Em tempos de confinamento, fotógrafo viaja “desde a porta de casa a Vik, na Islândia, clique a clique”

Em tempos de confinamento, fotógrafo viaja “desde a porta de casa a Vik, na Islândia, clique a clique”

7 Abril, 2020 /
Cortesia de David Cachopo

Índice do Artigo:

David Cachopo recorreu ao Google Street View para viajar até à Islândia e ir capturando imagens pelo caminho.

Nestes tempos de pandemia, por muito tempo que quem viu os seus empregos ou projectos adiados tenha para pensar em novas ideias, o espaço e os materiais com que a pode executar são relativamente escassos. Assim, em muitos casos, resta a internet como portal para um mundo novo por explorar. Foi assim com David Cachopo. Fotógrafo de profissão, pós-graduado em Discursos da Fotografia Contemporânea pela Faculdade de Belas Artes. Confinado a sua casa, e depois de gastar todas as hipóteses de fotografia que o seu apartamento em Benfica lhe conferia, David decidiu iniciar uma expedição fotográfica, de Lisboa a Vik, na Islândia captando fotografias de toda a viagem.

O resultado está a ser partilhado no Instagram com o nome Lonesome Traveler, e, tirando a velocidade com que se consegue mover, podia perfeitamente passar por uma viagem real – uma percepção que se quebra por vezes apenas com o aparecimento de elementos digitais na sua fotografia. Falámos com o David para, para além de conhecer este seu projecto, perceber como surgiu e como se relaciona com a sua prática profissional quotidiana, numa entrevista que explora e questiona os limites da fotografia.

Quando sentiste a necessidade de criar este projecto e porquê a opção pelo Google Maps em detrimento da janela da tua casa ou do teu quotidiano?

Foi uma decisão que surgiu de forma espontânea. Na verdade, eu andava a fotografar durante a quarentena. Fotografei da janela, a minha horta de varanda, os meus gatos, passei por essa fase e até estava satisfeito com algumas das imagens. No entanto, após 10 dias de isolamento voluntário, estava à noite a fazer scroll no Instagram, quando me cruzei com uma imagem de Vik, na Islândia, e pensei alto sobre o facto de, se lá quisesse ir, neste momento, não poderia. A Joana, a minha namorada, respondeu-me em tom de brincadeira que podia lá ir pelo Google Maps, mas esta foi uma brincadeira que levei a sério e de forma quase imediata tive a ideia base do projecto. Não se tratava apenas de viajar até lá de forma rápida, com uma pesquisa, mas fazer disto uma viagem. Ir desde porta de minha casa a Vik, clique a clique, pelo Google Street View, e pelo caminho fotografar o que me interessasse. E foi assim que me interessei e decidi começar a viajar no dia seguinte, mas ainda não fazia ideia do que iria encontrar, se ia gostar das imagens que ia fazer, se haveria coisas interessantes para captar. A verdade é que eu encontro interesse em quase tudo, numa parede velha, numa sombra, numa situação, por isso mal comecei a “caminhar” percebi que tinha, em mãos, algo com potencial.

Há polémica sempre que se chama fotografia a ‘capturas de ecrã’. Enquanto fotógrafo achas que essa distinção faz sentido ou achas que se pode continuar a chamar fotografia a este exercício? Quais são as principais diferenças e semelhanças que encontras entre um formato e outro?

Percebo que esta questão não seja consensual, eu próprio sempre tive (e tenho) algumas dúvidas em relação à apropriação de imagens em projectos considerados fotográficos. Acho que não é uma questão simples e mexe com vários conceitos.

Neste caso concreto, eu considero que estou a fazer um trabalho fotográfico. Encontrei mais semelhanças com o acto de fotografar “tradicional” do que estava inicialmente à espera. O que faço é observar o que me rodeia, neste caso num mundo virtual, e interesso-me por uma parte concreta desse mundo. Enquadro, movimento-me à procura de melhor ângulo ou melhor timing. Apesar de serem imagens paradas, a verdade é que quando me movimento ao longo da estrada as posições relativas mudam, as pessoas, os carros, os animais mudam de posição, portanto essa procura da imagem continua a existir, com a vantagem de poder “voltar atrás no tempo” de ter um “momento decisivo” em pausa.  Por vezes, tal como no mundo real, não consigo a imagem que pensei e portanto há fotografias que não se concretizam, ficam só idealizadas. Cada fotógrafo que faça o mesmo caminho que eu vai interessar-se por coisas diferentes e tirar outras fotografias e isto é igualmente verdade para ambos os formatos. Existe também o lado físico que é, obviamente, diferente.

Em relação ao facto de estar a usar fragmentos de imagens que não fui eu que captei, o que sinto é que as imagens captadas pela Google tem um propósito: mostrar de forma imersiva a realidade daquele local. Não pretendem isolar pormenores ou exprimir uma ideia. Estou por isso a fazer outras fotografias que não as captadas pela Google.

Creio que se pode fazer um paralelismo com o sampling, na música, sobre o qual tenho exactamente as mesmas dúvidas. Se fizer uma cópia quase exacta de outra obra e considerar que compus uma música… custa-me aceitar. Se captar excertos de músicas e criar algo novo, em que exprimo algo diferente, criei música. O mesmo se aplica, creio, neste caso. Se estou a criar imagens diferentes acho pode-se considerar um trabalho fotográfico.

