O que faz falta é convencer a malta

O que faz falta é convencer a malta

5 Março, 2020 /
Foto de Davide Ragusa via Unsplash

Índice do Artigo:

Porque é que o avançado conhecimento que temos sobre causas de pobreza, doença e precariedade não é usado para proteger os cidadãos (todos nós, directa ou indirectamente) dessas mesmas consequências?

Em muitos dos problemas que identificamos no dia-a-dia não existe apenas o impulso para os solucionar: há também a consciência de que é necessário saber exactamente como o fazer. Tradicionalmente, mandam o bom-senso e o método científico, identifica-se o problema, apura(m)-se a(s) causa(s) e testam-se, nas mais variadas combinações, várias hipóteses de resolução . Esta abordagem, embora metodologicamente irrepreensível, não pode ser a única: devemos investir em aplicar o conhecimento que já existe, e não apenas em  produzir novo conhecimento que é deixado intocado em artigos científicos e livros. Estar à espera da última moda, como Bocage, é frequentemente a pior das opções. Bem longe do cliché de só se lamentar as escolhas que não se fez, a inacção, na vida pessoal e pública, tende, para cada contexto, a privilegiar a manutenção dos problemas conhecidos e a degradação das benesses de que usufruímos.

Já há, para uma quantidade considerável de temas, da saúde ao planeamento urbano, soluções baseadas em evidência: falta convencer os decisores a aplicá-las. E esse é o passo complicado.

Esta reflexão nasce de um interessante artigo de opinião da reputada revista científica Lancet, que, a propósito da extensa evidência que já existe sobre redução de risco para utilizadores de drogas, tenta perceber por que razão não são as políticas de combate à toxicodependência baseadas nas melhores práticas. Porque é que o avançado conhecimento que temos sobre causas de pobreza, doença e precariedade não é usado para proteger os cidadãos (todos nós, directa ou indirectamente) dessas mesmas consequências? E, mais importante, porque é que a comunidade científica responde fazendo mais estudos, produzindo mais artigos, e não tentando influenciar a opinião pública sobre o tema?

O que sabemos neste caso?

Sabemos, por exemplo, que no tópico do consumo de drogas se acaba a poupar dinheiro, no cômputo geral, apostando na prevenção de infecções cujo tratamento depois terá de ser custeado por via do SNS. Se isso não bastasse, e mesmo atendendo a possíveis divergências ideológicas, é sabido que a prevenção de doenças nos consumidores de drogas (frequentemente rotulados de inconscientes, delinquentes e pessoalmente responsáveis e merecedores da perda de qualidade de vida que sofrem ) acaba a proteger os outros elementos da sociedade – indivíduos a quem, numa visão de comunidades desligadas e de pendor individualista, não costuma ser atribuída “culpa”. Pelo prisma financeiro, pelo prisma da responsabilização individual ou simplesmente pela convicção do imperativo de proteger a saúde de cada um, faz sentido prevenir. No fim de contas, contudo, em poucos sítios a nível global se aplica bem o que se sabe.

Outros casos

Não é só neste campo da Saúde Pública que a evidência científica e a racionalidade são olimpicamente ignoradas. No planeamento urbano, por exemplo, a investigação que aponta a utilização massiva do carro, a dispersão (sprawling) urbana para os subúrbios ou a constante procura de casas maiores e melhores como grandes factores para a perda de qualidade de vida (e de vidas) já tem décadas. (O livro Happy City arma-nos com uma interessante quantidade destes exemplos que nos fazem constatar que, pese embora já se conhecer o que prejudica as pessoas, nada se faz em sentido contrário.) Usando qualquer indicador, desde mortalidade rodoviária até índices de felicidade, sem esquecer o preço per capita de habitação e manutenção de infra-estruturas, não faz sentido promover o transporte individual, não faz sentido construir subúrbios enormes de vivendas mono-familiares, e não faz sentido alargar ruas e auto-estradas para tráfego de carros. E não faz sentido ao nível do estado, por mais pequeno ou abrangente que seja, nem ao nível individual, se acreditarmos que a maioria das pessoas não quer gastar mais dinheiro e estar menos satisfeita com a sua vida. Ainda assim, pouco se faz para reverter estas tendências.

Foto de Dimitry Anikin via Unsplash

Então, por que razão não são frequentemente usadas estas ideias na definição de políticas públicas?

A resposta está, como de costume, no sistema de incentivos que suporta as tomadas de decisão. Da investigação em psicologia e economia comportamental sabemos que o ser humano tem, culpa da necessidade de sobreviver há milhares de anos, uma forte atracção para aquilo que fornece uma gratificação rápida. Portanto, o planeamento a longo prazo fica relegado para segundo plano, o que se complementa com a dificuldade em fazer previsões precisas para um futuro distante. A somar a isto, o facto de a maioria das decisões serem responsabilidade de pessoas que permanecem num cargo durante quatro, cinco anos dá origem a um fortíssimo cocktail de decisões imediatistas e pouco sustentáveis.

Estes incentivos, para decisores políticos, podem comummente ser traduzidos em financiamento, votos, ou numa relação entre ambos. Assim, problemas que (apenas aparentemente) afectem minorias (ou soluções que não sejam vistas como benéficas para uma maioria) vão receber, se alguma, pouca atenção. Resta, neste ponto, salientar a componente da percepção: para se ajudar a mulher de César, é preciso que muita gente a veja como mulher de César e invista em quem promete dar-lhe atenção. Um estado de alienação em que a maioria dos indivíduos falhe em perceber o quão inter-relacionados estão os problemas dos seus conterrâneos com os seus irá inevitavelmente caminhar para a desestruturação e individualismo competitivos.

Foto de Adrian Swancar via Unsplash

O que se pode fazer para melhorar?

Em primeiro lugar, ter o conhecimento. Saber e dar a saber as melhores práticas, que devem estar baseadas em investigação de qualidade. As tais que, muito frequentemente, já existem. Mas sem nunca deixar de substituir o senso comum pela prova – o exemplo mais que cliché do efeito positivo da despenalização do consumo de drogas em Portugal, ou o facto de desimpedir estradas aumentar a taxa de acidentes devem fazer-nos querer ter a melhor evidência disponível para cada caso.

Depois, e o mais relevante de tudo: mudar o sistema de incentivos. Arranjar as míticas soluções win-win. Promover a percepção das vantagens gerais de medidas de prevenção, de protecção de minorias, de suporte social por parte de quem decide e de quem escolhe os decisores – os eleitores como nós. Esta é, porventura, a instância em que a responsabilidade individual se apresenta como sendo mais consensual: não sendo obrigados a ter soluções e propostas novas, temos o dever de ajudar a escolhê-las através do poderoso instrumento que é o voto. Temos de convencer decisores a serem racionais. E convencer votantes a escolher bons decisores. Temos de investir na comunicação científica de qualidade, na relação com os media para concretizar esse objetivo, e na relação com a sociedade civil como público da informação científica. É o que faz falta.

Autor:
5 Março, 2020

Henrique Vasconcelos não é especialista em coisa nenhuma. Gosta de Saúde, análise de dados e problemas por resolver.

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