Recentemente, o quarteirão da Portugália esteve no centro do debate sobre o modelo de desenvolvimento urbanístico da cidade de Lisboa. Em causa está o Portugália Plaza, um mega-empreedimento que contará com cinco blocos, onde alguns dos edifícios terão mais de 40 metros de altura, e que estará situado no terreno vazio contíguo à histórica cervejaria Portugália, na Avenida Almirante Reis, em Lisboa.
No website do promotor do projeto, o fundo de investimento imobiliário Sete Colinas, pouca informação se pode obter acerca das características específicas do empreendimento, mas relativamente à sua carteira de projetos podemos ler que estes “beneficiam de uma excelente centralidade e acessibilidades, de uma identidade social e cultural de referência, de vistas privilegiadas e de traços arquitetónicos distintivos que respiram a dinâmica das zonas onde estão inseridos”.
Uma posição diferente relativamente ao projecto foi demonstrada por algumas associações da freguesia de Arroios, onde este está inserido, durante a audição pública sobre o Portugália Plaza na Câmara Municipal de Lisboa, a 9 de julho de 2019. Uma das associações convidadas, o RDA69, apontou, na sua intervenção, que a freguesia de Arroios “tem sofrido uma forte pressão imobiliária e é um exemplo de como estas dinâmicas económicas e sociais operam, com pessoas forçadas a abandonar a sua casa e o seu bairro, espaços públicos de uso coletivo entregues a gestão privada, encerramento de espaços associativos, ou a aprovação de projetos urbanísticos contrários à regulamentação vigente em nome do interesse público. Neste quadro, a implantação de apartamentos novos, em prédios de arquitetura de autor, com construção de qualidade e todas as serventias, desde o estacionamento, aos serviços, passando pelo espaço central e as vistas que uma altura anormal permitem, não terá outro efeito senão inflacionar o valor do território circundante e consequentemente dos preços da propriedade e das rendas”.
Lisboa eufórica, em transformação
Numa conversa informal no espaço Sirigaita, junto ao largo do Intendente, o jornal MAPA juntou à mesma mesa Rita Silva da associação Habita (habita.info), Ana da Assembleia de Ocupações de Lisboa (AOLX), Antonio Gori do coletivo Stop Despejos e Catarina Carvalho da própria Sirigaita. Juntamente com muitos outros, estes coletivos têm, nos últimos anos, não apenas participado e organizado protestos, boicotes, acções de campanha e ocupações, mas também colocado na praça pública a questão do direito à habitação na zona de Lisboa, desde o ponto de vista dos seus maiores afetados: os moradores e as comunidades que habitam e vivem os bairros.
A conversa começou por tirar uma fotografia geral e notar que o quarteirão da Portugália é apenas um entre uma avalanche de projetos imobiliários que estão projetados na zona da grande Lisboa e que é praticamente impossível mapear de forma exaustiva o frenético universo do investimento imobiliário, mas que, mesmo assim, seria importante conhecer alguns deles. Referiu-se o Palácio de Santa Helena, um edifício do séc XVII, situado no bairro de Alfama que será recuperado e onde nascerão apartamentos de luxo. O projeto é levado a cabo pelo fundo imobiliário Stone Capital, um fundo especializado no desenvolvimento e na gestão de ativos em Portugal. O antigo Hospital da Marinha, no Campo de Santa Clara, irá ser transformado num complexo de hotelaria, habitação e comércio pela mão de uma imobiliária francesa, depois de o Estado ter vendido o edifício por 18 milhões de euros em 2016. O quartel da Graça, um monumento público, será em breve concessionado ao grupo Azinor, propriedade dos hotéis Sana para aí nascer um hotel de cinco estrelas, resultado de um investimento na ordem dos 30 milhões de euros. O jardim da Glória, também na Graça, é outro dos projetos da Stone Capital. No logradouro de 0.6 hectares, anteriormente arborizado, será construído um condomínio de luxo. A Stone Capital tem mais de 40 projetos validados pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), entre os quais se contam empreendimentos de luxo ou a conversão de espaços públicos em espaços comerciais.
