Telescola: porquê no YouTube se existem plataformas portuguesas?

Telescola: porquê no YouTube se existem plataformas portuguesas?

23 Abril, 2020 /
Foto via Shifter

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Existem alternativas portuguesas aos gigantes norte-americanos que dominam a nossa internet.

Antes do Google, nasceu o SAPO. Estávamos a 4 de Setembro de 1995 e a Universidade de Aveiro colocava no ar um directório de sites portugueses com um motor de busca. O SAPO foi pioneiro e ao longo de, duas décadas e meia, aglutinou serviços como pesquisa, e-mail, blogues e vídeo. Hoje, sob alçada da Altice (por herança da PT), o SAPO já perdeu para a Google e outros gigantes tecnológicos esse fôlego enquanto plataforma digital, posicionando-se cada vez mais como um portal de informação, com uma ampla rede de parceiros na área da comunicação social.

Ainda assim, há partes do “velhinho” SAPO que permanecem nos dias que correm, como é o caso do SAPO Vídeos. Lançado em 2006, o SAPO Vídeos foi um serviço de partilha e streaming de vídeo que em tempos tentou ser uma alternativa ao YouTube. Qualquer pessoa podia criar uma conta, começar um canal e carregar conteúdos à semelhança do se podia fazer no concorrente norte-americano. Mas o SAPO Vídeos não conseguiu ganhar ao YouTube e foi reformulado; deixou de estar aberto ao público e tornou-se uma plataforma onde parcerios como o Canal Q ou a Renascença podem alojar o seu conteúdo de vídeo.

Esta introdução sobre o SAPO nada tem que ver com o facto de o Shifter pertencer à rede SAPO como parceiro, nem existiu do lado do SAPO qualquer indicação, influência ou sequer conhecimento sobre este artigo. O disclaimer é importante, até porque não queremos que a mensagem apareça distorcida: existem alternativas portuguesas aos gigantes norte-americanos que dominam a nossa internet. Porquê este assunto agora?

A Direcção-Geral de Educação (DGE) anunciou na semana passada o lançamento de cinco canais de YouTube, convidando professores do pré-escolar ao secundário a disponibilizar nesse meio aulas e outros conteúdos educativos. O projecto está incluindo na iniciativa #EstudoEmCasa, a “nova Telescola” que tem programação na RTP Memória (com recordes de audiência) e um site (com aplicações móveis) de suporte com a tecnologia da RTP Play. Os conteúdos para a “nova Telescola” resultam de um esforço de trabalho em contra-relógio entre o Ministério da Educação, a RTP e uma equipa de professores convidados. Mas o MInistério, através da DGE, quer alargar os conteúdos da Telescola com a ajuda voluntária de mais professores.

Num dos cinco canais de YouTube – cada um dedicado a um nível de escolaridariedade (Pré-Escolar, 1º Ciclo, 2º Ciclo, 3º Ciclo e Secundário) –, qualquer professor de qualquer escola está convidado a disponibilizar as suas aulas. A DGE irá receber os conteúdos dos professores, validá-los e “organizar esses materiais por anos de escolaridade e por temas para que todos – professores, crianças e alunos, famílias e encarregados de educação – as possam visionar” numa “das plataformas digitais de maior alcance a nível mundial”. Este trabalho é feito, ao nível de consultoria técnica, em parceria com a Thumb Media, agência que representa em território nacional alguns dos youtubers mais populares.

Os canais já contam com alguns conteúdos, especialmente da Khan Academy, que já estavam carregados para o YouTube e foram indexados através de playlists. Como o YouTube é bastante rico em conteúdo, estes canais da DGE podem servir como uma forma de fazer alguma curadoria do melhor que há naquela plataforma. Contudo, a iniciativa não deixa de ser motivo de escrutínio. E aqui fica claro o porquê de este artigo começar pelo SAPO. Apesar de ser uma entidade privada como o YouTube, o SAPO é gerido em Portugal, tem tecnologia portuguesa e engenheiros portugueses por detrás. Porque não aproveitar tudo isso, convidando os professores a disponibilizar as aulas no SAPO Vídeos em vez de no YouTube? Ou porque não fazê-lo no RTP Play, também português.

A opção pelos serviços da Google, em detrimento de uma solução nacional ou sequer europeia, acaba por se tornar paradoxal com espírito das leis que têm vindo a ser desenvolvidas e aprovadas – nomeadamente o Artigo 11 e 13 que visa requerer das plataformas o pagamento por direitos sobre partilha de conteúdos. O reforço dos seus conteúdos através de um braço do estado servirá, voluntaria ou involuntariamente para o seu reforço, e o seu aconselhamento a todos os jovens em frequência lectiva como um endosso do próprio estado à plataforma, para além de exclusivamente aos seus conteúdos. Se é pouco provável que alguém siga uma sugestão de algoritmo para assistir a uma aula de Estudo do Meio, em sentido inverso é de esperar que de uma aula de Matemática se salte sem hesitação para um vídeo do top musical ou para qualquer outro conteúdo fora da esfera de controlo.

O Google é o motor de busca mais utilizado, e detém o YouTube, a plataforma de vídeos mais popular do mundo e o Android, o sistema operativo da maioria dos telemóveis; o Facebook gere os serviços de chat mais conhecidos; a Amazon lidera no comércio electrónico; a Microsoft é dona do sistema operativo e das aplicações de produtividade mais populares; a Apple controla milhares de dispositivos electrónicos através de um ecossistema fechado de serviços. Enquanto por um lado europeus procuram criar alternativas a algumas dessas plataformas – detidas por empresas privadas norte-americanas multimilionárias –, por outro há iniciativas governamentais a dar-lhes força. Não existe uma valorização da oferta nacional ou europeia que permita a esses serviços desenvolverem-se, re-equilibrando o mercado. Aqui havia uma oportunidade para evitar este contrassenso.

Autor:
23 Abril, 2020

Jornalista no Shifter. Escreve sobre a transição das cidades e a digitalização da sociedade. Co-fundador do projecto. Twitter: @mruiandre

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