O que leva alguém a torna-se especialmente relevante num determinado momento da história, ao ponto de se confundir a sua importância no seu desenrolar, é sempre difícil de perceber. Associamos essa imagem aos que vemos em acções heróicas que ficam em registos fotográficos ou orais, mas dificilmente descortinamos com clareza quem ou o que, antes de tudo, influenciou o pensamento que antecedeu à acção. Na história dos movimentos sociais atribuímos esse desígnio a grupos abstractos – como os estudantes ou os trabalhadores – e neste exercício de simplificação, que não deixa de ser honesto, relegamos para segundo plano, académico e puramente intelectual, referências que da sua forma se ligaram a esse tempo e nos ajudam a compreendê-lo para além da superfície.
Há 52 anos, um pouco por tudo o mundo vivia-se numa particular efervescência que culminava em protestos nas rua. Contra a ocuapção militar dos Estados Unidos da América no Vietname ou, por maiores liberdades civis, cidades da Europa e das Américas ensaiavam um movimento global. Em França, este movimento havia de se tornar numa das maiores revoltas da história recente. Maio de 68, com a ocupação das Universidades – Estrasburgo, Paris-Nanterre e, por fim, Sorbonne – e a solidariedade dos trabalhadores para com a justa causa estudantil.
Nos entremeios desta revolução, vários foram os nomes que se destacaram mas poucos os que sobreviveram à erosão da história sem serem relegados para um lugar puramente simbólico, ou exclusivamente académico. Entre estes, dois deles ajudam a contar a história de um momento que, por muito que seja visto com nostalgia, falhou enquanto revolução. Uma recordação que não tem de ter uma moralidade patente mas nos ajuda a construir um mapa do pensamento revolucionário, não ancorado a ideologias passadas, mas a um compromisso futuro, com a ideia de liberdade e as diversas formas como esta se pode manifestar. Uma recordação que não tem de ser celebratória ou pejorativa mas contribuir para um maior entendimento da história recente e uma maior capacidade de escrutínio sobre dogmas vigentes.
Na história do Maio que aqui recuperamos, um grupo de intelectuais, ligados ao princípio do movimento, à mobilização estudantil e à publicação de obras que motivaram, em parte a revolta, desempenha esse papel. Sem que se lhes atribua uma autoria da revolução, há quem os culpes por uma alegada vacuidade do movimento e os veja como símbolo de um pensamento revolucionário fadado ao fracasso, por rejeição de qualquer ideologia – uma ideia que espelha a espontaneidade das ações e revela a efemeridade da espontaneidade, se quisermos.
Falamos dos Situacionistas, que apesar de terem marcado a história recente do pensamento crítico têm sido esquecidos ao longo dos tempos. Debord e Vaneigem, duas das figuras mais icónicas deste grupo, antecipam, nos seus textos mais tardios desde meados dos anos 60 e, possivelmente, desde o fim do movimento do Maio de 68, o fim do pensamento crítico radical e hoje percebe-se como este foi sendo marginalizado até se tornar numa espécie de símbolo de outrora – algo que se nota, por exemplo, nas comuns referências descontextualizadas ao título da obra de Debord, A Sociedade do Espetáculo, que servem para tudo e para nada.
Em tempos de pandemia, onde o sistema vigente se mostrou frágil e questionável, recuperar ideias progressistas, disruptivas, revela-se um exercício fundamental à saúde e dinâmica das democracias, para que se entenda quando do que assumimos com real é um dogma, e quanto do que aceitamos passivamente, nos condena a uma espécie de reclusão interior.
Os situacionistas que publicaram a maioria do seu trabalho numa revista muito particular e crítica, A Internacional Situacionista, rejeitam concepções modernas consensuais e estabelecem conjecturas sem medo do juízo mais superficial, criticando tanto a direita – autoritária – como a esquerda – inapta – nas suas propostas, criando um espaço para o pensamento ainda por ocupar, fora da dicotomia simplista e populista. As suas ideias são tão radicais quanto marginais, claramente revestidas de um apelo subversivo, não sendo por isso de fácil compreensão. Para ler Debord, Vaneigem ou outro autor desta colheita, é preciso treinar o distanciamento ao mundano, caso contrário, tudo pode parecer demasiado estranho e desrespeitador da ordem das coisas que nos habituámos a louvar.