Na freguesia de Marvila, na Matinha, nascerá um dos maiores projetos imobiliários em Portugal. O projeto é promovido pela empresa VIC properties, responsável igualmente pelo “Prata Riverside Village”, um projeto de construção de 128000 m² e quase 700 apartamentos no Braço de Prata. Em Marvila, a empresa tenciona construir cerca de 2000 novas casa num espaço de 20 hectares. No passado mês de outubro, o jornal Expresso noticiava o investimento de 3000 milhões de euros em 33 projetos na zona ribeirinha de Lisboa, onde se espera que nasçam “parques urbanos, praças, novas linhas de elétrico, marinas, centros de investigação, museus, monumentos, habitação nova e reabilitada, comércio, parques de escritórios, hotéis, centros de congressos e espaços para startups”. Mas também no outro lado do Tejo existem mega-empreendimentos a ganhar forma. Nos antigos terrenos da Lisnave nascerá a Cidade da Água ou, como foi apelidada, a Expo de Almada. Irá ocupar mais de 630 mil metros quadrados de frente ribeirinha e nela irão nascer zonas residenciais, escritórios, hotéis, áreas culturais, um terminal fluvial e uma marina.
Quando questionada sobre os efeitos que todos estes investimentos imobiliários têm na cidade, Rita Silva considera que devemos recuar na pergunta e perceber, antes de mais, as causas: “por que é que de repente há tantos empreendimentos e uma especulação brutal?”. Explica-nos que estamos a viver uma fase de estagnação da economia, sobretudo depois da crise financeira global de 2008, mas que existe uma enorme quantidade de capital na esfera financeira por vários motivos, entre eles, as políticas do Banco Central Europeu que injetam enormes quantidades de dinheiro, não nos Estados, mas na banca. Isto faz com que exista “muito capital especulativo a circular, a nível mundial”. Como a economia não cresce, não há investimento no sector produtivo e uma parte desse capital vem para as cidades e para o imobiliário, porque é um investimento sólido e seguro. Sobre quem são os promotores destes investimentos diz-nos que “são bancos, são fundos de investimento, são grandes fortunas, são empresas, são construtoras, são empresas imobiliárias, mas normalmente são capitais que são da esfera financeira e do capital estrangeiro”.
Rita Silva acrescenta ainda que, além desta injeção de capitais, “o que as políticas fazem, é incentivar ainda mais este processo, a todos os níveis, europeu, nacional ou municipal” e que estes processos combinados são “explosivos”. Em agosto de 2018, Luís Mendes, geógrafo e investigador do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa e membro da Associação Morar em Lisboa, num artigo de opinião publicado no Jornal Económico, escrevia que a cidade de Lisboa estaria a viver “um pico de projeção internacional enquanto destino turístico, ao mesmo tempo que o seu mercado de habitação adquire formatos de ativo financeiro e atrai dinâmicas globais de procura e de investimento estrangeiro“. Segundo o investigador, este processo foi alimentado por políticas governamentais que apoiaram uma “viragem neoliberal na política urbana”. Estas políticas “fomentaram a atração de uma elite transnacional e favoreceram a financeirização do imobiliário e a reestruturação urbana na capital portuguesa”.
Lisboa turística, em valorização
Mas além destes, existem outros processos em jogo. Durante anos, alimentou-se o discurso sobre o esvaziamento do centro histórico da cidade. Para Ana, “isso também foi uma coisa muito boa de vender, essa ideia de que o centro histórico era habitado apenas por classe baixa. Essa visão de que o centro histórico estava sujo, e as pessoas tinham medo de lá ir, é uma narrativa construída. É verdade que existiam no centro histórico muitos prédios devolutos, mas o bairro não estava vazio. Muito pelo contrário, agora é que está a ficar vazio”.
