eSports em Portugal: grandes passos num longo caminho

eSports em Portugal: grandes passos num longo caminho

9 Abril, 2020 /
Moche XL / Filipe Cabral

Índice do Artigo:

Falámos com Tiago Justo, Vice-Presidente da Federação Portuguesa do Desporto Electrónico, com Gonçalo Pires, TFT Coach da EGNesports, e Renato Dimas, Head Coach da Havan Liberty sobre o desenvolvimento do panorama português.

Os eSports (Desportos Electrónicos) têm hoje um estatuto respeitável a nível mundial, com a sua profissionalização e sucesso económico como as suas maiores bandeiras, contudo em Portugal parece que só nos últimos anos é que começamos a assistir ao seu ressurgimento, com eventos como a Moche XL Esports a decorrer no Altice Arena, ou com a RTP a apostar na Twitch, uma plataforma de streaming de conteúdos de maioritariamente de gaming. Com o interesse de melhor perceber o desenvolvimento do panorama português dos eSports e dos aspectos mais técnicos da sua profissionalização, falámos com Tiago Justo, Vice-Presidente da Federação Portuguesa do Desporto Electrónico, com Gonçalo Pires, TFT Coach da EGNesports, e Renato Dimas, Head Coach da Havan Liberty sobre o desenvolvimento do panorama português.

Tiago Justo – Federação Portuguesa do Desporto Electrónico

Tiago Justo / DR

Os eSports em Portugal estão em visível crescimento, contudo o público não tem a inteira percepção do ponto de partida e de como alcançaram a dimensão actual. Até onde podemos datar o início do actual panorama Gaming e como podemos classificar o seu crescimento até hoje?

O panorama actual dos eSports em Portugal terá começado no inicio dos anos 2000 com o surgimento da XL Party, como um evento de uma dimensão mais “vistosa”. Até essa altura eram feitas competições em Lan Parties a nível regional e organizadas por grupos de amigos, salvo raras excepções. A XL com toda a certeza terá sido o evento impulsionador para o que hoje consideramos eSports à séria. 

Em relação ao crescimento do panorama, tem sido bastante positivo e sem dúvida tem ultrapassado expectativas e talvez esse sucesso advenha também da cada vez maior exposição devido aos prémios monetários exorbitantes de torneios internacionais, tais como os torneios de DOTA 2 que chamaram a atenção dos media e com isso mais investimento por parte das marcas a nível nacional.

Num passado não muito distante, os videojogos eram vistos como uma má influência para o desenvolvimento dos jovens. Sentem que este estigma ainda mantém a mesma força? Se não, a que se deve a mudança?

Esse estigma ainda persiste, no entanto, e cada vez mais, existem acções de formação, workshops e etc, que ajudam a desmistificar este tema. Um dos exemplos que ajudam a desmistificar este estigma é a Gamification nos locais de trabalho. Este estigma infelizmente irá sempre existir, pelo menos até que as novas gerações tomem os lugares de poder e de informação ao público geral, até lá instituições como a FEPODELE estão na vanguarda no combate a este estigma.

Actualmente temos grandes eventos em Portugal que certamente devem muito à participação de grandes players, como por exemplo a Worten, a Moche e a RTP. Quão importante foi esta intervenção para o alcance do estatuto actual? Pode a dimensão escalar a nível internacional, com a criação de seleções nacionais de eSports?

Obviamente que o apoio de grandes players faz toda a diferença, pelo menos para a dinamização e criação de eventos maiores e mais complexos, no entanto, para que passemos para um cenário mais internacional é necessário que os grandes players invistam não só nos eventos, mas sim muito mais nas equipas, pois para que sejamos competitivos lá fora precisamos de criar atletas cada vez mais competentes, e para que isso seja possível é necessário que os clubes tenham auto suficiência para que possam também apostar na formação de jovens atletas. Há que criar uma estrutura desportiva tal como existe nos desportos ditos convencionais para que possamos começar a pensar na criação de selecções nacionais competitivas e para que isso aconteça espero que os grandes players invistam nesse sentido, fica o apelo.

Em 2018, a Worten apresentou um crescimento considerável no seu volume de negócio relacionado com o gaming (subiu de 7% para cerca de 21%). É possível afirmar que os eventos actualmente devem a sua credibilidade só a estes números ou há algo mais?

