O ar parece estar diferente. Relatos de todo o país descrevem-no como mais limpo, mais leve. Respira-se melhor, dizem. O Covid-19 tomou o mundo de assalto, mudou a vida nos grandes centro urbanos, tornou-nos caseiros, colocou a economia em pausa e fez descer bruscamente os níveis de poluição. Perante isto surge a questão sobre se partes desta realidade não poderiam fazer parte do normal.
A Avenida da Liberdade, a mais poluída de Lisboa, registou os níveis de poluição mais baixos deste século. De acordo com dados compilados pela associação ambientalista ZERO, a concentração média de dióxido de azoto (NO2) naquela artéria baixou significativamente desde que foi declarado o estado de alerta (11 de Março) e as pessoas foram incentivadas a permanecer em casa. No espaço temporal entre 16 de Março e 9 de Abril (considerando apenas os dias úteis), registou-se o valor mais baixo do século: 25,9 mg/m3. Em média, a concentração de NO2 na Avenida da Liberdade em 2019 foi de 54,6 mgm3, bem acima do valor-limite anual previsto na legislação de 40 mg/m3.
A libertação e concentração no ar de dióxido de azoto é consequência directa da actividade humana, nomeadamente da circulação de veículos, mas também de processos industriais. O NO2 é um indicador comum nas análises dos níveis de poluição e, por estes dias, do abrandamento económico. A Avenida da Liberdade, em Lisboa, não é o único foco de poluição da cidade e dados recolhidos pelo AIR Centre, que tem sede nos Açores, dão uma perspectiva mais ampla da redução de dióxido de azoto (NO2) na capital e no país, à medida que o estado de alerta e de emergência foi posto em prática. Uma nota do Ministério da Ciência, Tecnologia e do Ensino Superior detalha que as reduções mais significativas foram em Lisboa e no Porto; em alguns pontos destas cidades, o NO2 diminuiu 80% e 60%, respectivamente.
O cenário é generalizado pela Europa. De acordo com a Agência Europeia do Ambiente (EEA), registou-se uma quebra grande na poluição fruto da diminuição do tráfico nas cidades. Olhando para informação recolhida entre 16 e 22 de Março, a EEA refere que em Lisboa a concentração média de NO2 baixou 40% de uma semana para a outra; em Madrid essa quebra foi de 56% e em Barcelona de 40%. Em Itália, o cenário foi idêntico.
Aqui é possível acompanhar a evolução dos níveis de poluição em várias cidades europeias a partir das mais de três mil postos de monitorização da EEA. O The Guardian mostra imagens de de Delhi, Bangkok, São Paulo, Bogotá e Beijing, onde sem poluição se passou a ver o que antes não se via. A Reuters tem gráficos interessantes. E por todo o lado surgem notícias sobre, sem poluição e sem população humana, animais começarem a tomar conta de algumas áreas urbanas.
Concentrações elevadas de dióxido de azoto são um perigo do ponto de vista da saúde pública. O NO2, juntamente com outros poluentes que estão no ar que respiramos nas nossas cidades, podem provocar problemas graves de saúde ao nível respiratório. Em 2016, contabilizaram-se 412 mil mortes prematuras devido à poluição só na Europa; à data deste artigo, esse valor corresponde a metade das pessoas que morreram com Covid-19 à escala mundial. Um estudo recente relaciona as mortes com Covid-19 com a poluição atmosférica e conclui: pessoas em áreas poluídas têm muito mais probabilidade de morrer de coronavírus do que aquelas que vivem em áreas mais limpas, e que mesmo uma ligeira redução na qualidade do ar pode salvar centenas de vidas. Não é nada de novo: no surto de gripe de 1918, a poluição terá tido também um impacto negativo, com muito mais pessoas a morreram nas cidades mais poluídas do que nas áreas menos poluídas.