É também, provavelmente, por serem autores historicamente mais próximos de nós, que a sua aceitação e distribuição não é tão comum. Se se torna relativamente pacífico aceitar um texto crítico de regimes defuntos como os impérios ou as monarquias, não é tão fácil assim aceitar e compreender obras que se dedicam por completo à crítica da sociedade industrializada e (numa apropriação livre do termo) espectacular. A temática deste duo segue por um rumo próprio os caminhos trilhados por Karl Marx, Engels, Hegel, entre outros, recuperando ideias que nessa altura foram populares no circuito intelectual: encontram-se facilmente semelhanças entre as críticas ao trabalho de Vaneigem, e o direito à preguiça de Paul Lafargue, ou vislumbres de Max Stirner – de quem Marx fora crítico – na base da observação partindo da lógica do indivíduo.
Apesar dos mais de 50 anos sobre a publicação de cada uma das obras e dos intelectuais mais expeditos poderem já considerá-las inadequadas aos tempos, as obras continuam a ter o potencial de desempenhar um papel na formação de um pensamento crítica adequado aos tempos que correm. O cenário que apontam e escamoteiam alterou-se, e muito, mas nem por isso os prismas da sua análise estão desactualizados – no fundo, porque tanto Debord como Vaneigem procuram olhar o mundo sem a capa de ficções com que o homem o foi tapando. Não vemos abordados directamente assuntos que hoje nos são caros como o aquecimento global ou a crise dos populistas porque, em sentido inverso, a sua hipótese se estabelece antes de tudo isso, na existência humana. É sobretudo sobre a perda da autenticidade da vida e das experiências que acabam por nos falar e sim, indirectamente, acabam por falar de tudo aquilo que nos toca hoje.
“A alienação do espectador em proveito do objecto contemplado (que é o resultado da sua própria actividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo.” , lê-se na sinopse de A Sociedade do Espetáculo.
Assim, em vez de incidir os escritos sobre problemas que não são mais do que a consequência de formas de organização social perversas, produção insustentável de bens materiais ou da profissionalização da propaganda – cujo objectivo essencial é saber como induzir comportamentos – estes escritores de ’60 debruçaram-se sobre a unidade fundamental de toda a equação, o homem, procurando ao raspar a superfície evidenciar quais são os seus verdadeiros desejos e as suas verdadeiras necessidades, para além de toda a complexa estrutura social que se tem vindo a edificar à nossa volta. Essa é a sua tese central, a de que o homem foi seduzido pelos vícios do mundo industrializado e capitalista acabando a viver sem conhecer as suas verdadeiras necessidades e muitas vezes contra os seus próprios desejos. Partindo daí acaba por ser natural que algumas das ideias nos pareçam absolutamente loucas mas é nessa diferença que reside precisamente o seu valor.
“É verdade que o hábito mutilou de tal modo o homem que ele pensa que , ao mutilar-se, obedece à lei natural”, Raoul Vaneigem em A Arte de Viver para a Geração Nova.
Uma dessas ideias distantes e, digamos surge no texto La déchéance du travail – em português, A Decadência do Trabalho – que compõe um dos capítulos de A Arte de Viver para a Geração Nova. Nele, Raoul Vaneigem, trata de re-enquadrar o conceito de trabalho de um ponto de vista histórico. Em vez de olhar apenas à urgência do presente com os seus imperativos de produção e produtividade, recupera aquilo que trabalho e labor significaram outrora convidando-nos a reflectir sobre a transformação que o conceito e a sua aplicação social sofreram pelas mãos do capitalismo. Vaneigem recorda que a palavra Trabalho deriva do latim tripalium, nome dado ao instrumento de tortura utilizado no império romano, que Labore significa originalmente tormento e da inscrição que se lê nos portões de Auschwitz “o trabalho liberta“, para questionar a forma como evoluiu a nossa aceitação à condição de trabalhadores.
Mas não é só sobre o trabalho, essa actividade tipicamente hierarquizada e onde é fácil percebermos quem detém o poder e quem a ele se sujeita, que estes autores reflectem. Pelo contrário, incidem tanto a sua crítica nas dinâmicas de produção como nas de consumo; tanto na crítica da política como na crítica às artes. Em síntese, Debord e Vaneigem criticam a letargia criativa induzida na sociedade de consumo pela sua sujeição às regras de mercado global, à economia que nos submergiu. Vaneigem fala concretamente da diferença imposta entre viver e sobreviver – sendo este sobreviver fruto da necessidade de capital que permita a vida. E fala das revoluções assimiladas pelo mercado que nos propõe uma boa vida para vender um iogurte, um aspecto charmoso pela compra de um perfume, isto é, da subversão a que a própria necessidade de mudança inerente ao ser humano foi sujeita.
As necessidades pré-fabricadas engendram a necessidade unitária de um novo estilo de vida. A arte, essa economia da experiência vivida, foi absorvida pelo mercado. Os desejos e os sonhos trabalham para o marketing.
