Os 20 anos de ‘As Virgens Suicidas’

Os 20 anos de ‘As Virgens Suicidas’

23 Abril, 2020 /
As Virgens Suicidas (imagem via Paramount Pictures/divulgação)

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As Virgens Suicidas (1999) é como um frasco de essência de Sofia Coppola concentrada a 100%, que a realizadora foi diluindo nos seus outros trabalhos ao longo dos anos.

Num artigo publicado no The Guardian em 2018, Sofia Coppola conta como sempre viveu rodeada de homens, os seus irmãos e primos e o seu pai “macho film-maker”, Francis Ford Coppola. Segundo a agora realizadora, que assina o artigo na primeira pessoa,  esse ambiente masculino ajudou a empurrá-la para o seu estilo e estética femininos.

Na verdade, Sofia, que acabou por se render à sétima arte após alguma relutância associada à pressão do nome do pai, esculpiu um estilo e forma de ver o mundo que são inteiramente seus – ao inverso dos filmes épicos do seu pai como O Padrinho ou Apocalipse Now, os seus filmes são intimistas. Seguem personagens tipicamente femininas, suspensas na vida ou num momento de transição, emocionalmente comprometidas. As suas histórias não são dirigidas pelo enredo, mas por temas, como a solidão, a cultura adolescente, ou o florescer da feminilidade. Coppola dá-nos a conhecer os estados emocionais das suas personagens através de recursos visuais como a cor da luz ou o enquadramento dos planos, em vez do diálogo. Cunhou a sua estética analógica (filma sempre em película) com o seu uso da luz natural, das cores suaves ou pastel. Com ela, vieram algumas técnicas de cinematografia que puxam o espectador para a história, deixando sempre espaço para projectarmos os nossos próprios sentimentos na imagem, uma sensibilidade quase documental, e a importância do som ambiente.

Cada filme que sai, escrito e realizado por si, é mais uma assinatura neste seu manifesto estético e intencional, e uma prova da sua postura de cineasta independente que prefere liberdade criativa a um grande orçamento. Dito isto, raras são as vezes em que um realizador tem no seu primeiro filme uma declaração de intenções tão clara e bem sucedida, sobre aquilo que vai ser o seu trabalho e a sua carreira no futuro.

As Virgens Suicidas (1999) é como um frasco de essência de Sofia Coppola concentrada a 100%, que a realizadora foi diluindo nos seus outros trabalhos ao longo dos anos. O filme apresenta ao mundo o estilo visual romântico da cineasta, e colocou de imediato a realizadora no mapa da chamada art house do cinema independente. Com As Virgens Suicidas, Sofia Coppola emergiu da sombra do seu pai com um propósito, o de mostrar o trabalho de uma cineasta que não estava a fazer um filme só porque podia mas porque devia, mostrando uma habilidade inata que teria vingado com ou sem a ajuda de um pai-vencedor-de-Óscar.

Baseado no romance com o mesmo nome de Jeffrey Eugenides, As Virgens Suicidas situa-se na Detroit dos anos 70, mais especificamente num subúrbio que parece banal – mas com uma mística própria. O filme começa com a tentativa de suicídio de Cecilia Lisbon, a mais nova das cinco irmãs Lisbon, um ato que gera preocupação e confusão por parte da comunidade. No seguimento dessa cena, um médico diz-lhe que ela não tem sequer idade para saber quão difícil é a vida. “Obviamente, doutor, você nunca foi uma menina de 13 anos”, responde com inteligência. E aí é o começo do fim, como nos conta no filme um narrador invisível, a versão adulta de um miúdo da vizinhança à época, parte de um grupo de outros rapazes curiosos cuja obsessão pelas irmãs Lisbon continuou para lá da vida.

A história é-nos sempre contada do ponto dos rapazes e parte da magia do filme está na forma como Coppola e o seu Director de Fotografia, Edward Lachman, retratam esse ponto de vista: planos trémulos, através de janelas e outros que comunicam a vontade ansiosa dos miúdos e do espectador de ter acesso a esse mundo feminino intocável. Essa perspectiva outside-looking-in é, aliás, um tema e abordagem que atravessa todo o seu currículo.

Coppola mantém-nos assim afastados das irmãs (interpretadas por Kirsten Dunst, AJ Cook, Leslie Hayman, Chelse Swain e Hanna R Hall), oferecendo-nos meras pistas diminutas para que nós, como os rapazes, fiquemos apenas com peças aleatórias do quebra-cabeças. Os pais, interpretados pelos consagrados Kathleen Turner e James Woods, são rigorosos, mas não demasiado formais, religiosos, mas não extremistas, sem noção, mas não de uma maneira que não seja relacionável; e assim, apesar de os vizinhos especulativos e fofoqueiros colocarem a responsabilidade do que acontece nos pais, sabemos que não é assim tão simples, nunca é assim tão simples.

