidade de algum desastre uma coleção online é um registo importantíssimo.
Achas que este processo pode ter um papel na inclusão de diferentes públicos, nomeadamente de públicos com condicionantes físicas, mobilidade reduzida, etc?
Sem dúvida que sim, basta pensar que os conteúdos digitalizados livres podem ser usados por programadores sem receio. Um programador pode pegar nestes conteúdos e integrá-los mais facilmente em todo o tipo de softwares inclusive apps para pessoas com condicionantes físicas, motoras etc. Os conteúdos online permitem ainda que as pessoas que estão impedidas de visitar fisicamente o museu o possam fazer via a internet, através por exemplo do StreetView ou de exposições virtuais.
Situações como a que vivemos actualmente levam a um reconhecimento da importância de digitalização do património, com um sentido de emergência. Achas que isso pode contribuir para uma solidificação do movimento em prol do acesso livre ou sendo as motivações díspares acabam por ser inconsequentes?
Eu sou uma pessoa positiva e penso que esta situação vai levar a um muito maior consciencialização dos benefícios do AA.
Perante o isolamento social, a partilha cultural torna-se cada vez mais importante, como ferramenta de combate ao isolamento para nos unir não só a nível nacional como global. É a partir da partilha da nossa história colectiva que nos conhecemos melhor como humanos e aprendemos mais com os outros. Implícito a isto tudo está a premissa-base de que a partilha de informação e o conhecimento é o que propulsiona o desenvolvimento das sociedades, o que agora é mais importante do que nunca.
O processo de digitalização destes conteúdos deve ser sempre acompanhado do correcto licenciamento que esclareça as permissões dos utilizadores. Nesse contexto, como se definem as permissões sobre cada peça do património cultural? Há uma directiva central que coordene ou cada instituição decide sobre o que tem em sua posse? Ainda sobre as licenças, sentes que há alguma resistência em Portugal à partilha de conteúdos, por exemplo passíveis de remistura – como no caso do Rijksmuseum?
A boa prática e o standard internacional no mundo dos museus tem sido usar o Creative Commons para indicar o tipo de licença associada à obra de arte. Infelizmente não conheço de nenhum documento a nível nacional que ajude as pessoas a definirem as permissões de cada peça, o facto de não haver um documento que o faça, é a meu ver um dos maiores obstáculos a prevenir os museus a adoptar políticas de AA.
Em relação a adoptar-se uma política semelhante ao Rijksmuseum, penso tem havido alguma resistência daí nenhum museu em Portugal o tenha feito. No entanto perante a situação que vivemos quase todas as semanas falo com profissionais de museus que querem saber mais sobre como desenvolver políticas de AA. Pode ser que esta situação venha a mudar o panorama/paradigma nacional.
Um dos grandes intervenientes nesta área é a Google com o seu projecto Arts & Culture. Como se estabelece a relação entre uma gigante tecnológica e instituições culturais? Qual é a importância de um parceiro desta dimensão?
Os museus que querem participar na plataforma do Google Arts and Culture podem submeter o seu interesse em fazê-lo aqui.
A plataforma oferece uma série de ferramentas extremamente úteis para os museus disponibilizarem as suas coleções online de formas cativantes e enriquecedoras. Oferecem um página para os museus colocarem as suas coleções sem limite no número de objetos. Oferecem ainda a possibilidade de fazer a captação de pinturas com o Art Camera, uma tecnologia de ponta que permite fazer digitalizações de pinturas em resolução de gigabytes o que permite ver pinturas num pormenor muito superior ao olho nu. Outras ferramentas incluem o StreetView em que o interior dos museus são digitalizados, o que é extremamente útil para quem queira conhecer o espaço sem o poder visitar. A plataforma permite ainda a criação de exposições online com recursos da vários formatos: imagens, streetview, art câmera vídeos etc. Com as imagens captadas pelo art câmera podem-se ainda criar in-painting tours, exposições virtuais em que uma pessoa viaja dentro de uma pintura.
Na minha opinião penso que todos os museus têm a ganhar em disponibilizarem as suas coleções nesta plataforma.
Outra das dimensões que referes no teu LinkedIn tem a ver com a gestão e criação de páginas da Wikipédia. Acreditas que essa postura institucional proactiva pode ajudar na divulgação da cultura nacional, quase como alimentando novas formas de aprendizagem?
Sim sem dúvida. O Wikipédia é um dos sites mais visitados do mundo. A importância do site para as organizações culturais é inestimável, pois trata-se da primeira enciclopédia global, que está continuamente em expansão. Não nos podemos esquecer que o primeiro contacto que temos online com um museu no Google e através do knowledge panel (aquele retângulo do lado direito nos resultados google) onde a descrição vem diretamente do Wkipédia. É imprescindível que haja pelo menos uma pessoa em cada museu a seguir e a editar conteúdos na página de Wikipedia do mesmo. No entanto por causa da maneira que a informação está estruturada os conteúdos integrados nos Wikipédia tem que estar em AA, o que é mais um grande incentivo para os museus adotarem políticas deste género.
Do teu conhecimento, há alguma coordenação com o Ministério da Educação ou, por exemplo, o Plano Nacional das Artes, para que esta digitalização seja articulada e incluída nos planos curriculares – por exemplo, recorrendo ao material já digitalizado em contexto lectivo?
Embora o PNA (Plano Nacional das Artes) tenha um enorme enfoque nas questões do acesso à cultura, que eu saiba não existe articulação entre ambos os Ministérios referente às coleções dos museus online. Mas é uma questão super pertinente como disse antes as coleções online são um recurso imenso para fins de ensino de qualquer disciplina ligada às ciências sociais, ainda para mais agora em que estamos todos obrigados ao tele-ensino. O Portugal: Arte e Património já oferece um recurso enorme para o segmento do ensino, numa fase inicial podia-se criar uma sensibilização sobre este recurso com ferramenta de ensino.
Um dos objectivos dos movimentos de digitalização é promover o acesso livre à cultura, contudo, este será resultado de um trabalho de digitalização e literacia – que torne os públicos capazes de aceder a esse conteúdo. No teu entendimento que passos ficam por dar nesse sentido?
Penso que seria importante gerar, no meio museológico, um percepção dos benefícios que uma política em AA tem em termos de angariação e comunicação com o público. Mas o mais imediato a meu ver seria ajudar os profissionais dos museus a disponibilizarem as suas coleções em AA com a qualidade e as licenças adequadas, para que estes se possam sentir à vontade a fazê-lo e a criar conteúdos com os mesmos. E em simultâneo gerar um conhecimento sobre a importância deste recurso junto do segmento de ensino.
Entrevista em colaboração com Edgar Almeida.
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