Hoje em dia, especialmente numa altura em que estamos confinados às nossas casas e dedicados ao tele-trabalho, grande parte das notícias chegam às redações pela via do e-mail. Assim, o trabalho de apuramento dos factos que muitas vezes se fazia por recolha in vivo de declarações é trocado pela atenção com que se lêem os e-mails e os pequenos pormenores que os compõem. Esse exercício é de uma importância extrema, especialmente no dia das mentiras.
Hoje, pelas 11h41, chegou ao e-mail do Shifter, como de outros órgãos de comunicação social, uma mensagem com o título “MIH – Nota à Comunicação Social” e um PDF anexado em que, alegadamente, o Governo dava conta do cancelamento do projecto do Aeroporto do Montijo, bem como de qualquer projecto de expansão do Aeroporto da Portela.
Depois de ler o e-mail, abrir o PDF em anexo, e ficar estupefacto com a notícia hipotética dediquei-me a procurar algo que pudesse soar estranho. Não foi difícil. Ao olhar para o remetente do e-mail percebi facilmente que não se tratava de uma conta oficial do Governo. O endereço mih.gov.pt@gmail.com não deixa dúvidas de uma tentativa de usurpação da identidade do ministério na replicação do domínio .gov.pt feita por alguém externo.
Face a esta perigosa notícia resolvi correr ao Twitter e deixar uma mensagem avisando os jornalistas de que este e-mail estava em circulação. Não foi preciso mais do que enviar o tweet e esperar que a página actualizasse para me confrontar com notícias publicadas sobre o tema citando o referido comunicado e sem confrontação com outras fontes.
Amigos jornas: https://t.co/ml3Sy2wlOm.pt@gmail.com este e-mail tá-se a fazer passar pelo ministério. Thx bye.
— Jgsribeiro (@joaogsr) April 1, 2020
As notícias, no Jornal de Notícias, Correio da Manhã, Revista Sábado, TVI24 e Sic Notícias, citam o comunicado sem questionar nem as afirmações mais surpreendentes, como a referência a uma alteração estratégica do Governo baseada na perceção da solidariedade na sociedade civil. De resto, a mesma notícia chegou à Agência Lusa que fez o confronto com as fontes oficiais, ligando para o Ministério das Infraestruturas e Habitação que prontamente negou a notícia.
O e-mail é falso, o endereço não é o oficial e já houve colegas a ligar para o Ministério e negaram tudo. É uma "brincadeira" de 1 de abril… infeliz. Mas que testa a nossa verificação das fontes (algo que a Lusa estranhou e não publicou)
— Raquel Lopes (@rachellopezquel) April 1, 2020
Contudo, este caso mostra como a nossa relação com as notícias está fortemente subvertida. A pressa da publicação leva não só a uma inexistência de dupla confirmação de factos — mesmo em anúncios tão determinantes como este — como também a uma muito pobre confirmação dos elementos básicos de um e-mail, nomeadamente o remetente. Se é verdade que o e-mail está minimamente bem construído, isso não deve servir de atenuante numa notícia deste contexto.
Todos os profissionais erram, é facto, e nós mesmos já errámos antes confiando em traduções ou afirmações de outros media que não se revelaram inteiramente verdade. Ainda assim, é dever de cada um desenvolver critérios que os tornem impermeáveis a este tipo de estratégias, sobretudo quando se citam decisões governamentais de tão elevado impacto.
Actualização 12:52: Entretanto no site do Governo português já se pode encontrar um comunicado reiterando a falsidade das informações veiculadas no e-mail.
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