Justamente a reboque de um discurso que o caracterizava como um local pobre e como palco de tensões sociais propiciadoras de múltiplos perigos e ameaças, esse centro histórico foi sendo desvalorizado. Para as gerações anteriores, os locais privilegiados para a habitação demarcaram-se deste centro e as pessoas deslocaram-se para outros locais dentro de Lisboa, ou, na sua maioria, para locais mais periféricos. Assim, foi possível aproveitar essa situação de abandono e desinvestimento no centro histórico da cidade de Lisboa que, acompanhado por um processo de desenvolvimento das periferias, resultou numa desqualificação desse centro tornando o seu terreno menos valioso. A um preço mais acessível, o Estado, os especuladores e quem mais estiver interessado e possuir capital de investimento, puderam comprar terrenos e casas a um preço baixo, fazer obras, e especulá-los. Mas para que esta estratégia funcione, é preciso revalorizar esses centros urbanos, ou seja, para além de fazer obras, é necessário torná-los atrativos.
A construção de cidade que temos vindo a assistir, cria assim novos pólos de atracão no seu centro. As dezenas de projetos previstos para Arroios, Alfama, Graça ou Marvila, são disso exemplos. A par destes, assistimos ainda ao surgimento de mega eventos como a conferência europeia sobre tecnologias Web Summit, que desde 2016 marca presença em Lisboa. Após duas edições realizadas em Lisboa, a Web Summit e o Governo português anunciaram, em outubro de 2018, uma parceria a 10 anos que mantém a conferência na capital até 2028.
A acrescentar a este panorama, e de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), entre janeiro e junho de 2019, a indústria do turismo continuou a somar números. A nível nacional, o número de dormidas de turistas registado nesta primeira metade do ano cresceu 7,6%, em relação ao mesmo período do ano passado e só a Área Metropolitana de Lisboa (AML) contou com cerca de 8,53 milhões de dormidas. Apesar dos hotéis serem a opção mais escolhida, representando 83,6% de todas as dormidas, à frente do alojamento local (AL) e do turismo rural e de habitação, em termos de crescimento, os números do AL destacaram-se ao subir mais do que os hotéis: dispararam 15,8%, face aos 2,9% de subida do sector hoteleiro.
Um estudo de impacte ambiental realizado pela CML aponta que o crescimento do turismo, juntamente com as facilidades das plataformas de arrendamento, tais como o Airbnb, fez com que o número de estabelecimentos de alojamento local no concelho de Lisboa tenha crescido exponencialmente na última década, tendo chegado a quase 18.000 em 2018, um valor que corresponde a 5% de stock de alojamentos familiares clássicos.
A atividade turística é, portanto, um factor central e muitos dos projetos imobiliários em curso na região de Lisboa acompanham as necessidades de uma indústria em desenvolvimento, o que faz com esta seja um importante motor da dinâmica urbanística da cidade e da valorização do imobiliário. No documentário O Que Vai Acontecer Aqui?, da autoria do coletivo Left Hand Rotation, Rita Silva afirma que o investimento em imobiliário que verificamos é “um investimento baseado na especulação, que não cria valor na sociedade em termos de redistribuição. O que este investimento está a produzir é uma polarização da sociedade, ou seja, maior desigualdade, porque como as pessoas que vivem e trabalham no nosso país têm cada vez menos acesso à habitação, ou têm que pagar cada vez mais por uma habitação, elas estão a empobrecer”. Ana conclui ainda que “as políticas resultam todas numa lógica de opressão dentro do sistema capitalista cuja ideia é criar maiores clivagens sociais. Basicamente, as pessoas estão a ser expulsas da cidade. O que está a acontecer não é um problema para os ricos, só é um problema para quem não tem dinheiro”.
