Na passada sexta-feira, a 45ª edição dos Césares, entrega de prémios dedicada ao cinema que é habitualmente descrita como sendo o equivalente francês aos Óscares, esteve envolta em polémica quando a atriz Adèle Haenel, juntamente com o resto da equipa do filme Portrait de la Jeune Fille en Feu, decidiu abandonar o Théâtre du Châtelet em protesto após Roman Polanski ter ganho o prémio de Melhor Realizador pelo seu último filme lançado no ano passado, o drama J’accuse. Isto não foi uma decisão tomada por mera frustração invejosa, mas sim um protesto revolto contra a postura passiva que a indústria cinematográfica francesa tem e sempre teve perante casos de abuso sexual e de poder.
A l'annonce du César de la Meilleure Réalisation pour Roman Polanski ("J'accuse"), Adèle Haenel quitte la salle.
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— CANAL+ (@canalplus) February 28, 2020
Antes de explicar o que aconteceu, o caso merece uma contextualização histórica
Em 1977, Polanski foi detido e acusado de ter drogado e violado Samantha Jane Gailey, uma jovem de 13 anos que fizera uma sessão fotográfica a nu para ele, terminando com o realizador a forçar-se perante ela, depois de lhe ter oferecido champagne e parte dum quaalude (um sedativo comummente reconhecido por ser uma “rape drug”). Embora Polanski alegue que nunca a drogou e que Samantha sempre esteve responsiva durante o ato que, segundo este, fora instigado por ela, o realizador admitiu ter tido relações sexuais com a menor. Porém, antes de ser condenado pelo tribunal californiano, Polanski fugira para França — que não tem acordo de extradição com os EUA — e aí se tem refugiado até aos dias de hoje.
Não só escapou impune ao crime que cometeu, como manteve uma carreira consistente desde então, na qual conseguiu trabalhar com imensos nomes famosos de Hollywood, como Kate Winslet, Adrien Brody e Jody Foster, que também sobreviveu a mais alegações de abuso sexual feitas por mulheres que estiveram em contacto com ele quando eram menores de idade. O seu mais recente filme J’accuse, que conta a história dum caso real do Séc. XIX em que um judeu é acusado e condenado injustamente de passar informações confidenciais ao Império Alemão, é um comentário propositado que Polanski faz acerca das várias polémicas em que se viu envolvido nos últimos 50 anos, e foi galardoado nesta última edição dos Césars com os prémios de Melhor Argumento Adaptado e Melhor Realizador, ambos para um Polanski que se encontrava ausente da cerimónia.
Esta ausência deveu-se ao clamor gerado por 400 das figuras mais proeminentes da indústria cinematográfica francesa, que protestaram contra os Césars pela as 12 nomeações que J’accuse recebera, protesto este que conseguiu forçar toda a diretoria encarregue da entrega de prémios a resignar-se.
Entre os que protestaram, a voz mais audível foi a de Adèle Haenel, atriz de 31 anos de idade que também já havia sido galardoada duas vezes pelos Césars em 2014 e 2015. Foi a primeira atriz a impulsionar o movimento #MeToo em França quando falou sobre o abusos sexuais que sofreu durante a adolescência cometidos pelo realizador Christophe Ruggia, que terá agido de forma inapropriada durante o período englobado pelos seus 12 e 15 anos de idade, altura em que trabalharam juntos em Les Diables. Estas acusações foram posteriormente corroboradas por diversos membros da equipa do filme que assistiram em primeira mão aos avanços de Ruggia sobre a jovem atriz.
“Bravo, pedophilia!” Adèle Haenel, star of Portrait of a Lady on Fire, and the film’s director Céline Sciamma walking out after child rapist Roman #Polanski won the best director award at the Césars, #France’s equivalent to the Oscars. h/t @alucarda
— Mona Eltahawy (@monaeltahawy) February 29, 2020
Tudo isto impeliu Adèle, que se encontrava nomeada para o César de Melhor Atriz, a abandonar a cerimónia quando o derradeiro o prémio de Melhor Realizador foi concedido a Polanski, gritando protestos a plenos pulmões, entre eles “vergonha” e “viva a pedofilia.”. Numa entrevista que deu no dia seguinte ao episódio, respondeu às inevitáveis críticas que lhe foram dirigidas, dizendo que “acham que estão a defender a liberdade de expressão, quando na realidade estão a defender o seu monopólio de diálogo.” Como Adèle, também Céline Sciamma, realizadora do êxito Portrait de la Jeune Fille en Feu, e o resto da equipa feminina por detrás do filme, abandonaram a sala. Numa entrevista lançada meros dias antes da cerimónia pelo New York Times, Adèle confessou a sua frustração perante a postura frágil sistema judicial francês face aos vários casos de abuso que foram surgindo ao longo dos tempos (um exemplo muito recente sendo o dos abusos sofridos pelas atrizes Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos no set de La Vie d’Adèle), e expõe o paradoxo do #MeToo em França, dizendo que “é um dos países onde o movimento foi seguido de perto nas redes sociais, mas duma perspetiva política e nas esferas culturais, a França perdeu o barco.”
Outros protestos
Na ruas fora do Théâtre du Châtelet, houve ainda uma concentração de pessoas que protestou contra as nomeações de Polanski antes da cerimónia, brandindo cartazes que criticavam a celebração de abusadores e pedófilos, tendo resultado em confrontos acesos com a polícia, que chegou a recorrer a gás lacrimogénio para dispersar a multidão.
Perante este cenário, debates voltaram a surgir sobre se será possível separar a arte do artista, com certas vozes a afirmar que se pode celebrar o primeiro enquanto o segundo é ignorado, e que isto tudo é uma “caça aos homens”. Eu mesmo já me debati seriamente sobre o assunto ao longo dos anos, assumindo até posições que agora vejo como extremamente ignorantes e vergonhosas, mas recentemente cheguei a um par de argumentos que solidificaram a minha opinião de que a arte e o artista são totalmente inseparáveis.
Não existe arte sem artista, e muito menos artista sem pessoa. As crenças, ideologias e estigmas de uma pessoa são transferidas tanto conscientemente com inconscientemente para o trabalho que produzem, fazendo deste quase como que uma impressão digital da mente do seu criador. Por exemplo, a ecléctica filmografia de Bong Joon-ho, por mais variada que seja em termos de género (o realizador é amante de todo e qualquer tipo de filme), assenta sempre numa análise e desconstrução social, que deriva diretamente dos anos em que este estudou Sociologia. Guillermo del Toro, por exemplo, faz contos de fadas para adultos, que combinam o seu longo fascínio por criaturas mágicas com a sua forte posição contra fascismo e masculinidade tóxica. Tarantino recheia as obras dele com referências à nouvelle vague ao spaghetti western, ao mesmo tempo que satisfaz o seu fetiche por pés. Sem as mentes destes criadores, os filmes que fizeram não existiriam de todo. Separar o artista da arte é um processo absurdo, que remove do objeto artístico aquilo que o torna isso mesmo. Uma boa parte dos filmes de Polanski possuem todos o seu quê de abuso ao sexo feminino, elemento que é totalmente recontextualizado à face das sucessivas alegações que foi enfrentando ao longo da sua vida. Eu já não consigo ver aquilo que Polanski faz a Sharon Tate em Repulsion ou Rosemary’s Baby como exercícios de empatia (característica essencial aos melhores filmes de terror), mas como meros atos de tortura masturbatória que inutilizam todo o excelente trabalho técnico que os acompanha. Se celebramos um objeto artístico, celebramos o seu artista e tudo aquilo que este representa.