Em relação aos números de crescimento da Worten, não posso afirmar nada, posso apenas especular, no entanto acho injusto atribuirmos o crescimento dos eventos a um só player, acho sim que devemos atribuir o crescimento aos organizadores de eventos que todos os anos batalham para nos trazer melhores conteúdos, mais actividades dentro do evento e acima de tudo competições com um nível de profissionalismo cada vez mais elevado. Claro que a presença dos players como a Worten traz mais disponibilidade financeira aos organizadores e certamente a sua presença cada vez mais assídua nos eventos offline e online trará uma visibilidade enorme à marca no que toca ao gaming o que por sua vez terá um retorno financeiro cada vez maior.

Em qualquer área profissional, a tendência de empregabilidade é a partir dos 18 anos, contudo, neste mundo, vemos jogadores bastante mais novos a assinar contratos com equipas um pouco por todo o mundo. Em Portugal assistimos ao mesmo cenário? Há algum plano para garantir que não se trata de um incentivo ao abandono escolar?

Em Portugal também acontece este cenário com alguma frequência, no entanto é algo que muitas vezes acontece de forma desregrada e sem o consentimento dos encarregados de educação, o que muitas vezes leva a conflitos e instabilidade no seio das equipas, no seio familiar e no percurso escolar do jovem atleta. Existe sim um plano em resolução para combater estas situações, plano esse que irá passar pela sensibilização dos encarregados de educação, pela formação jurídica e de responsabilidade social dada aos clubes e pelo eventual reconhecimento que o estado português terá que dar aos eSports como desporto para que possam ser regulamentados como tal.

Por fim, e ponderando mais o lado psicológico, consegue apontar alguns benefícios que os jogos possam trazer à vida dos jovens? 

Existem vários benefícios visíveis, tais como a melhoria da motricidade fina, o aumento de confiança no seu dia a dia e a capacidade de liderança e de trabalho em equipa aumenta drasticamente. Podem ajudar a combater a dislexia, ajudam a combater o stress que muitas vezes é causado pela pressão parental e social, para que sucedam nos estudos e não só. Existem inúmeras benesses no que toca aos videojogos, afectando não só os mais novos como também os mais idosos, nomeadamente no combate ao envelhecimento do cérebro.

Moche XL / Filipe Cabral

Gonçalo Pires, Mental Performance Coach da Mindset Gaming, e Renato Dimas, Strategic Coach da Bursaspor

Tendo em conta que estávamos a falar com dois especialistas que integram equipas técnicas de Esports, tínhamos de começar com a pergunta óbvia. Qual é o papel de um treinador no contexto dos eSports? Quais são as dimensões que um preparador de eSports deve dominar? Tanto para o Renato como para o Gonçalo o papel de um treinador de eSports “acaba por ser idêntico ao papel de um treinador de desportos tradicionais”, considerando no entanto “redutor falar apenas de um preparador para uma equipa”, pois, à semelhança do Futebol, por exemplo, são cada vez mais as “equipas a apostar em elementos de staff mais competentes e mais diversificados”. No caso específico do Renato, ele trabalha como psicólogo, nutricionista e fisioterapeuta. Relativamente às dimensões a dominar, estas dividem-se em dimensão estratégica (para o Renato) ou operacional (para o Gonçalo), que consiste na preparação técnica e táctica dos jogadores e na condição dos jogadores, e em dimensão mental, onde o treinador principal domina “alinhamento de valores, capacidade de liderança” e apoia na “compreensão e reflexão das emoções e pensamentos quer dentro e fora do jogo”. No fundo, saber lidar com aquilo que é ser pessoa.

É concordante entre os coaches que a discriminação e estigma que existe em torno dos profissionais de gaming é “claramente uma questão de tempo” e que quem faz tal referência “não compreende a sua realidade e contexto” e não está “consciente da dimensão dos eSports”. 

Simplificando e recorrendo novamente à comparação com os desportos tradicionais, Renato diz que é como o estigma do futebol de ser “só chutar uma bola” quando por detrás existe “um elevado nível de competição que existe um preparo estratégico, físico e mental constante.” A isto, Gonçalo acrescenta o facto de, no contexto da geração dos “entas”, estes possuírem um “histórico de atletas bem sucedidos no desporto tradicional”, alavancado com “muita variedade de media existente relativa ao desporto.”

Em suma, não tardará até os eSports se tornarem comuns e aceitáveis graças à “rápida evolução da tecnologia juntamente com a evolução progressiva do profissionalismo dos eSports” e ao surgimento das “primeiras histórias e exemplos de sucesso de atletas que conquistaram e dominaram o seu videojogo”.

