Rina Sawayama e a reinvenção da música pop

Rina Sawayama e a reinvenção da música pop

29 Abril, 2020 /
Frame do videoclipe de "STFU!" de Rina Sawayama

Índice do Artigo:

O último álbum da cantora e compositora, Sawayama, é uma frescura musical nos tempos que correm. É uma explosão de géneros, é um ultrapassar dos limites do que a música pop pode ser e acima de tudo é uma obra de arte brilhante.

Tem um dos álbuns pop mais aclamados do início de 2020 e tem vindo a deixar a sua marca com uma mistura de géneros e ousadia. Rina Sawayama é muito mais que uma simples artista e prova disso está no seu curto mas triunfal percurso dos últimos anos. 

Nasceu em Niigata, Japão, em 1990, e aos cinco anos de idade mudou-se para Londres com os seus pais. Frequentou uma escola japonesa onde aprendeu caligrafia e dança ao lado das disciplinas típicas do currículo. Aos 10 anos mudou-se para uma escola da Igreja de Inglaterra, à qual foi difícil integrar-se. Rina nem sempre teve uma vida fácil e o divórcio dos pais e as constantes discussões sobre dinheiro pioraram tudo. “Os meus pais estavam a discutir constantemente e usavam os filhos para conversar sobre isso” afirma Rina, “Era o clássico, ‘oh, a tua mãe é assim’, ‘Bem, o teu pai disse isto’”. 

A somar a isso veio a revelação de Rina sobre a sua pansexualidade, um assunto que ainda não tinha abordado com os pais e que criou uma relação de instabilidade que piorou quando decidiu dedicar-se a sério à música. No entanto, e mesmo com a música a entrar em cena, Rina não permitiu que isso a prejudicasse na escola e conquistou um lugar em Cambridge, onde estudou Psicologia, Sociologia e Política, ainda que com a sensação de ser “outsider”. Em 2013 surge o seu primeiro single, “Sleeping in Waking” e os anos seguintes levaram-na a trabalhar como artista independente, auto financiando a sua música com trabalhos de modelo e, a certo ponto, com três empregos em simultâneo. Seguiram-se singles independentes  — como o brilhante “Cherry”  — mas é em 2017 que Rina muda o jogo. 

Rina, o seu primeiro EP sai nesse ano, uma coleção de músicas que resultam de uma mistura entre R&B e a aquela sonoridade pop que Britney Spears cunhou nos seus primeiros trabalhos. O EP foca-se no estrangulamento tecnológico da sociedade, e cada música pode ser vista como um capítulo distinto que aborda o isolamento de relacionamentos e as consequências sociais da era cibernética. As influências, para além da própria Britney Spears, denotam uma certa nostalgia face às canções pop dos anos 2000, com um olho no presente e outro no futuro, algo que não é de estranhar visto que a educação musical de Rina ocorreu nessa época. 

Algures entre os seus dois discos, canalizou a sua personalidade pop e modernidade para a criação de um canal de YouTube ao qual chamou RINA TV e numa audiência, os “pixels”. A sua página de artista, na qual descarrega os seus videoclipes, funde-se assim com a sua vida privada e a sua persona youtuber, numa jogada que parece menos táctica do que orgânica – Rina é mais do que a sua música, um ícone.

https://www.instagram.com/p/B_fqiTKgcpF/

E se essa personalidade de culto se foi cultivando nas plataformas digitais com que se mostra ao mundo, como o YouTube ou o Instagram, musicalmente, Sawayama (2020) é a confirmação de que Rina é realmente tudo aquilo que parece ser.

Em Sawayama mostra-nos aquilo que descobriu com o EP de 2017, concentrando o R&B pop a que já nos habituou e juntando o seu tão característico lado de pop-princess. “A influência foi música de Tops, e os Tops no início dos anos 2000 eram caóticos”, afirma. “Tu tinhas nu-metal numa semana e pop bubble-gum na outra, depois era Pharrell e Timbaland a elevar o R&B na semana seguinte”. Sawayama é também o seu primeiro projeto após assinar contrato com a label Dirty Hit — a mesma da qual fazem parte Wolf Alice e The 1975.

A antecipação pelo álbum começou cedo, com o lançamento de STFU!”, uma das músicas mais ousadas do álbum. Até ao momento da sua concepção, o nu-metal que acompanhou Rina durante a infância (de Limp Bizkit a Deftones ou System of a Down) ainda não tinha surgido em música alguma sua. Mas numa certa manhã ouviu o seu produtor — o cantor e músico de glitch pop Clarence Clarity — a dilacerar um riff na sua guitarra elétrica repleto de cordas puxadas e com distorção ao máximo, que posteriormente se transfigurava num banho acústico e cheio de glitter.

Rina toma as rédeas desta dualidade sonora e direcciona-a liricamente para ventilar muitas das suas frustrações, motivada principalmente pela percepção distorcida que muitos têm da cultura japonesa, inevitavelmente regurgitada na direção dos cidadãos imigrantes ou seus descendentes. 

