As ruas parecem mais desertas. Fico mais tranquilo, vejo uma resposta ao apelo das instituições de saúde, que se têm debatido, incessantemente, por combater a crise vigente. Não deixo de me sentir, porém, inquieto. Pelo que se avizinha. Os males de uma pandemia têm muitas faces. Não descuremos a variedade de danos que o SARS-Cov-2 pode causar, dos mais diretos, aos mais obscuros. Aqueles que, aproveitando o esforço hercúleo do SNS, que se reorganiza a uma velocidade contrarrelógio, se instalam por entre as sombras. Podemos falar de patologias orgânicas ou recessão económica. Hoje, inquieto-me pelo estado da saúde mental. Se o isolamento social e as quarentenas são inquestionavelmente eficazes na contenção e mitigação, são também uma ameaça à robustez do pensamento, à resiliência do estado de espírito.
Numa das minhas incursões pela literatura, que atualiza com rigor o conhecimento da infeção, deparei-me com uma publicação da prestigiada revista Lancet, do presente ano, que reviu estudos que quiseram medir o impacto psicológico associado a um confinamento. Para esse efeito, compararam-se grupos sujeitos a quarentenas, com respetivos controlos, em epidemias anteriores (nomeadamente, as de 2009 e 2010, do vírus influenza H1N1). Inspiro-me nesses estudos, agora, para desenhar um guia de sobrevivência mental.
Para medir o impacto psicológico, a primeira ação exigida será reconhecer o desafio, para otimizar a sua gestão. É fulcral sermos realistas, mas não alarmistas. A contenção do pânico recai no uso ponderado das palavras. Importa, por exemplo, elencar que a maioria de nós se encontra em isolamento. Uma verdadeira quarenta implica uma restrição obrigatória dos contactos com um caso de COVID-19, para que se monitorize sintomas, e se evite a propagação da infeção. Estar em isolamento social, por seu lado, implica restringir saídas de casa ao estritamente necessário, de modo a criar um cordão que separe os indivíduos doentes dos saudáveis. Em ambos os casos, o burden psicológico pode ser devastador. Falamos de diversos distúrbios que podem emergir ou intensificar, desde alterações de humor, perturbações de ansiedade, do sono, de exaustão, obsessões e compulsões, ou sintomas de stress pós-traumático. Sim, estar isolado cria verdadeiros traumas. Parece básico. Mas o que surpreende são o quão insidiosos estes danos podem ser. Falamos, na maioria dos casos, num período de instalação de semanas a meses. Mas a mente ilude-se, pensa resistir ad eternum. E, afinal, as consequências podem ser sentidas somente ao fim de alguns anos. É o caso das perturbações de dependência alcoólica e de outras substâncias de abuso.
Depois de assumirmos o problema, é fulcral que retornemos à sua origem, identifiquemos as causas. Mais um exercício de aparente vulgaridade, mas de importância vital. Porque ficamos tristes, irritados, angustiados, apáticos? A perda da sensação de liberdade, essa força tatuada no nosso sistema identitário, é um candidato provável à resposta mais adequada. Mas não há respostas erradas. A perda de contacto com quem mais gostamos, de rendimentos e poder de compra, a gestão deficitária de expectativas, mediante o parco saber sobre a pandemia, e a própria monotonia, que suga a cor aos dias, contribuem para esta complexa equação.
Uma vez identificadas as causas, procuremos os triggers: os fatores que podem precipitar ou agravar os danos. As publicações analisadas são elucidativas, subdividindo estes preditores em 3 grupos: pré, durante e o pós-quarentena. Um estudo feito com criadores de cavalos, obrigados ao isolamento em contexto da epidemia do influenza equino — que se pode transmitir para o humano — identificou o sexo feminino, os 16-24 anos e o baixo nível educacional como fatores de risco pré-quarentena para impacto psicológico adverso. Contudo, salienta-se que estes preditores não reúnem consenso na restante literatura. Já a história prévia de doença mental tem sido um preditor pré-quarentena consistentemente associado a risco acrescido. Em termos de preditores durante a quarentena, a insuficiência de bens essenciais e de informação fidedigna foram associados ao aparecimento de perturbações ansiosas, 4-6 meses após o fim desta. E no pós-quarentena enfatiza-se o stress das finanças familiares: associados, uma vez mais, a distúrbios de raiva e ansiedade. E o peso do estigma. Voltemo-nos, a esse propósito, para os profissionais de saúde. Os estudos são peremptórios a identificá-los como um subgrupo de risco. Porque, findadas as quarentenas, os comportamentos de evicção (de espaços públicos e contacto humano) são um dos desafios mais preponderantes a solucionar. E os profissionais de saúde parecem ser os que mais sofrem disso. O medo de infetar, para além do razoável, e do que o outro possa pensar provocam taxas de abstenção no trabalho consideráveis (alguns estudos apontam para desistência laboral até 3 anos). Afinal, os gigantes também caem. Destroços da guerra, que se contabilizam por muito tempo.
Portanto, assumimos o desafio, identificámos causas, catalogámos fatores de agravamento. Refletimos, para chegarmos a uma estratégia, com a qual nos possamos comprometer. Estrategicamente, é fundamental validar o que sentimos: parece fácil, mas não o é. Implica um confronto com aquilo que desejaríamos esconder, num qualquer canto da nossa mente. Falar sobre o que nos vai na alma é simultaneamente um ato arrumação mental e de libertação do ruído que corrói. Importa, também, sermos os nossos agentes motivacionais: lembrarmo-nos das razões que nos levaram a afastar de família e amigos. Para que os possamos reencontrar em segurança. Seguidamente, as agravantes supracitadas devem ser aliviadas. Paremos, então, os açambarcamentos desnecessários e mobilizemos os esforços de pesquisa para as fontes realmente credíveis. E no final, não perpetuemos estigmas. Sejamos tolerantes com todos: os saudáveis, os infetados, os zelosos, os menos cuidados. Porque esta é uma doença do coletivo, que não olha a critérios para escolher o alvo.
Quando a tempestade passar, alguns de nós vão estar bem. Mas alguns outros nem tanto. Mas sei que não nos vamos esquecer deles. Em tempos de crise, a mente soergue-se. Porque quando for necessário, vamo-nos lembrar do que nos eleva enquanto humanos: a capacidade de estender a mão, e impactar o outro.