No dia em que Marcelo Rebelo de Sousa chega à Índia, nada melhor do que fazer um ponto breve sobre a situação política daquele país. Apesar das notícias que cá chegam não serem muitas, os últimos meses têm sido intensos no que toca ao debate ideológico, marcados sobretudo por manifestações contra a Citizenship Amendment Act (CAA) e o National Register of Citizens (NRC), duas medidas que estão a ser vistas como discriminatórias de minorias como os muçulmanos.
As manifestações já decorreram em mais de uma dezena de cidades, já levaram à prisão de pelo menos 3 mil pessoas e à morte de mais de 20. Vamos por partes.
Citizenship Amendment Bill (CAB) e National Register of Citizens (NRC)
A CAA, uma emenda constituicional, em vigor desde 11 de Dezembro de 2019 visa alterar o estatuto de cidadania como constitucionalmente estabelecido desde 1995. Se na lei básica em vigor até ao ano passado todas as minorias religiosas tinham direito a ser cidadãos da Índia, a reforma está a ser interpretada como discriminatória de certas franjas da sociedade como os muçulmanos, algo especialmente impactante num país que tradicionalmente recebe migrantes e refugiados de países vizinhos. Resumidamente, a CAB determina que Hindus, Sikhs, Jainas, Budistas, Cristãos e Parsis, provenientes de Afeganistão, Bandgladesh e e Paquistão, têm direito a ao estatuto de refugiados e cidadania Indiana, excluindo assim, por inerência, muçulmanos (em maior percentagem), ateus, e outras minorias religiosas como os Tamil ou os Rohingya provenientes de vizinhos como Sri Lanka, Birmânia, da obtenção deste estatuto.
Já a NRC é uma medida que obriga todos os cidadãos a apresentarem uma série de documentos de registo para confirmarem a sua cidadania na Índia. Esta medida não é nova, estando em vigor de 2003 mas ainda não foi totalmente implementada no gigante país. A preocupação volta agora a colocá-la sob foco porque segundo os manifestantes, a sua conjugação com a nova CAB, acima referida, pode fazer com que as minorias percam direito à cidadania ou sequer ao estatuto de refugiados.
Em síntese, os manifestantes reiteram que a conjugação das duas leis coloca o ónus da cidadania na etnia ou na religião, abrindo caminho para a discriminação segundo este critério. A conjugação desta mudança legislativa com a construção de campos de detenção promovida pelo governo de Modi, assustam os cidadãos que temem que aqueles que não possam provar a sua cidadania por dificuldade de acesso a documentos ou por não verem o seu estatuto reconhecido possa acabar apátridas e detidos.
A mudança na lei foi proposta pelo governo de Narendra Modi, o primeiro ministro Índiano proveniente do partido Bharatiya Janata Party, conhecido pelas suas posições nacionalistas em prol dos hindus. A combinação destas duas propostas, estabelece tacitamente a Índia como o país dos hindus, considerando outros (como os muçulmanos) estrangeiros.
Por seu turno, Modi, diz que as manifestações são infundadas e baseadas em rumores que não correspondem à verdade, rematando que a CAA não é uma lei para ‘tirar a cidadania de ninguém, mas para a garantir’. Contudo, a linha das medidas implementadas por Modi substanciam as críticas que lhe são dirigidas. Apesar da sua recente re-eleição, o novo governo de Modi já tomou medidas de unificação da Índia como a revogação do estatuto autonómico de Jamu e Kashmira, as duas provincias com maior percentagem de cidadãos muçulmanos.
Do lado das manifestações têm sido dezenas de milhares as pessoas que por toda a Índia têm saído à rua, impondo aquele que é considerado como o primeiro grande teste ao executivo de Modi, numa manifestação que tem sido comparada, à que saiu às ruas do Líbano. Apesar da concordância tácita que os leva à rua, contra a CAB e a NRC, os motivos por que os cidadãos dos vários estados Índianos saem à rua nem sempre é a mesma. Como reporta o The Atlantic, se uns se manifestam contra o potencial discriminatório mas a favor do acolhimento de refugiados, outros são totalmente contra a entrada de pessoas no país. Certo é que a polícia Índiana tem sido criticada pela brutalidade com que reprime as manifestações, fazendo escalar o conflito.