Lisboa silenciosa, em contradição
Lisboa tornou-se, nos últimos anos, numa cidade dinâmica e atrativa, que capta investimento nacional e estrangeiro e vive um período de euforia no mercado imobiliário. Mas este otimismo nos mercados contrasta com a cidade onde os seus habitantes sofrem os impactos dos intensos processos de valorização imobiliária, gentrificação e turistificação, e onde cresce a cada dia uma profunda crise de habitação, com os preços a disparar tanto no centro como nas periferias. Segundo dados divulgados no início de outubro pelo INE, Lisboa é o concelho com os preços mais elevados de Portugal e cuja renda média atinge pouco menos de 12€ por metro quadrado, o que representa um aumento de quase 13% relativamente ao mesmo período do ano passado.
Um estudo recentemente publicado por investigadores da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas sobre segregação habitacional em Lisboa conclui que os gastos de habitação na AML correspondem a cerca de metade do rendimento médio disponível, um valor acima da taxa de esforço recomendada de 30%. Com o aumento do preço do arrendamento em Lisboa, a solução para muitos que não conseguem aí pagar casa é procurar casa em zonas menos centrais, tal como a margem sul do Tejo. Mas nesta zona também as rendas aumentam. No início de outubro, o jornal Expresso noticiava, com base em informações de agentes imobiliários, que em média, nos últimos sete anos, os preços das casas na margem Sul duplicaram. Antonio Gori refere ainda que “no Barreiro há quartos para alugar a 350, 400, 450 euros”.
O Barreiro, mas também Almada, Seixal ou a norte, a Amadora, são considerados como parte de Lisboa. Antonio refere-se a uma “cidade integrada”. Apesar desta ideia de tudo ser parte de Lisboa, os grandes pólos de emprego, comércio, serviços, turismo e lazer continuam a estar no centro da cidade, o que continua a implicar constantes deslocações de pessoas da periferias para o centro. Ou seja, apesar de uma gentrificação também das zonas periféricas, o grosso do poder continua concentrado no centro e as periferias continuam a estar reféns e dependentes desse centro. Rita Silva avança-nos que “em 2012, quando começa a Lei Cristas, havia 750 mil contratos de arrendamento no país e hoje há cerca de 330 mil. E isso foram casas que saíram do arrendamento e muitas estão a ir diretamente para apartamentos turísticos, muitas para venda, especulação, vistos gold, ou venda, porque rende vender”.
De acordo com dados da CML, o número de contratos de compra e venda de prédios urbanos em Lisboa aumentou 86% entre 2011 e 2017. Além disso, o valor destes contratos cresceu 12.5% no mesmo período. Uma das faces mais violentas e mais visíveis da crise da habitação gerada por todos estes processos é a proliferação de ações de despejo sobre os inquilinos aos quais não lhes é renovado o contrato ou que deixaram de poder pagar casa em que vivem. Uma realidade catalisada pela anterior Lei do Arrendamento Urbano, a chamada Lei Cristas, aprovada em 2012 na sequência da intervenção da Troika em Portugal e que veio liberalizar o mercado do arrendamento e agilizar as ações de despejo por parte dos proprietários. Tal como noticiou o jornal Público em julho de 2018, entre 8 de janeiro de 2013 e 30 de junho de 2018, o número de despejos foi de 2968 no município de Lisboa e de 1348 no município do Porto.
Lisboa resistente, em conexão
Os processos de despejos ou de ausência de renovação de contratos de arrendamento originam a expulsão ou a deslocação de pessoas para outros concelhos, outros bairros. Isso acarreta profundos efeitos sociais tais como a desintegração de comunidades mas também o isolamento. A propósito destas questões, Ana refere: “quando percebes que vais perder a casa pensas ‘mas para onde é que eu vou?’. E isso é um nó pelas tuas entranhas todas, não saberes para onde vais a seguir porque sabes que a coisa está completamente descontrolada. A cidade onde tu criaste os teus afetos, as tuas relações, de repente não cria espaço para ti. É muito estranho isso acontecer em termos de identidade”.