Mas esta é uma questão muito complexa porque, como disse mexe com conceitos, porque também existe também a questão da técnica como se capta uma imagem. Eu faço uma captura de ecrã, será que posso comparar a selecção que faço ao frame de um filme (analógico)? Ao sensor de uma câmara digital? Com o digital, onde se criam os limites? Tenho muitas questões e poucas respostas. Entendo quem possa ter problemas em considerar este trabalho como “fotografia” mas isso não me preocupa. O que quero é criar imagens que me interessam e dizem algo, explorar uma realidade diferente e quando parar um pouco, pensar mais sobre elas.

“Percebo que esta questão não seja consensual, eu próprio sempre tive (e tenho) algumas dúvidas em relação à apropriação de imagens em projectos considerados fotográficos.”

Cortesia de David Cachopo

Aqui não tens as mesmas nuances técnicas que tens na fotografia tradicional, procuras outras formas de marcar a diferença numa fotografia ou o exercício torna-se mais livre? A escolha do preto e branco relaciona-se com isso?

Sinto que, mais do que a técnica fotográfica na própria câmara, a impossibilidade de me mover no espaço para procurar o enquadramento me limita naquilo que considero que me “diferencia”. No entanto, não sinto isso como um obstáculo pois acabo por ignorar os ângulos que não seriam “meus” no mundo real, pois não me interessam tanto. Ou seja, acho que aquilo que talvez me diferencie na fotografia tradicional acaba por funcionar como filtro para as imagens que fotografo neste projecto e não sinto que ande à procura de algo para marcar a diferença.

Em relação à escolha do preto e branco, fotograficamente penso a preto e branco a maior parte do tempo e por isso a escolha foi natural, com a consciência, porém,  de querer afastar as imagens da sua origem, isto é, afastar das cores naturalmente associadas ao Google Street View. Quero que quem vê estas fotografias se possa esquecer que são imagens tiradas do Google Street e que de vez em quando seja recordado pelas letras, pelas caras desprovidas de identidade, ou pelo falta de definição.

Da tua experiência – e sabendo que não é a mesma coisa – estás a descobrir um potencial nesta forma de conhecer o mundo, ou não passa de um entretenimento?

Não considero, de todo, apenas um entretenimento. Acho que há um potencial quase ilimitado em termos imagéticos no Google Street View que, aliás, vários fotógrafos já exploraram antes de mim. Tem sido até bastante interessante porque tenho descoberto trabalhos incríveis também feitos no Google Street View que as pessoas me vão enviando. Eu sabia vagamente de alguns, mas propositadamente não fiz uma pesquisa antes para não me “colar” a outras ideias e fazer a minha viagem sem influências. Nesse sentido tenho descoberto mais uma janela para explorar no futuro.

Estabeleceste um limite entre Lisboa (Portugal) e Vik (Islândia). A que se deve esta escolha?

Decidi manter-me fiel à origem da ideia, embora seja um objectivo um pouco megalómano pela distância que separa as duas cidades. Como foi por causa de Vik que tive a ideia do projecto achei que fazia sentido manter essa cidade como destino, onde curiosamente, já estive. Mas não deixa de ser interessante pois a Islândia, país com o qual tenho uma relação muito forte desde que lá fui, tem sido fonte de criatividade para vários projectos meus, e mais uma vez aparece aqui como “musa”. É um local incrível que me inspira, e também por isso, faz todo sentido ser o destino desta viagem.

Há fotografias do projecto que estão pontuadas por elementos digitais como as letras do mapa ou o desfoque nas caras, interessa-te explorar esta estética ou tentas evitar ao máximo essa contaminação?

Interessa-me que seja assumido e que esteja presente mas de forma moderada. Evito maior parte das vezes as letras ou elementos gráficos como as setas, cruzes, para deixar o espectador esquecer-se (com a ajuda do distanciamento cromático, como expliquei) para de vez em quando incluir esses elementos e relembrar a verdadeira origem destas fotografias.

As caras desfocadas, assumo-as sempre até pela questão da presença humana mas ausência de identidade. Sou um viajante que encontra pessoas mas continua solitário. Acho interessante e misterioso todas estas figuras que vou encontrando e sobre as quais nada sei. Tenho sentido um maior interesse em fotografar pessoas neste projecto do que normalmente tenho. Surpreende-me o facto de conseguir sentir emoção apenas pela expressão corporal, sem a expressão facial. É algo sobre o qual tenho pensado e que continuarei a explorar ao longo da viagem.

Cortesia de David Cachopo

Esta ideia de explorar fotograficamente uma imagem estática, imóvel, através de uma deambulação quase geográfica, está a ensinar-te algo sobre o teu modo de fotografar? Trazes algo da tua bagagem no cinema?

Talvez me esteja a permitir explorar a fotografia de outra forma, no sentido em que o disparo está feito e não foi decidido por mim. Alguma da intuição ficou, portanto, posta de parte. Tirei o “momento decisivo” da equação e cabe-me agora pensar sobre a imagem fixa e procurar nela a fotografia que me interessa. Era algo que já fazia, mas que neste projecto talvez esteja a apurar.

(Não creio que o cinema tenha alguma influência directa neste projecto embora haja sempre um influência visual. Pelo contrário, tento afastar-me cada vez mais da imagem em movimento.)

A viagem que começou em Lisboa, zona de residência, já atravessou Espanha e está agora em França, onde David continua a fotografar. Podes acompanhar o projecto directamente no Instagram e tentar perceber o roteiro que o fotógrafo traça clique a clique ou inspirares-te na jornada e criar o teu próprio caminho. Se há coisa que os momentos como este e constrangimentos nos podem ensinar é a testar os limites das nossas crenças até dos meios artísticos. A urgência baixa-nos a guarda e dá-nos margem para explorar áreas outrora alvo de preconceitos, permitindo a criação em novos formatos e a exploração livre de diferentes estéticas.

Autor:
7 Abril, 2020

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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