Sobre a mediatização da prática e a sua importância, dizem que os eSports começaram por “abrir os seus próprios canais de comunicação para se tornarem relevantes junto das gerações mais novas” e essa relevância escalou de tal forma que, “as finais do Mundial de League of Legends foram vistas por 44 milhões de pessoas, mais 24 milhões de pessoas do que as finais de NBA.” 

Não obstante, a aposta dos canais tradicionais na transmissão de eSports é importante para os “colocar no radar da geração com mais idade”, permitindo que esta comece a explorar o tema ou, na maioria dos casos, que os pais possam acompanhar a vida e os interesses dos filhos.

Tal como nos desportos tradicionais, nos eSports existem “modalidades”, como Mobas, Fps ou RTS. Baseando-se na sua experiência, Renato acredita que o “comportamento dos jogadores seja transversal” a todos os tipos de jogo, e que apesar de grande parte do trabalho dos treinadores seja “a organização do treino e gestão dos treinadores, o jogo é bem diferente como o envolvimento com o mesmo.” Por exemplo, um treinador de CS:GO pode comunicar com os seus jogadores ao fim de cada rodada enquanto um treinador de League of Legends não tem qualquer contacto com os jogadores no decorrer do jogo.

Já Gonçalo afirma que o “comportamento dos jogadores varia conforme a modalidade e o tipo de jogo” uma vez que “há jogos que pela sua natureza são mais dinâmicos, quer em termos de resposta, habilidade ou comunicação com colegas”. Comparando os Mobas aos FPS, argumenta que, nos primeiros, é necessário que os jogadores estejam “num completo estado de imersão na actividade e que o único momento de ‘pausa’ é quando um jogador espera pelo seu respawn e nos segundos, as pausas entre rondas permitem aos jogadores fazer “um reset no seu comportamento e nos seus estados mentais mais facilmente do que num jogo corrido.” O que difere deste são os jogos de desporto (FIFA e H2K) que permitem um “comportamento mais autónomo” e não requerem comunicação com outrem, uma vez que são jogados individualmente.

No que concerne os treinadores, o Gonçalo concorda com o colega de profissão, uma vez que um treinador de uma determinada modalidade, caso queira treinar outra modalidade, terá sempre de aplicar um adicional “esforço na aprendizagem de outras mecânicas processuais que o jogo assim exige.”

Os atletas de eSports são, por norma, mais jovens, o que pode trazer, na maioria dos casos, vários desafios. “Não é nada fácil”. O pior? “A indisciplina.” É assim que simplificam, argumentando que é algo transversal a todos jovens devido à sua natureza assente na “falta de rotina, má alimentação, uso excessivo de redes sociais” e, talvez o mais importante seja “viverem o momento” sem tomarem “consciência e conceptualização da vida de um atleta profissional.”

Tendencialmente os aspirantes a profissionais estão habituados a ver os seus ídolos só nos grandes palcos “a fazer valer todas as horas de jogo que possuem e desse modo só jogam”, ou seja, absorvem apenas “uma pequena parte do que é necessário para lá chegar.” Acabam então por se cingir a jogar incessantemente, descurando a dimensão física e mental colocando em risco a sua evolução e a acumulando fadiga que impedem “a aplicação ou aquisição de novos conhecimentos”. 

Posto isto, e olhando para o progresso e a evolução da tecnologia e o seu envolvimento no sistema educacional, vão mais além e referem que é “importante começar a nutrir uma percepção de incluir os eSports na educação dos estudantes”, algo em que os Estados Unidos são pioneiros, e que se for ignorado é “perder uma grande oportunidade no que é o mundo digital e o caminho na educação para um cidadão que compreende as oportunidades, os direitos e as responsabilidades de viver, aprender e trabalhar num mundo interligado” e desprover os estudantes da possibilidade de “ganhar habilidades tecnológicas para assumir um papel activo na escolha, obtenção e demonstração de competência nos objectivos e ciências da aprendizagem.”

Ainda no espectro das comparações com o mundo “exterior”, existem disparidades com os considerados desportos tradicionais. Perante esta questão, ambos saltaram logo para as semelhanças. Primeiro referiram a dualidade das vertentes amadora e profissional, servindo a primeira para o “desenvolvimento do indivíduo” e a sua formação para a sociedade, incutindo “o senso de responsabilidade, companheirismo” e obviamente a paixão pelo desporto. Já a vertente profissional, adjectivam como “mais agreste” devido às exigências de alto rendimento, sendo necessário que o jogador se foque “exclusivamente no entendimento do jogo e prática constante”, algo que leva ao burnout ou lesões físicas em ambos os desportos.