Catarina Carvalho explora mais a fundo o isolamento ao afirmar que este tem várias implicações: “tem implicações em termos da saúde, da saúde mental, da criação de laços de comunidade, que são importantes para tudo isso mas também ao nível da luta. Porque tu estás a isolar pessoas que tinham espaços de encontro, que tinham ligações, que tinham redes, também de solidariedade e agora são obrigadas a saírem dos sítios que conhecem e a separarem-se dessas redes. Essas redes acabam por cair e por se desfazer e isso tem impacto em todos os outros aspetos da luta. Eu acho que a luta pela habitação acaba por ser uma luta por todas as outras lutas porque sem ela nós estamos isolados. Sem a casa, sem a comunidade, sem a cidade”.
Nos últimos anos, muitas lutas dos movimentos sociais na grande Lisboa têm abraçado a ideia do “Direito à Cidade” e mostram que, apesar das cidades serem entendidas como espaços de segregação, separação e dominação existem, em contrapartida, diversos movimentos urbanos empenhados em superar o isolamento e reconfigurar a cidade de modo a que esta represente também um espaço de encontro, de criação de espaços comuns e de luta. Coletivos, grupos, movimentos, redes, comissões de moradores, assembleias e outras estruturas têm estado nas ruas a defender o direito à habitação mas também a fazer frente aos despejos e às demolições, a ocupar casas, a denunciar fundos de investimento, práticas abusivas de proprietários e atropelos aos direitos básicos, através de centenas de protestos e processos de luta.
Recuando um pouco na história, durante o PREC, mas também durante os anos 90 e até ao início do século XXI, muitas foram as experiências e ações de ocupação de casa, sobretudo em Lisboa, Setúbal e Porto. Mais recentemente, em setembro de 2017, a Assembleia de Ocupação de Lisboa (AOLX) ocupou um prédio devoluto da CML na Rua Marques da Silva, em Arroios, e, em fevereiro de 2018.
Em novembro de 2018, a Renascença publica um artigo intitulado “Mães Ocupas”, que dá conta de diversas ocupações de casas camarárias devolutas na Alta de Lisboa, por famílias, na maior parte dos casos, monoparentais. De acordo com a notícia, são mães e são “solteiras, têm salários baixos e não conseguem suportar as rendas praticadas em Lisboa”. Antonio Gori acompanhou este processo na Alta de Lisboa, no Lumiar e em Chelas: “Ali há lutas que são lutas quotidianas de pessoas que estão habituadas a lutar provavelmente desde que nasceram. E ali a CML tem o grande vício de deixar milhares de casas vazias. Há uma grande sobrelotação de famílias que têm uma casa. Há famílias onde vivem 15 pessoas num apartamento T3 de 80m2. Então, tendo as casas vazias ao lado, vão ocupar. E especialmente as mulheres, porque precisam de fugir de certas situações, ou precisam de dar abrigo aos próprios filhos ou porque ficaram sozinhas, ou porque não se dão bem com a família do namorado, há várias razões.”.
Nos últimos anos, para além de ocupações, temos assistido também a manifestações pela habitação. Em março de 2018, um mês depois do despejo da casa ocupada pela AOLX, o Rock in Riot levou 2000 pessoas a ocupar a Avenida Almirante Reis durante cinco horas. Seis meses mais tarde, em setembro de 2018, um conjunto alargado de associações e coletivos lançou a iniciativa “Setembro de acção e luta pela habitação”, convocando manifestações para Lisboa e Porto.