O Covid-19 abrandou a poluição, porque forçou a economia a parar. O mundo muito provavelmente não vai ficar assim, mas, como coloca Paul Monks, um professor especialista em poluição atmosférica da Universidade de Leicester, em entrevista ao The Guardian: “estamos, inadvertidamente, perante a maior experiência em termos de escala alguma vez vista”. “Estaremos a ver o que poderá ser o futuro se mudarmos para uma economia de baixo carbono? Não é para denegrir as perdas de vida, mas isto pode dar-nos alguma esperança em relação a algo terrível. Para ver que pode ser alcançado”, acrescentou aquele especialista.
A emissão de gases poluentes tem vindo a aumentar “dramaticamente” desde 1900 com 2019 a ter registado um novo recorde, reporta o Washington Post; e, tal como assinala o mesmo jornal com base em dados do Global Carbon Project, existiram outros períodos na história em que a poluição também diminuiu. As grandes guerras, pandemias como a de 1918, contracções económicas como a Grande Depressão de 1929 e eventos políticos de larga escala estiveram na origem dessas quebras com um factor em comum: as emissões voltaram a subir mal o clima político-social estabilizou.
Há, contudo, uma diferença para esta pandemia; surge num ano em que as alterações climáticas, mais que nunca, estão na agenda política de todo o mundo. Depois de termos visto Greta Thunberg a questionar os líderes mundiais e a inspirar milhares de estudantes a sair à rua. Surge perante uma consciencialização colectiva para adoptar estilos de vida de baixo impacto, para reciclar ou para usar formas de mobilidade mais sustentáveis como o comboio em detrimento do avião, ou os transportes públicos e a bicicleta em vez do carro.
Tudo isto podia chegar para nos manter optimistas, não fosse a história e a lógica da economia mostrar que o mais provável é que quando esta pandemia passar e a economia voltar ao activo, as emissões voltem aos níveis normais. Afinal, o combate à poluição requer políticas ambiciosas e investimentos a longo prazo; não se faz do dia para a noite, muito menos é expectável que aconteça em plena crise financeira como aquela que se avizinha.
A publicação Technology Review do MIT fez uma lista de possíveis más notícias para o ambiente, consequência do Covid-19. Entre elas, está a descida do preço do petróleo para mínimos históricos nas últimas semanas pode encarecer os veículos eléctricos; dificuldades que empresas poderão ter no financiamento de projectos solares, eólicos, de baterias ou semelhantes; a China que, enquanto principal produtor de painéis solares, turbinas eólicas e baterias de lítio, pode ver restrições no acesso ao comércio externo; os excessos de produção que não foram escoados e o seu destino, ou uma crise económica que poderá suspender preocupações com as alterações climáticas.
A China considera atrasar as quotas em relação à adopção de carros eléctricos e à emissão de gases para privilegiar a recuperação económica. Nos Estados Unidos, Trump quer fazer o mesmo. E, no meio da urgência de responder ao Covid-19, já vimos restrições ao plástico a serem levantadas, preocupações com a reciclagem a serem suspensas e uma adopção de materiais descartáveis, não só com a encomenda de refeições take-away em resultado do fecho da restauração, mas também no contexto hospitalar. Os hospitais estão a produzir muitos mais resíduos que o habitual que têm de ser incinerados, mas a infra-estrutura existente não está a suficiente para a procura. Já as autoridades de saúde estão a aconselhar o uso de luvas, máscaras e lenços descartáveis que devem ser colocados no lixo comum e não na reciclagem.
No caminho em direcção ao pós-pandemia, é fulcral estarmos atentos às políticas ambientais que se seguirão, escrutinando eventuais e previsíveis atenuações das medidas já previstas e ponderando mudar dinâmicas globais. A poluição mata milhões de pessoas por todo o mundo, provoca problemas respiratórios graves e torna pandemias como a do Covid-19 mais difíceis de combater. E a sua solução só pode passar, como este momento mostra, por uma acção global e coordenada.
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