Toda esta atitude revoltada e badassery não se perdeu no single que seguiu “STFU!”. Em Comme des Garçons (Like The Boys)”, diz-se adeus à guitarra e mete-se na frente de ataque uma contagiante batida saltitona, tão densa e preenchida, capaz de nos arrancar o rabo da mais confortável cadeira para ir à festa electro-pop mais próxima. O tom provocador e cheio de atitude de Rina trata do resto, mas esta recusa-se a descurar as letras. Aqui em particular, há uma reivindicação do direito à confiança das mulheres, aquela que não é julgada nos homens, mas tende a ser alvo de capas de revista quando é assumida por uma mulher. 

Nota-se que Rina nunca descurou o seu passado académico, não deixando a leveza e diversão típicas do género pop interferir com as inúmeras ideias e irritações que lhe fervem na cabeça. Muito pelo contrário, a sua música assenta totalmente numa simples ideia: não há melhor veículo para espalhar uma mensagem positiva e construtiva do que através duma estética musical feita para nos entrar ouvido dentro, e de lá não sair mais — e é em Sawayama que a cantora transforma essa a ideia numa tese bem-formada.

Veja-se Dinasty”, a música que rebenta as portas do álbum, onde Rina enfrenta o peso que advém da sua herança familiar; não se focando especificamente na componente monetária, mas naquilo que se condicionava por influência do dinheiro: os valores culturais corrompidos, a moralidade rígida que se via distorcida, ambos conjugando-se num trauma hereditário que só agora se vê em condições de superar. Na sua voz reina a determinação e o foco, levantando voo para lá da estratosfera com a ajuda de inúmeras explosões de guitarras, drum machines e sintetizadores angelicais. Rina mostra a sua voz com um timbre diferente, um pouco mais grave e sonante que o arquétipo típico da artista pop, por vezes trazendo à memória o tom e versatilidade de Christina Aguilera. A juntar a isso, há a personalidade e estética forte e bem desenvolvida, que já vem de trabalhos anteriores e segue a mesma linha neste projecto. 

“Dynasty” é assim também a porta de entrada para o que acontece em Chosen Family”, outro momento alto do álbum. Numa dedicação comovente à comunidade queer, Rina combina instrumentais country com letras poéticas e comoventes, “We don’t need to share genes or a surname / You are… my chosen family”. Em entrevista à Pitchfork, Rina explicou o conceito por detrás da música: “Sim, esses são os meus melhores amigos. É realmente [uma música] sobre a minha família estranha, apenas apreciando as jornadas que viveram. Conheço pessoas que foram expulsas de casa porque ‘saíram do armário’, e a música é sobre aceitarmo-nos uns aos outros por serem eles próprios. Eu precisava de escrever com muita autenticidade sobre isto, porque tu podes muito bem aligeirar a coisa toda – curiosamente, quando mostrei esta música às pessoas, elas pensaram que era sobre casamento. A família escolhida é um conceito esquisito há muito tempo e parecia muito especial poder escrever sobre isso.“ 

Sawayama é por isso o seu trabalho mais pessoal até ao momento – a história da cantora britânica-japonesa e da sua relação familiar,  começando nas raízes dos seus avós e passando pelas histórias de quando o seu pai era criança até à ida ao Japão para “incomodar” a mãe com perguntas desconfortáveis, a mãe que, por mais irónico que seja, é uma das intervenientes na última música do álbum, “Snakeskin”

A verdade é que Rina não se quer encaixar como mais uma peça no puzzle do pop moderno, mas sim dar lugar a uma renovação do género, equilibrando referências com diferentes inovações, e juntando as influências pop e r&b das primeiras décadas de 2000 com uma mistura eclética de géneros mais modernos. Há uma incorporação de diferentes elementos em cada música do início ao fim e cada faixa complementa a outra, sobrepondo assim Sawayama a tantos lançamentos esquecíveis e genéricos. Revela aquilo que Dua Lipa também nos mostrou com Future Nostalgia: é possível estar nas tendências do mainstream sem nos rendermos aos clichês e à perda de identidade, sem medo de arriscar e experimentar novas sonoridades. 

Quem diz Dua Lipa diz também Grimes ou Poppy, mas neste caso, na forma como hibridizaram as diferenças entre pop e nu-metal, uma combinação rara e desafiadora que abriu caminho para aquilo que Rina criou neste álbum. Os momentos menos deslumbrantes do álbum acabam por ser poucos e vivem “ofuscados” pelo conceito do álbum como um todo — músicas como “Paradisin” ou “Fuck This World (Interlude)” tornam-se pontos menos notáveis da tracklist.

Sawayama é tudo isto e muito mais do que aquilo que vocês possam imaginar, é uma frescura musical nos tempos que correm, é uma explosão de géneros, é um ultrapassar dos limites do que a música pop pode ser e acima de tudo é uma obra de arte brilhante. O álbum brilha e faz jus a tudo o que a artista tem feito até agora, mostrando que no meio de tanta saturação musical da indústria pop há lugar e reconhecimento para uma artista deste calibre. 

Texto de: Duarte Cabral e Bernardo Pereira

Autor:
29 Abril, 2020

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