Em Lisboa, o protesto espelhou a diversidade de um movimento que se constitui de várias formas para atacar um problema que afeta pessoas de toda a AML. Entre as cerca de 1500 pessoas que protestaram entre o Largo do Intendente e a Ribeiras das Naus estavam diferentes coletivos e associações de moradores, associações culturais, cooperativas de consumo, associações ambientalistas, grupos feministas, não só do centro como da periferia. Os moradores do Bairro 6 de Maio e do Bairro da Torre, bem como o coletivo Nu Sta Djunto e a SOS Racismo, estiveram presentes e reviram-se na manifestação que se posicionava, de acordo com o seu comunicado, contra “o processo de especulação generalizada, com a privatização de espaços públicos e socioculturais”. Afirmavam também ter como objetivo “discutir, denunciar, questionar e desafiar o modelo de desenvolvimento capitalista, que transforma a cidade num gigantesco negócio, subordinando-a às leis de mercado e excluindo os seus habitantes”. Em 21 de janeiro de 2019, a Avenida da Liberdade, bem no centro de Lisboa, foi palco de uma violenta intervenção da PSP contra uma manifestação que protestava contra a intervenção policial, uns dias antes, no bairro do Jamaika. Foi nesta mesma avenida que, no passado dia 29 de setembro, uma assembleia aberta com centenas de pessoas marcou o fim do festival HabitAcção, uma iniciativa que decorreu durante todo o mês de setembro e contou com dezenas de atividades em diversos espaços.
Inevitavelmente, de fora destas linhas ficam as restantes centenas de outras ações que tiveram lugar nos últimos anos de Norte a Sul de Portugal, organizadas por muitos outros coletivos, associações e grupos de moradores. Estas iniciativas mostram que o problema do isolamento entre pessoas e lutas é encarado de frente pelos movimentos sociais. Mas mostram também que o problema da habitação é, neste momento, transversal a um conjunto cada vez maior de pessoas, embora com diferentes níveis de visibilidade, do centro à periferia. E é aqui que a questão das relações entre o centro e a periferia se volta a colocar. Nas palavras de Rita Silva: “o problema não é só no centro, o problema é também nas periferias, as pessoas estão a ser despejadas na Amadora porque na Amadora também existe um processo de gentrificação. As periferias também estão a sofrer vários tipos de recomposição e estão a organizar processos de expulsão em que o elo mais fraco é aquele que vai sair. Parece que o problema da habitação chegou agora e que é um problema do centro, do centro histórico, mas não. O problema da habitação já é muito antigo, afetava muitas outras populações, que não eram o centro da cidade visível, por exemplo imigrantes, população cigana, população abaixo do limiar da pobreza, têm problemas de habitação desde sempre. Eu acho que devia haver muito mais articulação, dentro da resistência, devíamos tentar promover muitos mais processos de articulação entre o centro e a periferia.”
Para Antonio Gori, as periferias funcionam muitas vezes como dormitórios. “Claro que há lojas, há mercados, há vida, porque as pessoas resistem e na resistência também se cria cultura, se cria uma vida, porque a vida é resistência, neste sentido. Nestas lutas as pessoas reivindicam também todos os outros serviços, não é só a habitação. Nestas lutas reivindicam o direito à saúde, direito a transportes. A maioria destas pessoas tem dois, três trabalhos e trabalham 12, 13, 14 horas por dia, muitos nas limpezas, nos hotéis, nos restaurantes, nos centros comerciais, no aeroporto, etc.” Ana acrescenta ainda que “o centro sempre se esqueceu da periferia. A habitação tem sido sempre uma questão nesses bairros, como outras também. Porque são pessoas que têm 14 horas de trabalho, saem de sol a sol e depois há esta coisa da habitação que é uma temática que, de repente, já não diz só respeito a estes bairros auto-construídos, de repente é uma problemática que diz respeito até à classe média, até à média-alta. De repente já é uma questão que diz respeito a muitas pessoas e isso faz com que se dê um olhar diferente à situação destes bairros que já se prolonga há muito tempo”.
