Esta sexta-feira, 24 de abril, o friso cronológico da História marca os 105 anos desde o início dos primeiros massacres do genocídio arménio. O então Império Otomano começou por deportar e executar vários intelectuais, o que gradualmente levou ao assassinato de cerca de 1.5 milhões de arménios, assim como gregos, até 1923. O acontecimento ficou conhecido como o primeiro genocídio do século XX.
Por todo o mundo, vários países reconhecem hoje o genocídio como tal. Os EUA foram dos últimos países a fazê-lo no ano passado e, em 2016, o Papa Francisco usou a palavra “genocídio” numa visita à Arménia, povoada maioritariamente por cristãos. Até hoje, a Turquia recusa a palavra para descrever os assassinatos.
Em entrevista ao Shifter, Vahé Mkhitarian, presidente da Associação de Amizade Portugal-Arménia, recua na História mundial: explica as mortes perpetradas pela atual Turquia, reflete sobre a independência face à URSS no final do século XX e aborda as políticas que marcam a atual agenda do país, uma vez que as relações com alguns dos seus vizinhos continuam ainda problemáticas. Para o futuro, considerando os laços históricos, culturais e económicos com a Europa, Mkhitarian acredita que é possível que a Arménia venha a equacionar uma integração na União Europeia, mas continuará a trabalhar na cooperação benéfica com a Rússia e com os países vizinhos. Além disso, considera ainda que um entendimento entre os EUA e o Irão seria muito vantajoso para o desenvolvimento económico do país.
Esta sexta-feira marca 105 anos desde o início do genocídio de vários cidadãos arménios pelo Império Otomano. O que é que a História nos diz sobre este acontecimento?
Eu queria começar com a definição da palavra “genocídio”. De acordo com o Tribunal de Nuremberga, está definido que o genocídio é um crime contra a Humanidade. Esse crime contra a Humanidade pode ser assassinato, extermínio, escravidão e deportação, assim como outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, normalmente partindo de uma maioria em relação a uma minoria. Portanto, essa é a determinação da palavra genocídio. Cada caso dessa barbaridade tem as suas causas. Geralmente, eu defino que são três causas grandes: religião, geopolítica e causa económica.
Para responder à sua questão, eu quero fazer um percurso na História. Viajamos até ao fim do século XIX, quando a Turquia Otomana perdeu na guerra dos Balcãs e contra a Rússia. Aí, inicia-se um declínio económico e moral dos vencidos. Essas guerras resultaram na perda de quase cerca de 30% do território do Império Otomano e até 20% de perda da população. Muitos turcos fugiram também dos territórios europeus onde viviam: Balcãs, Itália, Áustria… Depois dessa derrota, entraram no território da Turquia Otomana. Na altura, a Turquia tinha uma população de cerca de 20 milhões e 10% da população era arménia. E, então, descobriram que o país tinha uma minoria muito rica, muito avançada culturalmente e muito avançada nas suas relações com a Europa. Além disso, os arménios são cristãos e os turcos muçulmanos. Com esse declínio económico e moral, começaram as primeiras purgas, porque se falamos do genocídio de 1915, temos de referir que os primeiros massacres começaram desde 1895, quando só numa cidade foram mortos 50 mil arménios pelos turcos. Portanto, essa questão de religião, geopolítica e economia foi a primeira causa do que aconteceu em 1915.
Isto prende-se com uma degradação do império na viragem do século XX e no ressurgimento do nacionalismo turco. No âmbito desse ressurgimento, os arménios passaram a ser considerados inimigos do Estado e eram vistos como uma ameaça nacional. Porque é que é feriado na Arménia no dia 24 de abril? Porque essa é a data consagrada como o dia em que se deu o primeiro passo no processo de exterminação sistemático dos arménios pelo Império Otomano e, posteriormente, pela República da Turquia. Começou no dia 24, quando o ministro do Interior Otomano emitiu ordem de prisão para mais de duas centenas de intelectuais arménios da Constantinopla. Foram deportados para campos de detenção, perto de Ancara, e a maior parte deles acabou por ser executada. Foi apenas a primeira medida repressiva e logo se seguiram outras. A deportação, extermínio sistemático, nacionalização de bens, venda de mulheres e crianças para os curdos e árabes aconteceu entre 1915 até 1923. Nesse período, a nação arménia perdeu mais de 1.5 milhões de cidadãos. Esse dia ficou, por isso, conhecido para nós como “Domingo Vermelho” e há muitos anos que é feriado nacional na Arménia como Dia da Memória das Vítimas do Genocídio. Essa é a história muito curta do acontecimento.
Já aqui falou da definição da palavra “genocídio” e isso leva-nos à próxima questão. Existem vários países do mundo que ainda não reconheceram o acontecimento como genocídio. Quais são os motivos, na sua opinião, que inibem este reconhecimento por parte da comunidade internacional?
