Chama-se Bode Inspiratório (ou Escape Goat) e é um projecto literário que reuniu 46 escritores de língua portuguesa, 46 artistas plásticos e 46 tradutores na criação e divulgação de um folhetim online, com histórias que documentam o período de confinamento e isolamento social.
Começou em Março, em vésperas da declaração de Estado de Emergência em Portugal, pela mão da escritora e ex-jornalista Ana Margarida de Carvalho, que contou em entrevista ao Shifter que o projecto partiu “de uma grande angústia. Da indefinição sobre o que fazer do meu espaço e tempo, face à pandemia sem fim à vista que tínhamos pela frente.“
Partiu da ideia tremenda que se insinuou sub-repticiamente de isolamento social e de confinamento e agora se instalou com estrondo nas nossas existências.
Ana Margarida confessa que pensou que, dadas as circunstâncias, podia ter escolhido dedicar-se ao seu romance, ao seu próprio projecto, ao seu processo de escrita que “é, por natureza, solitário, recolhido e individual”, mas pensou que poderia usar o seu tempo justamente ao contrário: “agora que estávamos forçados por lei e por razões profilácticas a estarmos sozinhos é que fazia mais sentido fazer algo colectivo.”
Daí nasceu a ideia de criar um folhetim à antiga, aberto a todos os escritores que nele quisessem participar, “quebrando barreiras através da literatura”. “Fiz então um convite aberto a escritores, a que cada um trouxesse outros para um folhetim do século XIX escrito numa plataforma do século XXI, uma página do Facebook.”
A ideia inicial era ter 40 participantes para se fazer “uma quarentena de escritores”, mas Ana Margarida conta que a adesão foi tal que as inscrições fecharam nos 46, “o que calhou bem, já que celebrávamos os 46 anos do 25 de Abril.”
Seguindo o formato original de um folhetim, o objectivo era publicar um capítulo por dia, todos os dias, em que um escritor começa a escrever a partir do que os outros escreveram anteriormente. A originalidade do Bode Inspiratório focava-se na diversidade de escritores participantes, autores de várias gerações, estilos, géneros, com diferentes abordagens e pontos de vista, da poesia à prosa e literatura infantil. A liberdade para que cada um seguisse o caminho que preferia foi total, pedindo-se apenas que fossem cumpridas as regras implícitas de um folhetim: que o escritor pegasse nas personagens e narrativas do capítulo que lhe precedeu e as conduzisse através do seu, deixando algo em suspenso para o escritor seguinte.
A única coisa que ficou definida é que o folhetim começaria com Mário de Carvalho e acabaria com Luísa Costa Gomes, e cada um teria apenas 24 horas ou menos, para ler, e escrever e entregar o seu capítulo de cerca de três mil caracteres.
Entre os escritores que participaram estão nomes como Inês Pedrosa, Afonso Cruz, Gonçalo M. Tavares, Valério Romão, Afonso Reis Cabral, Patrícia Reis e Helena Vasconcelos. Participam ainda, entre outros, Gabriela Ruivo Trindade, Adélia Carvalho, José Fanha, Domingos Lobo, Licínia Quitério, Tiago Salazar, Ricardo Fonseca Mota, Álvaro Laborinho Lúcio, Rita Ferro e Luís Castro Mendes.
O desafio foi também lançado a 46 artistas plásticos, para que produzissem uma obra inédita para ocupar o espaço da fotografia de capa de cada um dos capítulos. “Cada um foi individualmente convidado a participar por Cristina Terra da Motta (…) que juntou nomes consagrados das nossas artes plásticas, como Pedro Cabrita Reis, Julião Sarmento, Manuel Baptista, Fernanda Fragateiro, Ana Vidigal e jovens artistas ainda em fase inicial da carreira.”
https://www.facebook.com/notes/bodeinspiratorio/117613113200218/
Cada novo capítulo do folhetim saía, como referido, na página de Facebook do projecto, mas a sua divulgação foi sendo acompanhada das entrevistas e leituras de Paula Perfeito, em parceria com o site Entre | Vistas; das leituras em vídeo de Edite Queiroz, destinadas à página de Instagram do Bode Inspiratório, coordenada por Sofia Moitinho de Almeida; das leituras dos próprios escritores, para um separador dedicado ao projecto no site da RTP Palco, com a coordenação de Ana Cristina Silva.
Foi esta equipa de seis elementos, juntamente com Ana Margarida de Carvalho e Cristina Terra da Motta, que coordenou e criou conteúdos para o projecto, durante os meses de Março, Abril e Maio, e é nela que, segundo a criadora do Bode Inspiratório, reside o segredo do sucesso. “O projecto teve uma repercussão muito intensa e rápida que se deve a dois factores: o ineditismo do Bode Inspiratório enquanto projecto que resulta da união de quase 100 pessoas, e o profissionalismo com que uma equipa sem apoios conseguiu manter o compromisso com o leitor e com o público.”