A “Caravana pela Habitação”, uma iniciativa de setembro de 2017, com origem na Assembleia dos Moradores do Bairro 6 de Maio, Bairro da Torre e Bairro do Jamaika, tinha em vista ligar diferentes lutas e fazer pontes entre elas, reforçando a relação entre centro e periferias que, segundo o comunicado desta iniciativa, “apesar de diferenças de contexto, partilham uma condição comum de precariedade e exclusão social face à habitação”. Consideram também que “é na ligação e articulação entre grupos, território e famílias que podemos reforçar-nos, que podemos ter uma voz, que podemos enfrentar os grandes interesses ligados ao imobiliário”. Rita Silva lembra um dos episódios de luta da Caravana: “Houve um dia que fizemos uma sessão de apresentação [da Caravana pela Habitação]. Estavam lá pessoas do Bairro de Camarate, da Torre, a falar do corte da luz, que vivem há dois anos sem luz e sem água, em barracas, estavam também pessoas do Bairro 6 de Maio e da Rua dos Lagares. A Rua dos Lagares já tinha tido uma vitória, a renovação dos contratos de habitação por cinco anos. E as três fizeram uma apresentação no primeiro dia da Caravana pela Habitação, na associação Disgraça. Fala primeiro uma pessoa do problema das demolições no bairro 6 de Maio. A seguir vai outra da Torre – são duas mulheres negras a falar – a falar sobre a falta de luz, a falta de água num bairro onde já não se consegue viver. A pessoa da Rua dos Lagares é a terceira a falar e, de repente, com lágrimas nos olhos diz: ‘Eu agora adorava dizer que tenho uma vitória, mas eu nunca vou poder dizer que tenho uma vitória enquanto as minhas irmãs estão na situação em que estão'”.
A propósito de todas estas lutas, Rita Silva afirma: “é muito importante criar espaços de auto-gestão, de autonomia, que não seja só reivindicar. Acho que temos de andar em diferentes níveis de luta. O sonho é que se consiga vir a criar outros espaços de autonomia ainda mais poderosos e consistentes e que consigam também dar uma nova mensagem à sociedade. Se conseguíssemos fazer uma grande ocupação de um prédio vazio e viver lá com muitas famílias e fazer ali uma proposta diferente… Eu acho que isso era um sonho que se quer fazer e acho que um dia vamos fazer. Mas ao mesmo tempo, acho que não podemos ficar muito satisfeitas apenas porque temos um prédio que está ocupado e auto-gerido e depois há todo o resto do problema que continua a manter-se. Então eu acho que temos sempre de entrar na disputa na política também. As duas coisas são importantes e complementares”.
Ana lembra que o problema da gentrificação ou da especulação imobiliária é, afinal, o problema de uma forma de organização social capitalista de gerir as cidades, que tem aberto caminho a soluções de privatização e de segregação social em detrimento de soluções de democratização da habitação e do espaço urbano. Diz-nos ainda que “por mais importante que seja a habitação, não será ela, quanto a mim, a responsável por estes problemas todos. Faz parte é do sistema. Porque se o sistema fosse outro, a habitação não seria um problema”. Dentro deste sistema que Ana descreve, a habitação ganha hoje, mais do que nunca, o estatuto de um privilégio ao alcance de cada vez menos pessoas.
Por outras palavras, a construção das cidades encontra-se nas mãos de uma pequena elite política e económica com condições para moldá-la segundo as suas necessidades e desejos particulares. Por isso, a luta pelo direito à cidade dos movimentos sociais, deverá ser também um luta anti-capitalista e de reivindicação de capacidade de decisão coletiva, e de ação sobre os processos de urbanização, sobre o modo como as cidades são feitas e refeitas. Como afirma o geógrafo David Harvey, no seu livro Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (2012): “Há muito trabalho a fazer, mas há sinais abundantes nos movimentos sociais urbanos ao redor do mundo de que existem muitas pessoas e uma massa crítica de energia política à disposição para fazê-lo.”
Texto de Catarina Leal e Guilherme Luz; ilustrações de Emma Andreetti
(Nota: este texto foi originalmente publicado no Jornal Mapa, jornal de informação crítica, editado em papel, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.)
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