Bom, é uma pergunta que nós, arménios, sempre fizemos. Cada um tem as suas questões. Se perguntar, por exemplo, porque é que Israel não reconhece o primeiro genocídio do século XX, eu tenho a minha perspetiva sobre isso. A Turquia é o único país vizinho muçulmano com quem mantêm boas relações, então não querem estragar essas mesmas relações. Entramos de novo na questão da geopolítica e da economia. Por exemplo, os arménios tentaram durante décadas e os EUA finalmente reconheceram o genocídio. Só no ano passado, quando os EUA e a Turquia chegaram quase à ruptura, é que o Senado e o Congresso reconheceram esse facto. E esse reconhecimento é histórico. Outro fator importante é que, em 2015, o Bundestag [Parlamento alemão] não só reconheceu o facto, como também o condenou. Reconheceu os seus erros e envolvimento naquele massacre. A Turquia entrou na Primeira Guerra Mundial ao lado dos alemães e os alemães tiveram muito poder na Turquia e, por isso, fecharam os olhos. Podiam pelo menos ter mitigado a política de exterminação, mas não o fizeram. E eles tiveram muita informação específica porque os estrangeiros foram proibidos de entrar nas várias zonas do Império Otomano, nomeadamente no interior, onde aconteceram mais casos de genocídio do que na Constantinopla. A Constantinopla era uma cidade aberta à Europa e ao mundo e, por isso, os turcos não queriam fazer lá os atos de barbaridade. É a única cidade da Turquia onde os arménios mantêm as escolas, igrejas… Portanto, a declaração do Bundestag não era só o reconhecimento, mas também o mea culpa deles. Muitas nações já o reconheceram, o Vaticano, a União Europeia, França… O dia 24 de abril deste ano, como prometeu o presidente Macron, é um dia de comemoração, que entrou no calendário oficial do país e nós não vamos parar a nossa luta.
E em Portugal?
A nossa associação, Associação de Amizade Portugal-Arménia, começou a apresentar o caso de genocídio desde a sua criação, no início de 2017. Apresentámos o caso a todos os partidos do Parlamento português. Apresentámos também a situação atual e várias declarações de outros Parlamentos que já se pronunciaram sobre este caso. Então, no ano passado, a questão foi colocada na sessão plenária, a 26 de abril, e a votação foi positiva, contabilizando apenas quatro abstenções. Essa declaração foi um voto de pesar pelas vítimas do genocídio. Foi a primeira vez que o Parlamento português se pronunciou sobre esse facto e foi uma grande vitória para nós.
Voltando ao trajeto do país, a Arménia foi umas das 15 repúblicas soviéticas a tornar-se independente no início dos anos de 1990, aquando da queda da URSS. Era a república mais pequena, inclusive. Como é que foi essa transição para a independência?
Eu estava na Arménia nesse período e posso dizer que foi uma grande vitória da população. Eu lembro-me que foi uma alegria e toda a gente estava na rua. Nós começámos a construir o nosso Estado independente, que tínhamos perdido em 1920, quando a Arménia foi conquistada pelas tropas bolcheviques. Só que isto aconteceu dois anos depois de um terramoto devastador. Em alguns minutos, mais de 25 mil pessoas perderam a vida. Várias cidades e aldeias foram completamente destruídas. O mundo todo ajudou a Arménia e chegaram vários aviões com ajuda. E, logo a seguir, começou a guerra com o Azerbaijão. Portanto, aconteceu um grande terramoto, deu-se o desmantelamento da União Soviética com todos os laços económicos associados e, logo a seguir, a guerra na fronteira… A situação económica era terrível. Além disso, havia um gasoduto e um oleoduto que traziam o suplemento destas bases essenciais para a Arménia e que foram cortados pelos azerbaijanos. Assim, os arménios passaram alguns anos numa situação económica complicada.
Ainda bem que referiu o Azerbaijão. A Arménia mantém uma relação problemática com o país devido à região de Nagorno-Karabakh. Esta semana, os ministros das Relações Exteriores dos dois territórios tiveram um encontro em que concordaram que era necessário continuar as negociações de paz em relação à zona em disputa. Na sua perspetiva, qual será o desfecho deste conflito político?