“Todos os dias, sem pausas, sem fins de semana, infalivelmente ao meio dia, apresentar um novo capítulo e uma nova obra.“
Desde cedo, o projecto foi foco de muita atenção da comunicação social, nacional e internacional; essa internacionalização materializou-se em concreto quando ao grupo de escritores e artistas se associaram, também em regime de voluntariado, tradutores de língua espanhola, francesa, italiana e holandesa. O impulso ainda maior surgiu quando ao projecto também se juntou um grupo de tradutores de língua inglesa, coordenado por Victor Meadowcroft que, em colaboração com a escritora, também participante do folhetim, Gabriela Ruivo Trindade, foi criada uma página gémea do projecto em Inglês, Escape Goat. “Tornou-se uma página poliglota que ganhou também o interesse de meios de comunicação como o The Guardian, BBC, Courrier Internacional, La Vanguardia, e muitos, muitos outros, um pouco por todo o mundo…”
“De facto, tínhamos esse desejo, de que a literatura portuguesa, já de si confinada apesar dos 450 milhões de falantes de português, atravessasse as habituais fronteiras que nos sufocam um pouco. E este folhetim funciona como uma espécie de catálogo da literatura e arte portuguesa contemporânea, também para leitores de outros países conhecerem o que vai sendo feito por cá.”
O último capítulo de O Bode Inspiratório, “O Elogio da Caverna”, de Luísa Costa Gomes, saiu nas plataformas a 5 de maio, mas o projecto está longe de estar parado. Com o crescente apoio de tradutores que querem ajudar a levar as histórias para outros mundos, a página de Facebook é regularmente actualizada com novas traduções, e com outras rubricas que nasceram para que, segundo Ana Margarida, “nunca a página se aviltasse por outras lógicas que não as nossas, que era uma espécie de afirmação de que a cultura não poderia parar e os nossos canais com os leitores e o público interessado em arte manter-se-iam intactos.”
Assim, ao longo de quase três meses, muitas outras artes e disciplinas se foram entrecruzando, desde o Cartoon de António Jorge Gonçalves, a ilustração de Sónia Pais, a leitura dramatizada da actriz Ana Sofia Paiva, o auto-retrato de Miguel Navas, a música com composição inédita de Filipe Raposo, e até uma canção composta para o Bode Inspiratório por Pedro da Silva Martins, com letra, também ela inédita, de Luísa Ducla Soares, com videoclip produzido e dançado pelos bailarinos Miguel Duarte e Rachel Mcnamee.
“O Bode Inspiratório tornou-se um acto de resistência cultural contra estes tempos de pandemia.”
A pandemia que vivemos e levou à criação do projecto não tem fim anunciado, mas o futuro previsto para o Bode Inspiratório é risonho. Ana Margarida avança que “já está a ser preparada uma edição bilingue, português-inglês, impressa, em livro” bem como um catálogo artístico das obras inéditas produzidas para o projecto. “Gostaríamos ainda, talvez em versão e-book, de uma edição que congregasse todas as traduções e um audiobook porque de todos estes capítulos foram sendo feitos áudios.”
Este encontro de arte e literatura no digital não deixa de ser sinónimo dos tempos que vivemos, e reminescente do sentimento, cada vez mais nostálgico, de segurar uma história nas mãos, num livro. Sobre o replicar desse sentimento na tecnologia, Ana Margarida diz-nos, como Lavoisier, que nada se perde, tudo se transforma:“Tudo muda para continuar tudo outra vez na mesma. O digital traz-nos múltiplas capacidades comunicativas e de acesso quase ilimitado ao conhecimento, já sem falar de coisas mais além como a realidade virtual… Trata-se sem dúvida de uma nova era, que nos trouxe um enriquecimento e uma força global poderosíssimos. Mas até agora, já ouvimos falar do fim do vinil, do fim do VHS, do fim das cassetes, e nada, nem o e-book consegue destronar a plataforma livro, que continua a mais prática e funcional, a que mais empatia consegue criar com o leitor, depois de abandonarmos as tabuinhas, as placas de barro ou o rolo do papiro. O livro em papel foi de facto uma invenção extraordinária e, até hoje, imbatível.”
Enquanto esperamos pela edição extraordinária e imbatívelmente impressa do Bode Inspiratório, podemos consultar as bonitas histórias do que ia na cabeça de alguns dos mais aclamados escritores em língua portuguesa e artistas, que se juntaram durante este período tão invulgar e insólito, para nos trazerem o seu contributo literário e artístico.
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