Sem querer revelar muito mais acerca da história do filme, As Virgens Suicidas filme deve muito do seu sucesso ao sucesso de As Virgens Suicidas livro. Não é fácil escrever uma história sobre e para adolescentes, e o processo de identificação com as misteriosas irmãs Lisbon ou com seus curiosos admiradores é parte da vitória da história. Como escreveu a própria Sofia Coppola, que leu o livro quando tinha pouco mais de 20 anos, “parecia que Jeffrey Eugenides, o escritor, entendia realmente a experiência de ser adolescente: o desejo, a melancolia, o mistério entre rapazes e raparigas. Eu adorei ver e sentir a forma como os rapazes estavam tão confusos com as raparigas, e eu identifiquei-me de verdade com todos aqueles momentos de preguiça e moleza que elas passavam no quarto.” Coppola conta que nunca tinha sentido isso nos filmes para adolescentes, não de uma forma com a qual ela própria se conseguisse relacionar, considerando-os quase sempre condescendentes. “Os filmes sobre adolescentes são frequentemente estupidificados com cinematografia barata. Não há muitos filmes de arte de qualidade feitos para o público jovem. Mas eu queria olhar adequadamente para esse momento profundo e emocional da vida. Como eu ainda estava nos meus 20s, a ideia de escola [retratada no filme] não estava longe.”

Coppola passa a mensagem que quis captar, aliada àquele sentimento de que a onda de emoções estranhas e difíceis que surgem para todos durante a adolescência é muitas vezes minimizada por aqueles que já passaram por isso há mais tempo, como se a visão do mundo que agora têm fosse visível para todos, fazendo de As Virgens Suicidas uma amostra perfeita da confusão adolescente, embrulhada numa história com contornos negros tornados mais leves pelo visual etéreo do filme.

A estética sonhadora, o cuidado com os cenários e guarda-roupa (herdados do amor de Coppola pelo mundo da moda) e a banda sonora perfeita e perfeitamente ajustada dos franceses Air levaram alguns a rejeitar o filme, considerando-o uma mood piece, mais preocupada com estilo do que com substância, mas a história é demasiado bem escrita, demasiado bem fundamentada pelo trabalho cinematográfico, demasiado rico em detalhes para cair nessa categorização já gasta. Um trabalho de uma jovem de 28 anos com referências muito concretas e uma vontade grande de as concretizar – Coppola aponta como inspirações o filme Badlands (1973) de Terrence Malick, as primeiras fotografias a cores de William Eggleston, da década de 1970, ou o livro Suburbia do fotógrafo Bill Owens, que ajudou a construir a normalidade romântica dos subúrbios de Coppola, uma jovem que nunca viveu nos subúrbios.

Esse privilégio contra o qual chegou a querer lutar (mas ao qual nunca se rendeu) foi um empurrão neste seu primeiro trabalho. Teve o óbvio apoio do pai e da companhia de cinema da família, American Zoetrope, e a primeira exibição do filme aconteceu em Cannes, na Quinzena dos Directores de 1999. “Uma estreia stressante”, conta Sofia, relembrando que apesar de As Virgens Suicidas ter sido bem recebido pelos críticos, “praticamente ninguém viu o filme nos Estados Unidos”. “Ele teve um lançamento triste e depois disso desapareceu. (…) Há alguns anos, um grupo de adolescentes disse-me o quanto amavam o filme. Eu pensei: ‘Como é que elas sabem que existe? Nem eram nascidas!’ Pela Internet, o filme teve uma segunda vida. É bom saber que ainda apela a algumas mulheres jovens.” Terão sido o buzz europeu e o hype vindo do Japão a catapultar o filme para o lugar de culto que hoje ocupa? À Vogue norte-americana, por ocasião do vigésimo aniversário do filme, Coppola diz que acredita que o respeito e sinceridade com que quis tratar a adolescência e temas como a perda e o luto também terá contribuído para isso. “Não há muita arte que trate essa época da vida com respeito. (…) Tenho orgulho de ter feito algo que fala de adolescentes e assuntos sérios, onde eles são pessoas complexas e não apenas crianças.”

Sofia diz que deve aos espectadores de Cannes o início da sua carreira, e ao livro de Eugenides a certeza de que queria ser realizadora. “Não sei se eu teria uma carreira no cinema se não fosse esse livro. Transformá-lo em filme abriu-me realmente os horizontes, deu-me o bichinho. Eu acho que andava apenas a vaguear pelos meus 20 anos, a tentar descobrir o que queria fazer, tentando coisas diferentes e tendo essa angústia de não me sentir confortável na minha própria pele. Foi assustador dirigir um filme, mas eu estava tão conectado com o material que senti que não tinha escolha. ‘As Virgens Suicidas’ transformou-me numa cineasta.”

Autor:
23 Abril, 2020

A Rita Pinto é Editora-Chefe do Shifter. Estudou Jornalismo, Comunicação, Televisão e Cinema e está no Shifter desde o primeiro dia - passou pela SIC, pela Austrália, mas nunca se foi embora de verdade. Ajuda a pôr os pontos nos is e escreve sobre o mundo, sobretudo cultura e política.

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