Mulherzinhas: uma versão perfeitamente moderna de uma história intemporal

Mulherzinhas: uma versão perfeitamente moderna de uma história intemporal

14 Fevereiro, 2020 /
Little Women (imagem via Sony Pictures)

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Aquela que é a sétima – e melhor! – adaptação ao grande ecrã do clássico de Alcott consegue ser uma homenagem perfeita à obra da escritora, sem que Gerwig se perca nessa necessidade de homenagear com pinças uma história tão adorada e já tantas vezes interpretada.

Quando li o livro Mulherzinhas pela primeira vez devia ter perto de 10 anos. Para uma miúda que preferia livros a bonecas e que escrevia peças de teatro para apresentar à família no Natal, ler e conhecer a Jo March foi sentir-me menos sozinha e perceber que, se em 1868 já existiam raparigas assim, também na altura elas deviam existir algures e eu não era assim tão estranha. Jo March tornou-se a minha personagem preferida de sempre; também eu era intempestiva, também eu me exprimia melhor por escrito, e a sua irmã mimada Amy mexia tanto comigo como parecia mexer com ela. Além disso, perceber que Jo era o alter ego da escritora Louisa May Alcott fez-me sonhar que, se calhar, a criança que eu era representava uma fase no percurso de uma grande escritora.

Na altura dessa primeira leitura ainda não tinha reflectido sobre conceitos como a actualidade da obra, o papel das mulheres na sociedade ou o moralismo exagerado claramente associado à época. O que com o tempo aprendi a apreciar e a criticar na história foi precisamente o que fez com que o livro nunca me saísse da memória, o que fez com que consolidasse a opinião de que Mulherzinhas é mesmo um livro de aprendizagens, um clássico intemporal imprescindível da literatura juvenil, uma celebração da educação, amizade e coragem. E há zero condescendência na classificação “Literatura Juvenil”. Dizer que Mulherzinhas me ajudou a compreender-me como mulher, não significa que não considere a sua leitura imperdível para todos, de todas as idades, porque há valores e ensinamentos sem tempo ou género.

Saber que Greta Gerwig ia pegar na obra de Louisa May Alcott foi sentir a fusão de dois mundos que adoro e que, ainda por cima, me parecia fazer todo o sentido unir. A confirmação do elenco foi como uma ignição explosiva que me deixou desejosa e com a certeza de que dificilmente o resultado seria mau.

A realizadora já nos tinha dado provas da sua capacidade de descrever o universo feminino, sem com isso deixar de criar um enredo interessante para todos. E foi isso que fez. Aquela que é a sétima e melhor! adaptação ao grande ecrã do clássico de Alcott consegue ser uma homenagem perfeita à obra da escritora sem que Gerwig se perca nessa necessidade de homenagear com pinças uma história tão adorada e já tantas vezes interpretada.

A forma como trabalha sem riscos, percebendo que a história das irmãs March é intemporal e oportuna, recorrendo não só ao livro como às anotações paralelas deixadas por Alcott são a sua maior assinatura. A realizadora encosta mais ainda Jo à sua criadora, mas sem forçar a nota ou cair em anacronismos feministas. A sua capacidade de storytelling, a construção de personagens e a fluidez com que se movimenta entre as diferentes linhas temporais, como se o tempo fosse sobreposto e não linear, concedem uma modernidade à história que sublinha mais ainda a tal intemporalidade dos temas já referida.

“Moral não vende hoje em dia”, diz Jo num certo momento do filme sobre tentar vender um conto a um jornal, ao conversar sobre as exigências e necessidades do mercado editorial nos anos 1860, quando o editor em questão lhe pede que case ou mate a sua protagonista porque é assim que as personagens femininas devem ser retratadas. Até que ponto a mulher pode ousar sem ofender os bons costumes, ou ser inteligente sem se tornar ameaça? Mais do que sobre os anseios de quatro irmãs, a adaptação de Gerwig conta a história de quatro mulheres com pouco em comum à superfície, mas a mesma vontade de viver a vida à sua maneira.

Gerwig escolheu usar as mesmas actrizes para as duas linhas temporais da história, o que permitiu a Saoirse Ronan, Emma Watson, Florence Pugh e Eliza Scanlen construírem com delicadeza, personalidade e carácter os seus arcos individuais. Destaque absoluto para Saoirse Ronan como protagonista e os diálogos potentes com Laurie (Timothée Chalamet). Florence Pugh é uma surpresa, perfeita para as mãos de Greta, mas uma escolha de casting que não convence quem leu os livros e imaginava uma Amy orgulhosa sim, vaidosa sim, mais mais frágil e pequenina – talvez algumas birras tenham parecido exageradas para compensar a falta desse ar naturalmente irritante que o charme de Pugh não deixou ver.

O tempo dedicado aos personagens também é curioso e arriscado, com a decisão de conceder a Beth o menor tempo de tela, mas é interessante observar como ela enche a trama mesmo na sua ausência, afinal, é Beth quem mantém a família unida e a função da personagem é muito clara. Gerwig também não perdeu tempo a explorar mais a fundo o triângulo amoroso entre Jo, Laurie e Amy, que tanto dá que pensar às mentes adolescentes que se cruzam com as Mulherzinhas de 1868 e, talvez aí, o resolver e matar desse assunto com poucas explicações tenha parecido repentino (talvez por cortes e edição já numa fase de pós produção?).

Com um elenco recheado de talento –  além dos nomes já referidos, há ainda Meryl Streep, Chris Cooper, Louis Garrel ou Tracy Letts Gerwig conseguiu seis nomeações a Óscares, incluindo Filme, Actriz (Ronan), Actriz Secundária (Pugh), Argumento Adaptado (Gerwig) e Banda Sonora (Desplat), mas só venceu no Guarda-Roupa, um prémio merecido mas que não deixa de soar a consolação.

Mulherzinhas edifica o estado de graça de Greta Gerwig depois do também muito bem recebido Lady Bird, escreve Saoirse Ronan como a melhor Jo March da história do cinema e uma das melhores actrizes da actualidade e traz Florence Pugh para os olhos de um público mais alargado que pode e deve ir saber mais sobre o seu trabalho. Mas, acima de tudo, é um produto costurado praticamente na perfeição para nos lembrar que fazem falta mais filmes bonitos simplesmente pela sua harmonia entre realizadora, material e elenco, daqueles que nos levantam o espírito e nos deixam felizes sem sabermos bem explicar porquê, porque o bom cinema não tem sempre de ser pesado e tirar o sono.

Autor:
14 Fevereiro, 2020

A Rita Pinto é Editora-Chefe do Shifter. Estudou Jornalismo, Comunicação, Televisão e Cinema e está no Shifter desde o primeiro dia - passou pela SIC, pela Austrália, mas nunca se foi embora de verdade. Ajuda a pôr os pontos nos is e escreve sobre o mundo, sobretudo cultura e política.

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