Essa história é um marco trágico que aconteceu depois da conquista dos bolcheviques sobre a Arménia. Então, esse enclave, juntamente com outro mais a sul do país, fazia parte da Arménia. Por decisão de Estaline, esses enclaves foram retirados à Arménia e anexados ao território do Azerbaijão. Nos 60 anos seguintes, as duas nações viveram em paz, por assim dizer – não havia guerra, apenas conflitos menores. Mas depois da desintegração da URSS, foi organizado um referendo que resultou numa maioria absoluta arménia de Nagorno-Karabakh a querer a independência face ao Azerbaijão. Como a região nunca fez parte do Azerbaijão antes da criação da URSS, os arménios da Nagorno-Karabagh – ou Artsakh, como se chama a região na Arménia – declararam independência e apelaram à reunificação com a Arménia. E foi aí que começou o conflito, primeiro de uma forma mais ou menos pacífica, mas depois tornou-se gradualmente mais violenta. Morreram por volta de 30 mil pessoas nestes combates de ambos os lados. No final da guerra, em 1994, a Arménia já controlava não só o enclave, mas também uma extensão de 10% do território azerbaijano. Depois de perder o território, o então presidente do Azerbaijão pediu um cessar-fogo. Esse tratado foi assinado em maio de 1994, mediado pelo grupo do Minsk do OSCE [Organização para a Segurança e Cooperação na Europa]. Desde daí, o conflito está quase congelado. Mas houve sempre algumas quebras de cessar-fogo. A maior batalha aconteceu em 2016: foi uma tentativa do exército azerbaijano de reconquistar o território – que não conseguiu – e chamamos a esse acontecimento a Guerra dos Quatro Dias. Portanto, não sei se um dia uma solução vai ser encontrada, mas é muito importante que não seja aberto um novo conflito.
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Ao falar de fronteiras, temos de referir que a Arménia sofre com o Paquistão, que já disse publicamente que não reconhece a Arménia como um Estado legítimo. Isso tem a ver com a relação que o Paquistão mantém com o Azerbaijão?
Sim, naturalmente. Eles já referiram que estão do lado do Azerbaijão e, por isso, não reconhecem a Arménia. Aliás, acho que são o único país que não reconheceu o Estado independente da Arménia e, na altura, eu lembro-me que a Primeira-Ministra do Paquistão, Benazir Bhutto, disse que a Arménia era o osso na garganta muçulmana. Se olharmos para o mapa, percebemos que a Arménia é o último país da Europa onde acaba o cristianismo e começa o Islão.
Falando em localização, a Arménia está numa posição estratégica: é uma ponte entre a Europa e a Ásia. Considera que o país está a aproveitar a sua localização geográfica da melhor forma, nomeadamente em termos de relações internacionais e acordos económicos, por exemplo?
Isso é uma boa pergunta. E agradeço essa questão porque muitas pessoas consideram os pequenos territórios como países com menos possibilidades ou capacidade. No nosso caso, não é assim. A Arménia sempre foi, na sua história, um cruzamento não só de culturas e religiões, mas também de vias económicas. Sempre. E essa situação tornou-se importante depois da independência, mas continuam a existir alguns problemas com os vizinhos. Portanto, as duas fronteiras estão fechadas: com o Azerbaijão e com a Turquia. Já o conflito diplomático e económico entre o Irão e os EUA traz, naturalmente, algumas dificuldades para tornar a Arménia um país de movimento de bens, transportes… Nós estamos atentos a essa relação, entre o Irão e os EUA, e pensamos que um dia esse conflito vai acabar. Com uma abertura do Irão ao mundo, a importância da Arménia vai crescer estratosfericamente. Nós já estamos a construir uma autovia que se prepara para integrar a transportação dos bens do Mar Vermelho para o Mar Mediterrâneo. Nós vamos usufruir ao máximo dessa localização estratégica.
Queria aproveitar para dizer também que a Associação Amizade Portugal-Arménia, da qual sou fundador, começou um estudo novo no ano passado, e que vamos continuar este ano. Esse estudo chama-se “Estudo Geopolítico: Relação Arménia, Portugal e União Europeia”. Portanto, já temos esse estudo nas nossas mãos e foi preparado por uma universidade de referência em Portugal – não quero dizer o nome porque a proposta ainda não está fechada. Mas já temos várias entidades de apoio aqui de Portugal. Vamos tentar apresentar esse estudo a outros interessados quando a pandemia terminar. Serve para perceber a importância daquela região e criar laços de cooperação entre empresários dos dois países.
Para terminar, pensa que a Arménia veria de bom grado uma possível entrada da União Europeia (UE) no futuro ou é mais provável continuar a ser parceiro da Rússia?
Também é uma questão muito interessante. Então, a Arménia faz parte hoje da União Económica Euroasiática, com a Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão, tendo ainda cooperação privilegiada com o Irão e com a China. É uma união que reflete as relações históricas com os nossos vizinhos. Por outro lado, a Arménia é o único país da antiga União Soviética – à exceção dos países bálticos – que tem um estatuto beneficiado em cooperação com a União Europeia. Ou seja, de acordo com a sua integração no Sistema de Preferências Generalizadas (GSP+), a Arménia pode exportar para UE mais de seis mil artigos produzidos no país sem nenhumas taxas alfandegárias, ou quase zero. Nós estamos numa união económica com a Rússia, mas por outro lado temos muitas possibilidades de fazer parte também da União Europeia. Não posso dizer com certeza que um dia vamos fazer parte da UE, mas se os arménios acharem que seria mais frutuoso para o país e para os seus cidadãos, porque não?