Em termos organizacionais são ambos desportos “com jovens com bastantes capacidades, uma actividade atractiva que têm audiência e financiamentos”“no caso específico dos eSports, estes vêm dos criadores do jogo” – e, “quando observamos a vertente competitiva, tudo relativo aos campos de desenvolvimento pessoal, à performance desportiva, treinos, psicologia é importante.”

Atendendo às disparidades, no caso dos eSports “devemos ter a percepção que o jogo pertence a alguém”, contrariamente ao desporto tradicional. Outro aspecto curioso são os adeptos que “apesar de terem um clube pelo qual torcem, estão todos misturados”, não havendo separação por equipa, uma vez que “a malta está lá para ver o espectáculo.”

As constantes actualizações dos jogos electrónicos é outro ponto interessante e que mantém os jogos apelativos e desafiantes, sendo desenhados de forma a “não existir um factor influenciável”, algo que nos desportos tradicionais chamamos de árbitros. Por fim, referem o “rácio de impacto individual” que é maior nos eSports, pois cada jogador tem à sua disposição ferramentas para influenciar o jogo a qualquer altura, ao contrário dos desportos tradicionais, nomeadamente os jogados com bola, onde o portador desta é o único que pode influenciar o jogo no momento pois um jogador sem bola não pode nunca rematar para golo enquanto nos eSports qualquer jogador pode derrubar uma estrutura, por exemplo.

Gonçalo e Renato têm ambos profissões relativamente novas nesta indústria e, se atentarmos à forma de jogar nas diversas ligas internacionais, podemos afirmar que, tal como nos desportos tradicionais, existem filosofias e abordagens distintas para se ser coach, o que faz com que cada país tenha uma filosofia e um estilo de jogo predominante, abordagens que o caracterizam. E olhando para Portugal? É unânime a reposta: “Portugal certamente não tem um estilo de jogo predominante”. Apesar do comportamento tradicional de um treinador ser o de “educador” que ensina ao jogador aquilo que ele tem de fazer, não existe em Portugal “uma filosofia presente (…) a que se tenha dado um nome e se saiba quais as suas implicações.”

Para terminar, sobre o panorama do gaming em Portugal, em relação a outras geografias, ambos referem que, apesar de o gaming ter vindo a crescer na sua vertente competitiva, e apesar de, “atendendo à sua dimensão, existir bastante qualidade”, “o panorama é fraco para competir com qualquer outra geografia”. Isto porque “as oportunidades de viver competitivamente de eSports em Portugal ainda são bastante reduzidas”, pois “sempre que existe a formação de um bom jogador ou equipa, são contratados por equipas profissionais de fora”, devido à diferença salarial.

A falta de divulgação e investimento demonstra que estamos nitidamente atrasados, principalmente se nos compararmos directamente com o nosso país vizinho, “que tem profissionais no mundo de eSports em qualquer modalidade” e onde “não só os salários como a formação dos jogadores na liga espanhola” são dignos.

No entanto, já foi lançado em Braga “um projecto de uma academia de eSports”, o que pode ser um passo na direcção correcta. Além disso, “uma empresa bracarense desenvolveu sistemas de monitorização em tempo real que permite a detecção de comportamentos associados à fadiga mental nos eSports”, uma ferramenta valiosa para avaliar a condição e performance dos atletas. Portanto, e resumindo, consideram que “Portugal não esteja propriamente mal” sendo contudo a sua evolução lenta quando comparada com outras geografias, havendo espaço para fazer mais e melhor, cabendo essa responsabilidade a cada um que se considere parte integrante da comunidade gaming.

Autor:
9 Abril, 2020

Frequentou a Universidade de Coimbra onde concluiu o Mestrado de Estudos Europeus e ganhou o bichinho da investigação e consolidou o vício da escrita. Posteriormente decidiu complementar os estudos em Aveiro, com o Mestrado de Marketing, área do qual já fora profissional numa multinacional e que agora trabalho como freelancer, onde procura ajudar as PMEs a contar as suas histórias e a crescer no mundo digital. Para além de perder imensas horas de sono a jogar, gosta ainda de escrever e tagarelar sobre cinema, videojogos e ocasionalmente política.

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