O Contexto Indiano
Maioria e política
A re-eleição de Modi, no ano passado, é vista por analistas como histórica e, segundo Hasan, professor emérito na Jawaharlal Nehru University ouvido pelo The Atlantic, é esse o substracto das medidas mais radicais na agenda. Hasan reitera que Modi por ter aumentado a margem da vitória e ter conquistado uma maioria se está a focar na governação para a maioria, algo típico dos líderes autoritários.
Contudo, mais recentemente, o partido de que faz parte, o BJP, voltou a perder na cidade de Delhi numa eleição que pode ser vista como um símbolo dos movimentos que se vão opondo ao primeiro ministro. Em Deli o BJP apostou numa retórica anti-muçulmanos e acabou derrotada pelo AAP, um partido anti-sistema. Arvind Kejriwal, líder do AAP, assume-se como um anarquista anti-corrupção e sedimentou a vitória que havia conseguido em 2013, derrotando o Congress, partido que governara a cidade durante 15 anos.
Esta eleição, na capital da Índia, com mais de 20 milhões de pessoas, expressa o contexto político conturbado que o país atravessa. A sublinhá-lo está a retórica utilizada pelo partido BJP que segundo reportagens se baseou num discurso de ódio contra as minorias, nomeadamente os muçulmanos.
Informação e desinformação
Para se perceber a expressão destes movimentos políticos é capaz vez mais importante perceber a paisagem mediática do país — tal como qualquer eleição nos tempos que correm. Apesar de a Índia ter um dos maiores mercados de jornais, segundo o estudo levado a cabo pelo Repórteres Sem Fronteiras aponta para uma elevada concentração dos media, com grande influência do estado. Por exemplo, as notícias por rádio são exclusivamente dadas pelo estado, grupos privados que emitam rádios em FM têm de limitar-se a música e outro tipo de entretenimento, criando um monopólio na circulação de informação num meio com elevado alcance.
Para além deste caso concreto de controlo estatal, existem outros casos peculiares de promiscuidade entre poder político e os media, nomeadamente porque os grandes magnatas detentores de televisões ou outros emissores têm ligações próximas a partidos políticos. Por exemplo, a maior tv da província de Orissa, a Odisha TV, é detida pela família do vice-presidente do partido de Modi; também no estado de Assam a NewsLive tem relações com este partido, sendo detida pela esposa de um ministro de Modi. Algo que leva a organização RSF a considerar frágil a independência dos media naquele país.
Contra-informação
Como em todos os países na contemporaneidade a paisagem mediática já não se resume apenas aos canais de broadcast tradicionais, pelo contrário, fragmenta-se em milhares de canais digitais, com Facebook e Whatsapp à cabeça da lista, e os bloqueios na internet como um importante dado a ter em conta.
Em Cashmira, por exemplo, o estado a quem foi revogada a autonomia, a internet esteve no início do ano suspensa – sendo que retornou no dia 26 de Janeiro com apenas 301 websites disponíveis, algo que a população contesta referindo que os deixa num ‘buraco negro informativo’.
Por outro lado, as mensagens corrente de Whatsapp têm sido uma constante da luta ideológica, tal como foram em países como o Brasil. Com os grupos de Whatsapp que não servem de mobilização para manifestações povoados por vozes de suporte à retórica de exclusão promovida pelo partido no poder, esta aplicação tornou-se também uma espécie de campo de batalha, com actores peculiares, nomeadamente a conta de Instagram @sodonechilling que nos oferece uma perspetiva única sobre o caso.
https://www.instagram.com/p/B7FqHGYJafe/?igshid=zvfcssobgztq
Ouvidos pelo Huffington Post, os https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistradores da conta, revelam como é comum entre cidadãos da Índia a circulação de imagens de bons dias que muitas vezes carregam consigo boatos e rumores. Assim, e numa atitude subversiva com uma carga forte e quase artística, a página decidiu criar essas mesmas imagens com mensagens emancipatórias que motivem os cidadãos a estar informados e a exercer os seus direitos, tentando contrariar as mensagens discriminatórias que habitualmente circulam nestes meios.
Na publicação de Natal, por exemplo, lê-se “Feliz Natal – Se fores de Caxemira esta mensagem não será entregue”, uma mensagem inusitada que procura trazer para o debate público a situação política frágil muitas vezes abafada pelos media.