Ora, essas são as condições atuais: a economia não pára de fazer consumir mais, e consumir sem trégua é mudar de ilusão a um ritmo acelerado que pouco a pouco dissolve a ilusão da mudança. Reencontramo-nos sós, sem termos mudado, congelados no vazio produzido por uma enxurrada de gadgets, de Volkswagen e de pocket books.
Já Debord debruça-se sobre a contemplação e a forma como o jogo de imagens imposto em nosso redor nos torna sujeitos passivos da nossa própria vida. À data, a sua crítica poder-se-ia entender sobretudo olhando ao fenómeno que representara a televisão, com toda a carga de passividade que caracteriza o seu espectador. Se quisermos relacioná-lo com outros autores até para facilitar o seu enquadramento histórico, podemos entender Debord como uma versão pessimista e crítica de Marshall McLuhan; de resto, Debord chegou mesmo a ser abertamente crítico da visão do canadiano apesar de concordarem no ponto inicial: o ponto transformador das tecnologias de comunicação. McLuhan acreditava que a “aldeia global” seria caracterizada por uma sociedade aberta e participativa, já para Debord essa globalização pelos meios de comunicação seria apenas o triunfo do capitalismo global e da sua capacidade de vigilância (por exemplo: Facebook). Debord considerava McLuhan o primeiro apologista do espéctaculo e alertava para a sua leitura de que “a pressão dos mass media conduz sobretudo a acções irracionais” a que McLuhan terá aderido em 1976, conforme escreve Debord no livro Comentários à Sociedade do Espectáculo.
Antes, o pensador de Toronto tinha passado várias décadas a maravilhar-se com as múltiplas liberdades que produzia esta «aldeia planetária», tão instantaneamente acessível a todos sem fadiga. As aldeias, contrariamente às cidades, foram sempre dominadas pelo conformismo, o isolamento, a vigilância mesquinha, o aborrecimento, os mexericos sempre repetidos sobre as mesmas famílias. E assim se apresenta daqui em diante a vulgaridade do planeta espectacular, onde já não é mais possível distinguir a dinastia dos Grimaldi-Mónaco, ou dos Bourbons-Franco, daquela que tinha substituído os Stuart.
A Sociedade do Espetáculo de Guy Debord: um livro indispensável que podes descarregar aqui
Debord e Vaneigem são como duas faces da mesma moeda. As suas críticas convergem de um modo evidente mas a forma como lá chegam e como as expõe é substancialmente diferente. Guy Debord é mais directo, assertivo e acutilante, revestindo as suas palavras de uma espécie de misantropia que se releva em todo o seu esplendor nas obras sucedâneas a A Sociedade do Espetáculo. Já Vaneigem é mais polido, humano, alcançando a espaços um difícil equilíbrio poético entre força e subtileza – a sua escrita parece menos uma análise e mais uma proposta, inclusiva e esperançosa. Numa entrevista dada em 2009 a Obrist para o jornal e-flux, é Vaneigem quem assume as divergências desde a essência entre estes dois autores que acabaram de costas voltadas.
“Nós os dois tínhamos temperamentos muito diferentes, mas concordámos durante um período de quase dez anos na necessidade de acabar com a sociedade de consumo e de fundar uma nova sociedade com base no princípio da auto-gestão onde a vida sucede à sobrevivência e à angústia existencial que essa gera.”
A Internacional Situacionista ruíra com o cessar da revolução de 68. É nesse momento, e na última convenção situacionista, em Veneza, que se dá a resignação e dispersão do grupo desiludido com a ideia de que eles próprios, enquanto movimento, acabariam por ser encaixados no puzzle cultural de que se destacavam em rejeição radical. Um momento simbólico.
52 anos volvidos é notório o falhanço da sua revolução que à distância parecia até previsível pelo teor utópico e a crença numa espontaneidade construtiva. Maio acabou rápido com muitas acusações de traição à revolução trocadas pelos seus intervenientes e foi ficando para a história ao acesso das gerações mais novas apenas como um conjunto de reflexos do dia em que hippies e yuppies saíram à rua com slogans em letras garrafais e roupas esquisitas, que se tornaram uma estética que hoje se replica ocasionalmente em jeito de disfarce, ou argumento de intelectuais radicais. Se esta é a verdade à superfície, no senso comum, que reina na percepção generalizada, uma outra coisa é certa, os livros de Debord e Vaneigem continuam a servir de apelo a uma emancipação do homem, e mesmo que não concordemos com eles e a sua formulação da vida, ajudam-nos a perceber que existe uma dimensão do Homem ainda por povoar e que nos cabe, a todos enquanto humanidade, ir pensando sistematicamente até perceber como lhe aceder.